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Educação

Raffaella Gozzelino, ex-reitora da UTA: Utilizada e descartada para fins “políticos e eleitoralistas”

Raffaella Gozzelino, quadro superior recrutado na diáspora para dirigir a Universidade Técnica do Atlântico (UTA), parte com a sensação de ter sido “usada” e “descartada” por interesses políticos e partidários. Palavras amargas que não deixaram de ter resposta do ministro Amadeu Cruz que assegura que as razões da escolha de uma nova equipa reitoral da UTA são outras.

A residir, na altura, em Portugal, mas com vínculos ao seu país natal, Itália, Raffaella Gozzelino foi nomeada reitora da Universidade Técnica do Atlântico (UTA) em Agosto de 2020, e iniciou as suas actividades em Janeiro de 2021, quando passou a ter orçamento para esse efeito.

Para a sua surpresa, após a sua tomada de posse, o seu vice-reitor pediu exoneração, deixando com isso de haver “alinhamento” da equipa directiva e reitoral em relação ao plano estratégico de implementação da UTA, segundo fundamentou, em entrevista ao A NAÇÃO.

“A minha saída, para resumir, foi devido a uma equipa reitoral que não partilhava as mesmas visões e as mesmas estratégias de implementação da universidade. Eu fui chamada para Cabo Verde e fui convidada para assumir o cargo, para trazer uma mudança e uma transformação que ainda não existia em Cabo Verde e para alinhar a política de internacionalização que o país pretende”.

Silêncio e falta de posicionamento do Governo

Raffaella Gozzelino diz ainda que esse momento ficou marcado por uma falta de posicionamento por parte do Estado, tendo em vista o acordado e a divergência de ideias que se sentiu desde o início, no seio da recém-formada instituição.

Esse silêncio, no seu ponto de vista, mostra que a intenção do Governo, desde o início, era voltar à forma tradicional do sistema de ensino, e não implementar o que era, desde o princípio, o motivo da sua nomeação, trazendo-a de Portugal onde se encontrava.

“Todo o período prévio à entrada do orçamento, desde promoção, visibilidade e parcerias implementadas, foi feito através de esforços pessoais, porque eu sentia que tinha que investir, para além do meu tempo, num projecto que realmente acreditava e continuo a acreditar, por ser fundamental ao país”, apontou.

Interessemeramente políticos e partidários

Raffaella Gozzelino confessa-se decepcionada, uma vez que não teve o tempo para a implementação efectiva da UTA, um processo que, segundo diz, é difícil de ser concluído num ano, ainda por cima, nas condições de Cabo Verde.

“Não se pode pedir em ano que seja implementada uma universidade sem constrangimentos, sem desafios, tendo em conta também a mudança que fui chamada para fazer”, analisa, especulando que, por conta do período eleitoral posterior à sua nomeação, pode ter sido vítima de interesses meramente políticos e partidários.

“Esta é a minha especulação. Sinto que fui um pouco utilizada, para mostrar que há uma aproximação à diáspora, para além da financeira, e para mostrar também que Cabo Verde, após mais de 30 anos de reivindicações, começou, finalmente, a pensar a diáspora de forma diferente”, sublinha. 

No seu entendimento, o Estado cabo-verdiano não pode mostrar essa aproximação e depois recuar, com o processo a culminar no afastamento dos quadros da diáspora, quando não há competências deste nível no país.

“Não está em causa o caso Raffaella, porque eu encontro trabalho noutro lado. Mas, desencoraja muitos quadros lá fora, que já estavam prontos para contribuir para o ensino superior cabo-verdiano, porque se mostra uma aproximação, depois a diáspora é marginalizada e não é ouvida”.

Exigência de “lealdade” partidária

A mesma diz que já tinha sido alertada por colegas para o risco da partidarização, algo que mina a vida em Cabo Verde, motivo pelo qual, no seu discurso de tomada de posse, alertou para a não partidarização do conhecimento.

“Já no meu discurso de tomada de posse, e porque já tinha sido alertada por colegas lá fora para essa problemática, defendi que o conhecimento não tem cor e está acima de qualquer disputa política”, recordou.

A diáspora, segundo entende, vive a política de forma muito crítica, mas também muito afastada, pois quer contribuir para o país, independentemente de quem esteja a governar.

Diante deste quadro traçado, diz que há muitos cabo-verdianos lá fora que estão desiludidos e que “haverá certamente iniciativas a serem tomadas, porque chegou a hora de mostrar que Cabo Verde é o nosso país”, e precisa “tomar uma atitude mais proactiva para integração e valorização da sua diáspora”.

“Sempre se fez assim”

Tendo em conta a resistência que diz ter encontrado na UTA, Raffaella Gozzelino diz que, se Cabo Verde quer abrir-se ao mundo, terá de seguir determinadas metodologias de trabalho que o mundo utiliza. Mas, sublinha que, para que isso seja realmente implementado, é necessário que haja um “alinhamento de visão”, o que não se verificou no caso da UTA.  

“Daí o senhor vice-reitor ter pedido, logo no primeiro de Março, a exoneração. Infelizmente, não foi exonerado, não obstante as propostas de substituição apresentadas e isso criou uma instabilidade enorme dentro da Direcção da UTA, que levou, também, a constrangimentos em termos de visão e  de projectos apresentados”, revela.

Neste ponto, considera ainda grave o facto de, apesar do pedido de exoneração e de ter deixado de exercer o cargo, ficando apenas como docente, o vice-reitor tenha continuado, por algum tempo, a receber o salário inerente ao cargo, não obstante o discurso de falta de orçamento para a requalificação dos quadros docentes e não docentes e um estado de restrições financeiras em que se encontrava a universidade e o país.

A elevação do nível de qualidade da formação no país, alerta a entrevistada do A NAÇÃO, só será possível através de um programa de capacitação que vem de fora, e nunca “de dentro para dentro”, tendo em conta que as competências internas são as mesmas.

“Em vez de pensar que, se sempre se fez assim, é hora de mudar as coisas, se continua com a mesma política tradicional. E a UTA é um caso gritante, porque eu não teria a necessidade de vir para cá, se voltam a repor exatamente as mesmas pessoas que estavam antes da minha vinda”, questiona.

“É algo que eu considerei grave, porque quando a diáspora é chamada a contribuir, é chamada também para fazer um diagnóstico daquilo que se encontra aqui. E esse diagnóstico não é para criticar negativamente aquilo que se encontra no país. É para procurar soluções, independentemente de ser soluções de fácil implementação ou não, se serem soluções que se podem encontrar dentro do país ou não”, apontou.

O que procuravam, segundo diz, era uma adaptação da diáspora à realidade do país, o que, do seu ponto de vista, é como se as competências da diáspora fossem marginalizadas ou profissionalmente inferiorizadas, porque ela efetivamente não foi ouvida.

“Falo de diáspora porque de forma alguma quero promover o que aconteceu comigo, eu não sou a primeira e não serei a última pessoa, quadro da diáspora, que foi convidado para vir para Cabo Verde e encontrou essas dificuldades. Por isso é que perguntamos se Cabo Verde realmente quer ou não o envolvimento da diáspora no seu desenvolvimento”, questionou.

“A diáspora é mais do que uma carteira que abre e fecha para investimentos”

Filha de mãe cabo-verdiana e pai italiano, nascida na Itália, Raffaella Gozzelino é doutorada em Biologia Celular e Neurobiologia, pela Universidade de Lérida, Espanha.

Até à sua nomeação para reitora da UTA, em 2020, era docente e investigadora da Universidade Nova de Lisboa (UNL).

Infelizmente, do seu ponto de vista, a diáspora é vista em Cabo Verde como uma “carteira” que apenas se abre e se fecha para financiar a economia do país, mas que pode ser mais do que isso, sobretudo nos domínios do ensino superior, da ciência e da tecnologia.

“Este, obviamente, é um diálogo que passa pelas universidades, enquanto detentores do conhecimento. E é por isso que a diáspora também quer contribuir no que toca a remessa de conhecimentos”, pontuou na entrevista ao A NAÇÃO.

Alertou ainda que o facto de se ouvir falar da diáspora quase sempre do ponto de vista económico e financeiro tem causado um certo descontentamento.

“Embora ela continue a contribuir para o PIB, para a economia do país, investindo no país e deixando o próprio dinheiro nos bancos do país, há também uma diáspora de segunda, terceira e quarta geração, que já não tem ligações com Cabo Verde e que se não se promover um outro tipo de aproximação que não seja financeira, essa diáspora irá ser perdida”, adverte.

Entretanto, e porque o mundo não pode parar, apesar dessa alegada reticência, Raffaella Gozzelino alerta que na busca da internacionalização “chegará o dia em que Cabo Verde precisará dar o salto, com ou sem a diáspora”.

Amadeu Cruz, ministro da Educação e Ensino Superior: “O nosso foco é a implementação da UTA”

O ministro da Educação e Ensino Superior, Amadeu Cruz, garante que na base do afastamento de Raffaella Gozzelino não estiveram as competências da mesma, nem a internacionalização do ensino, mas a implementação, pura e simples, da Universidade Técnica do Atlântico (UTA), que não foi conseguida pela anterior equipa reitoral.

Raffaella Gozzelino “é uma reputada cientista e investigadora”

Espera-se, igualmente, que a nova direcção, a empossar esta quinta-feira, cumpra os objectivos. 

Contactado para reagir às afirmações da ex-reitora da UTA, Amadeu Cruz frisou que Raffaella Gozzelino “é uma reputada cientista e investigadora”, com um currículo bastante extenso e que não estão em causa as suas competências.

“O que está em causa é a implementação da Universidade Técnica do Atlântico (UTA). É uma universidade nova, criada pelo Governo para fortalecer a capacidade de resposta do ISECMAR em São Vicente e alargar o ensino nas ilhas do Sal e de Santo Antão. E é neste contexto é que temos que avaliar aquilo que foram os resultados”.

Segundo disse, o governo precisa acelerar o processo de implementação da UTA, e depois alinhar o ensino superior com as melhores práticas internacionais.

E que para isso era necessário que houvesse um diálogo normal dentro da própria UTA, que houvesse a instalação dos órgãos, um diálogo com os professores, funcionários, alunos e com as autoridades locais, para que houvesse, de facto, condições para, em primeiro lugar, implementar a universidade.

“O modelo colegial de funcionamento da equipa reitoral fracassou”, reiterou.

 Quanto à alegada resistência à inovação, Amadeu Cruz considera que esta é uma questão “mais interna, da própria capacidade de diálogo entre a reitoria e comunidade académica no sentido de adoptar as melhores práticas”.

 “Do ponto de vista do governo, o que mais importa era a implementação da própria universidade e o processo de instalação”, reafirmou.

 Diáspora tem “participação activa” no desenvolvimento

No tocante à diáspora, Amadeu Cruz considera que a comunidade cabo-verdiana lá fora tem um “espaço de participação activa” no país, “a todos os títulos e em todos os domínios, e mesmo ao nível do ensino e da investigação”.

O facto de o governo ter feito alterações na composição da equipa reitoral da UTA, e de preferir uma reestruturação, acrescentou, não quer dizer que não haja uma enorme consideração para com os quadros da diáspora.

“Antes pelo contrário, nós valorizamos, e por isso é que esteve cá agora a Raffaella”, sublinha.

No que toca à alegação de aproveitamento político, o ministro diz que “esta é uma leitura política”, que nada tem que ver com os interesses do Ministério da Educação.

“Já não é uma leitura mais académica. Ela saberá o que é que estará a dizer, mas, nós, o nosso interesse é a implementação efectiva da universidade.”

 Espera-se que nova equipa cumpra o objectivo

Uma nova equipa reitoral é empossada esta quinta-feira, no Mindelo, da qual o ministro espera que se cumpra aquilo que é a carta de missão e que realize os objectivos da UTA.

“Em primeiro lugar, consolidar o ISECMAR como uma unidade orgânica de referência da própria universidade, alargar a capacidade de oferta formativa, mas aprofundando também os aspectos de investigação e qualidade do ensino”, exorta.

A estes objectivos se juntam, igualmente, o alargamento do ensino superior na área das ciências agrárias em Santo Antão e na área da aeronáutica e indústria turística na ilha do Sal.

“Esperamos que haja um diálogo efectivo entre a equipa reitoral e a comunidade académica da UTA, e particularmente que os órgãos de gestão e de governança da universidade estejam efetivamente nomeados, nos termos estatutários, e que estejam a funcionar”, termina.

Raffaella Gozzelino foi exonerada do cargo de reitora da Universidade Técnica do Atlântico (UTA), no passado dia 22 de Abril.

Através da resolução Nº21/2022 do Conselho de Ministros, publicada no Boletim Oficial, o Governo nomeou uma nova equipa reitoral, formada por João do Monte Duarte, na qualidade de Reitor, e ainda por Luís Jorge Fernandes e Lia Cordeiro Medina, na qualidade de vice-reitor e pró-reitora, respetivamente.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 767, de 12 de Maio de 2022

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