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Política

Governo em ofensiva diplomática: Cabo Verde em alerta contra a fome

A guerra na Ucrânia criou uma situação “muito delicada” para Cabo Verde, país que importa mais 80 por cento das suas necessidades de consumo. Com esta nova crise, o número de pessoas com insegurança alimentar “quadruplicou” e já ronda 10% da população. Aflito, através do ministro Gilberto Silva, o Governo resolveu lançar uma forte investida diplomática para debelar a crise que neste momento ameaça este arquipélago. 

Depois da crise sanitária da covid-19, que criou sérios prejuízos à economia nacional, com reflexos na capacidade de compra dos cabo-verdianos, surge agora o espectro da fome, motivado pela guerra na Ucrânia, que acaba de entrar no seu terceiro mês. Para além do aumento galopante dos preços produtos alimentares, há sérios riscos de escassez de cereais e óleo alimentar no mercado.

O Governo, que prefere falar de insegurança alimentar, está a desencadear uma forte campanha diplomática no sentido de evitar mais um drama da fome em Cabo Verde.

Nesse sentido, o ministro da Agricultura e Ambiente, Gilberto Silva, esteve esta semana ao Senegal para contactar os embaixadores acreditados na Praia e residentes em Dacar, para os convencer a prestar ajuda alimentar ao país, que, para além de uma seca severa que já vai no seu quinto ano, tenta recompor-se da crise pandémica da covid-19 e lidar com a situação da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, dois dos maiores produtores mundiais de cereais.

Na cidade da Praia, segundo uma nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) endereçada a missões diplomáticas acreditadas na capital cabo-verdiana e que A NAÇÃO teve acesso, o quadro alimentar neste momento já é delicado. Conforme a mesma fonte, a crise pandémica da covid-19, a guerra na Ucrânia e a seca prolongada desde 2017 criaram “uma situação muito delicada devido às dificuldades estruturais do arquipélago”.

O número de pessoas com insegurança alimentar “quadruplicou” em relação à média histórica do país, revela a nota do MNE, sublinhando que as projeções indicam que cerca de 43 mil pessoas (10% da população total poderão sofrer insegurança alimentar “nesta época de escassez (fase 3 entre Junho Agosto de 2022)”.

“Atualmente, o país enfrenta dificuldades de abastecimento riscos de rotura e um aumento na ordem dos 40% de preços de alimentos (Março de 2022”, revela a mesma fonte, que enumera um conjunto de factores que conduzem a essa situação.

Entre esses factores estão a redução “drástica” dos prazos de validade e das facturas proformas, assim como a demora nas respostas dos fornecedores habituais na demanda dos importadores.

A subida do preço dos transportes, a situação de incumprimento dos contratos de fornecimento em termos de quantidade e preços acordados, assim como o condicionamento das exportações por parte de países exportadores, são outros factores que poderão afetar o abastecimento dos principais produtos alimentares no pais.

Outro aspecto a ter em conta é que, por ser um país arquipelágico, Cabo Verde tem enormes dificuldades em participar em grandes compras agrupadas, que hoje são feitas por Estados e até por regiões. Essas situações deixam pouca margem negocial para pequenas empresas como as nossas.

 

FMI e Banco Mundial prontos para ajudar África

“A guerra na Ucrânia significa fome na África”, disse a directora administrativa do FMI, Kristalina Georgieva, numa reunião com os ministros das finanças africanos, governadores dos bancos centrais africanos. Cabo Verde, por ser um arquipélago situado no Sahel, uma das regiões mais áridas do planeta, não escapa ao “apocalipse” que se está a desenhar ou a “tempestade pefeita”, como a denomina o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

Quase todos os países em África já estão a sofrer com as repercussões económicas da invasão russa da Ucrânia, entre aumentos nos preços das necessidades básicas e do petróleo, aumentando os temores de piorar a pobreza em todo o continente. Mesmo os países produtores de petróleo e gaz, que estão a lucrar com o conflito russo-ucraniano, no geral, são grandes importadores de alimentos.

Com um barril de petróleo a custar mais de 100 dólares, os preços dos hidrocarbonetos atingiram seu nível mais alto em dez anos no início da guerra, aumentando significativamente os preços dos combustíveis, especialmente na Nigéria, onde dobraram.

Três semanas após o início da guerra, os custos estão aumentando e, com eles, preocupação especialmente com a segurança alimentar, porque a Ucrânia e a Rússia são importantes fornecedores de trigo e cereais para a África, mas também de fertilizantes mundiais.

Com as sanções contra Moscovo, o preço dos fertilizantes disparou. Uma outra forte ameaça às culturas africanas que provavelmente aumentará ainda mais o custo dos alimentos.

“África é particularmente vulnerável aos impactos da guerra na Ucrânia por meio de quatro canais principais: aumento dos preços dos alimentos, aumento dos preços dos combustíveis, queda das receitas do turismo e potencialmente mais dificuldades de acesso aos mercados de capitais internacionais”, realçou Kristalina Georgieva.

O Banco Mundial, por seu lado, deverá desembolsar 12 mil milhões de dólares nos próximos 15 meses para ajudar os países responderem à crise de segurança alimentar, com quase 7 mil milhões destinados a África e Médio Oriente.

“O Banco Mundial está a trabalhar com os países na preparação de vários projectos, no valor de 12 mil milhões de dólares nos próximos 15 meses para responder à crise de insegurança alimentar”, lê-se no Plano de Ação das Instituições Financeiras Internacionais para Lidar com a Insegurança Alimentar, citado pela agência Lusa.

Os projectos não estão ainda finalizados, “mas vão incluir apoio à agricultura (5,2 mil milhões de dólares), protecção social para acomodar o impacto nos rendimentos devido ao aumento dos preços dos alimentos (3,3 mil milhões de dólares), e sistemas de água e irrigação (2 mil milhões de dólares)”, lê-se ainda no documento, que sintetiza as principais acções de cada um dos seis bancos multilaterais que participam neste esforço conjunto.

A maior parte desta verba de 12 mil milhões de dólares seguirá para África e o Médio Oriente, que receberá 6,9 mil milhões de dólares, cerca de 6,5 mil milhões de euros, seguido da Europa e Ásia Central (1,9 mil milhões de dólares) e Ásia Austral (2,4 mil milhões de dólares).

Secretário-geral da ONU, António Guterres: Uma tempestade perfeita ameaça África

“Aguerra na Ucrânia está a criar uma tempestade perfeita para os países em desenvolvimento, especialmente em África; esta crise está a resultar num aumento exponencial de custos para os alimentos, energia e fertilizantes, como consequências devastadoras para os sistemas alimentares e de nutrição, ao mesmo tempo que torna mais difícil para o continente mobilizar os recursos financeiros necessários para investir no seu povo”, escreveu Guterres.

Numa mensagem alusiva ao Dia de África, 25 de Maio, que ontem se assinalou, aquele responsável salientou que “as perspetivas no horizonte são brilhantes, desde a crescente e vibrante população jovem, a iniciativas como a zona de livre comércio continental” e outras, mas alertou que os desafios são múltiplos.

“África é um lar de esperança”, mas, continuou Guterres, enfrenta “múltiplos desafios” que a impedem de “atingir o seu pleno potencial, incluindo a pandemia de covid-19 e o seu impacto devastador nas economias africanas, a mudança climática, os conflitos por resolver e uma severa crise alimentar”.

Para Guterres, o mundo tem de se “juntar em solidariedade com todos os africanos para fortalecer a segurança alimentar, e colocar a nutrição ao alcance de todas as pessoas”, além de “terminar a pandemia, reforçar o sistema financeiro global, para a mudança climática e silenciar as armas em todos os conflitos”.

A Rússia lançou em 24 de Fevereiro uma ofensiva militar na Ucrânia que já causou a fuga de mais de 14 milhões de pessoas de suas casas — cerca de oito milhões de deslocados internos e mais de 6,3 milhões para os países vizinhos -, de acordo com os mais recentes dados da ONU, que classifica esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Também segundo as Nações Unidas, cerca de 15 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária na Ucrânia.

Macky Sall desloca-se à Rússia e à Ucrânia em representação da UA 

O presidente senegalês, Macky Sall, e presidente em exercício da União Africana (UA), deverá deslocar-se nos próximos dias à Rússia e à Ucrânia. Também pode acontecer, nas próximas semanas, um encontro entre os chefes de Estado africanos e Volodymyr Zelensky, presidente de Ucrânia, que tem estado numa ofensiva diplomática permanente desde que a guerra com a Rússia começou há três meses.

Actualmente na presidência rotativa da UA, o chefe de Estado senegalês disse numa cocletiva de imprensa conjunta com o chanceler alemão Olaf Scholz que recebeu um mandato para fazer uma viagem à Rússia e à Ucrânia. (A Rússia havia enviado um convite nesse sentido.) A viagem, originalmente marcada para 18 de Maio, não pôde acontecer “por questões de calendário”, e foram propostas novas datas.

“Assim que for fixado, naturalmente irei a Moscovo, e também a Kiev, e também concordamos em reunir todos os chefes de Estado que desejam, da União Africana, com o presidente (ucraniano Volodymyr) Zelensky que expressou a necessidade de se comunicar com os chefes de estado africanos”, explicou Macky Sall. “Isso também será feito nas próximas semanas.”

A invasão da Ucrânia pela Rússia dividiu os países africanos. Cabo Verde, que começou por se posicionar ao lado da Ucrânia e do Ocidente, acabou depois por se situar no grupo dos “abstencionistas”, isto é, daqueles que se recusaram a condenar a invasão russa, tendo em conta a sua dependência em relação a Moscovo, não só por causa de contas actuais, como também do apoio político e militar que receberam nos tempos da União Soviética.

A guerra também afectou severamente economias da generalidade dos países africanos, com aumento dos preços dos grãos e escassez de combustível, por exemplo.

“Como atual Presidente da União Africana, expressei ao Chanceler (alemão) as nossas sérias preocupações sobre o impacto da guerra em nossos países, países africanos, o aumento generalizado de preços e escassez”, disse Macky Sall, aquando da sua visita a Berlim.

África cria plataforma de compra conjunta

O Banco Africano de Exportações e Importações w, da Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA) e a Comissão Económica das Nações Unidas para África criaram uma plataforma, denominada Bolsa de Comércio em de África para a compra conjunta de cereais e fertilizantes.

Esta plataforma, que aproveita a experiência adquirida com a pandemia da Covid-19, em que a União Africana agregou a compra de material de combate à doença na Plataforma Africana de Aquisição de Vacinas (AVAT), vem no seguimento de do plano de 1,5 mil milhões de dólares de produção alimentar de emergência do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD). 

O objectivo, como refere um comunicado da UNECA, é congregar num mesmo serviço a compra de alimentos e insumos agrícolas, a preços mais baixos, garantindo ao mesmo tempo que os países com parcos recursos e difícil acesso ao mercado internacional não fiquem para trás.

“Confrontada com uma nova crise, África deve aproveitar a experiência do passado para se recompor uma vez mais. A experiência da Covid-19 mostrou que o agrupamento organizado da procura pode ultrapassar os desafios da cadeia de abastecimento e fornecer bens muito necessários a preços competitivos”, sublinha a UNECA.

A Comissão Económica das Nações Unidas para África lembra que a crise Rússia-Ucrânia “aumentou a pressão sobre as cadeias de abastecimento”, com os esperados aumentos de preços dos produtos agrícolas e factores de produção, como cereais e fertilizantes. Isto, por sua vez, exerceu pressão sobre a “produção doméstica, por vezes, frágil de vários países africanos, que dependem destas cadeias de abastecimento para produtos básicos”, alguns dos quais dependem das “importações para um consumo de trigo até 80%, por exemplo”.

A plataforma facilitará, sempre que possível, a aquisição conjunta por compradores africanos a fornecedores africanos, como no caso dos fertilizantes; e de fora do continente, quando necessário, como no caso dos cereais e grãos, contribuindo assim para a criação de novas cadeias de abastecimento continentais que isolam os africanos da volatilidade que tem caracterizado os últimos anos. (DA com “Expansão”)

Ocidente e Rússia, a fome como arma de arremesso político

“A Rússia está a colocar bombas nos campos da Ucrânia, os navios de guerra russos estão a bloquear dezenas de barcos carregados de trigo”, lamentou esta semana o chefe da diplomacia europeia. Esta afirmação de Josep Borrell surge em resposta a Moscovo que acusa o Ocidente, com as suas sanções, de matar o mundo, sobretudo a África, por fome.

Josep Borrell acusou na segunda-feira a Rússia de “causar a fome no mundo” com a guerra na Ucrânia, destruindo as reservas de trigo e impedindo-a de exportar, especialmente para África.

Antes, também na segunda-feira, a Rússia havia responsabilizado o Ocidente pela crise alimentar global. Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, o país é um exportador “confiável”, mas as sanções impostas depois da invasão à Ucrânia prejudicaram o abastecimento de grãos.

“Nós não somos a fonte do problema. A fonte do problema que leva à fome no mundo são aqueles que impuseram sanções contra nós, e as próprias sanções”, disse Peskov.

Diante disso o chefe da diplomacia da UE comentou: “Os russos culpam as sanções (impostas pelo Ocidente) pela escassez de alimentos e pelo aumento dos preços quando não são as sanções”, afirmou o Alto Responsável da União Europeia para a Política Externa após uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos 27 no Luxemburgo.

“A Rússia está a colocar bombas nos campos da Ucrânia, os navios de guerra russos estão a bloquear dezenas de barcos carregados de trigo”, acusou Joseph Borrell, acrescentando que com isso “causam escassez” e “a fome no mundo”.

“Então parem de culpar as sanções. É o exército russo que está a causar escassez de alimentos. E África é uma grande fonte de preocupação porque está particularmente exposta à crise alimentar que se aproxima”, insistiu Borrell.

Além dos Estados Unidos, na última semana, o secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres, alertara para um “novo recorde” nos níveis globais de fome e para o número de pessoas em insegurança alimentar severa, que duplicou de 135 milhões, no período pré-pandemia, para 276 milhões actualmente.

Segundo o Kremlin, o presidente russo, Vladimir Putin, concorda com a afirmação, devolvendo contudo a responsabilidade pela situação ao Ocidente. Em reunião sobre segurança alimentar organizada pelos EUA, em Nova York, António Guterres apelou à Rússia para permitir “a exportação segura de grãos armazenados nos portos ucranianos” e para que alimentos e fertilizantes russos.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 769, de 26 de Maio de 2022

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