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Sociedade

José Brito: “Há um sistema internacional montado contra África”

Em entrevista ao A NAÇÃO, José Brito, ex-ministro da economia e negócios estrangeiros de Cabo Verde, faz uma análise dos interesses do Ocidente nas riquezas naturais de África. Diz que o continente precisa soltar-se, fala de um sistema internacional montado para tirar proveito do potencial africano, contrapondo uma tomada de consciência e vontade de mudança dos africanos para a mudança. A economia digital, diz, é um caminho.

Cinquenta e nove anos depois da instituição do Dia da Libertação Africana, instituído em 1963, África está longe ainda das mudanças desejadas, especialmente se tivermos em conta a Agenda de 2063 da União Africana, para um continente integrado, económica e socialmente desenvolvido.

A questão, na óptica de José Brito, pode ser vista, até agora, de dois prismas. “Se formos ver, e traduzirmos os indicadores sociais e económicos, estamos nos últimos lugares. Mas se formos ver os indicadores de outra maneira, ou seja, o potencial de África, estamos no Top”, começa por dizer, quando instado sobre o cenário do desenvolvimento no continente africano.

Potencialidades

Perante esse quadro, como explica, diz haver uma contradição entre o que é o potencial de África e o que se verifica no dia a dia do continente. “Isto, é que é a realidade que estamos a lutar”. Um potencial que outros estão a explorar, e não, necessariamente, a própria África.

“Há o potencial em termos de recursos naturais, como os terrenos para a agricultura, em que temos as melhores terras aráveis, em termos de recursos humanos, em que temos a juventude da população africana, e em 2050 vamos ter metade da população jovem mundial e, depois, temos os recursos petrolí- feros e minerais, em que temos as maiores reservas do mundo”, inúmera.

Mas, o mais importante diz, é o potencial humano. “Por isso é que podemos ser optimistas em relação a África, porque o potencial está aí. Porque nós não partimos do nada, temos potencial e podemos crescer”, explica.

Quebrar amarras

José Brito lembra que hoje em dia há países desenvolvidos, em que o potencial de crescimento é fraco, o que não acontece com África, onde, inclusive, há o potencial de consumo, mas onde a “questão de fundo” é a transição para tirar partido do potencial.

Questionado sobre o que tem condicionado essa transição, tendo em conta todas essas potencialidades não aproveitadas, é cirúrgico, e adverte que é preciso “quebrar as amarras” e que isso depende, como sempre, dos próprios africanos.

“Não há dúvidas que há um sistema internacional montado contra África, para tirar proveito do potencial africano. Todo o sistema que está aí vive daquilo que eles podem tirar de África. FMI, Banco Mundial, etc.”, argumenta, acrescentando que “tudo está criado para impedir o crescimento de África”. Um impedimento com base no facto de se querer “tirar tudo o que é matéria prima de África e manter África num nível de incapacidade de governação”.

Nesse contexto, não descarta a questão de haver um certo subsidiarismo, reforçando que, no seu entender, “a governança internacional é extremamente injusta com África”.

O nosso interlocutor argumenta ainda que nesse debate se pode contrapor e dizer que os africanos devem “ficar contentes” com as ajudas que tem recebido.

“É uma ajuda que me permite libertar deles, ou uma ajuda que reforça, a independência de África em relação a eles?”, questiona, para defender que isto é a “questão chave” que África tem “seriamente de pensar”.

Globalização

Neste quadro, insta os leitores do A NAÇÃO a olharem para a crise internacional, particularmente, a crise da covid-19, e a crise da “supremacia branca que estamos a ver nos Estados Unidos ligada ao Trump, etc.”., contra a globalização.

“A globalização foi feita para favorecer os países ocidentais, não contando que os chineses se podiam aproveitar dessa globalização. E, hoje, diante dos problemas, quer-se quebrar o sistema criado por eles”, analisa.

No fundo, um tiro que saiu pela culatra dos “pais” da globalização. Enquanto funcionou em proveito do Ocidente, tudo corria bem e agora “a conversa mudou”.

Só que o problema, diz também, é que o sistema de comunicação é tal, que não permite às pessoas pensarem, realmente.

“Mas quem segue o que se está a passar em África, dá-se conta que, neste momento, há uma tomada de consciência em relação aos problemas de África. Não posso dizer que seja uma consciência generalizada, mas começa haver nos meios intelectuais africanos, e quem segue as redes sociais especializadas, vê que estamos assistir a esta tomada de consciência. De que, efetivamente, como está, não se pode continuar. E que só nós, africanos, podemos mudar isto!”, defende.

Golpes de Estado

Essa mudança de consciências deve-se, também, a um maior conhecimento de quem quer a mudança. Neste particular, remete para o exemplo dos golpes de Estado de agora, que, como explica, são diferentes de antigamente.

“Podemos ver no tempo de Idi Amin (Uganda), em que tí- nhamos chefes militares incultos, incapazes de gerir um país e, hoje, os militares que estão nos golpes de Estado são de um nível intelectual diferente e que estendem estas questões”.

Nesse sentido, lembra que não “é por nada” que o Mali está com “problemas”. “Porque tem lá, digamos, uma elite, não somente militares, porque conseguiram trazer também a população. E essas mudanças são interessantes”, opina.

Diabolização

Por isso, diz, que a arma utilizada, muitas vezes, pelo Ocidente, contra o terceiro mundo, em geral, e em África, em particular, é a política de diabolização dos líderes e exemplifica:

“Diabolizaram Sekou Touré (República da Guiné), Kwamé Nkrumah (Gana e um dos fundadores do Pan-africanismo), Patrice Lumumba (República Democrática do Congo), Modibo Keita (Mali), e toda essa gente que eram grandes nacionalistas e que queriam mudar África”.

Essa diabolização, do Ocidente, afirma Brito, “utiliza a Comunicação Social”, e faz as pessoas acreditarem “esse fulano não vale nada”. Pessoalmente, garante ter visto isso acontecer.

Uma “diabolização” que, como diz, repete-se agora com contra o Putin (Presidente da Rússia). “Pode-se não ter grande simpatia pelo Putin, mas há, neste momento, uma política de diabolização para atingir outros objectivos”.

Futuro

Mesmo apesar dos contratempos de África, ou dessas barreiras ao seu desenvolvimento, José Brito acredita que o futuro do crescimento económico do mundo está em África. “Esse crescimento vai beneficiar a Europa, também, e outros países ocidentais”, garante.

Contudo, reitera que, para isso, a tomada de consciência, é fundamental. “Nós temos de quebrar as amarras e ter outro tipo de políticas para tirar proveito das potencialidades que temos, e estou optimista, porque estou a sentir, pela primeira vez, na sociedade africana, essa vontade de mudar. E, há quatro, cinco anos não sentia e, agora, sinto”. Concluindo que a sociedade civil africana, “da maneira que está a reagir”, demonstra início da tomada de consciência da “injustiça do sistema” e “querem mudar isto”.

Olhar África com outros olhos

José Brito apela ainda a se olhar para África onde há “coisas extraordinárias a acontecer”, porque se nós não aproveitarmos esta vaga de mudança, “os outros vão se aproveitar”.

E dá o exemplo da Alemanha. “Temos de nos perguntar porque é que a Alemanha está tão interessada no Mali e enviou tropas, etc. Nós, estamos neste continente, que toda a gente está a cobiçar, neste momento. E continuamos a dizer que é melhor ir para o mestre do Norte, ficar na zona de conforto, porque as pessoas não conhecem África. O cabo-verdiano não conhece África”.

Outro exemplo é as Canárias, que, segundo diz, está a fazer tudo para ganhar o mercado da CEDEAO. “E nós, se compararmos, o que é que estamos a fazer?”, questiona, alertando que é preciso mudar mentalidades.

“Depois dizemos que não temos possibilidade de ganhar o mercado da CEDEAO, que são todos corruptos e é isto que usamos como linguagem”.

Relativamente ao propalado mercado da CEDEAO, no qual Cabo Verde anda a tentar há anos entrar, José Brito lamenta que as pessoas ainda não estejam a ver a “importância” dessa comunidade para Cabo Verde. “Há outro aspecto, a CEDEAO não conhece Cabo Verde e os africanos não conhecem Cabo Verde e temos de promover o nosso país para sermos mais conhecidos”, apela.

E conclui, olhando para o caso particular de Cabo Verde, enquanto país mestiço: “No mestiço, a parte africana representa o fracasso e a parte europeia representa o sucesso, mas temos de ver África como parte do sucesso e não do fracasso”, conclui.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 769, de 26 de Maio de 2022

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