Michel Henri Kokra de Pina, de origem cabo-verdiana e marfinense, conheceu Cabo Verde em 2015 e obteve nacionalidade em 2017, após cerca de 30 anos de pesquisa dos documentos dos avós e bisavós. Segundo diz, a esmagadora maioria da nossa comunidade na Costa do Marfim não tem documentos cabo-verdianos e sente-se negligenciada pelo Estado. É preciso que a «décima primeira ilha” saia do discurso e passe a ser na prática, exorta.
Advogado e consultor nas áreas de investimentos e propriedade intelectual, Michel de Pina nasceu em Abidjan, filho de mãe cabo-verdiana, da ilha do Fogo, e pai marfinense. Durante 30 anos tentou reunir os documentos dos avós e bisavós, mas só conseguiu em 2017, após começar a frequentar Cabo Verde, já que, segundo contou a este jornal, o cônsul honorário instalado no país só responde a necessidades muito básicas da comunidade. Com todos os documentos em mãos, obteve a nacionalidade seis meses depois.
Pina é actualmente presidente da Sodade – Associação da Diáspora Cabo-verdiana na Costa do Marfim, que se dedica à promoção da cultura cabo-verdiana no país, e que integra a volta de 1500 cabo-verdianos de origem, descendentes de 3ª e 4ª gerações. Uma das suas maiores reivindicações é conseguir estabelecer ligações com Cabo Verde e obter o direito à cidadania.
“Há provavelmente comunidades maiores noutros países, como o Senegal. Mas, é uma comunidade muito bem integrada. Estamos presentes em todos os níveis da sociedade marfinense, desde executivos, artístas, comerciantes, advogados, juízes, médicos, professores universitários, entre outros”, sublinhou, lamentando, por outro lado, que maioria detém a nacionalidade marfinense mas, “curiosamente”, não a nacionalidade cabo- -verdiana.
11ª ilha só nos discursos
Apesar dos esforços do cônsul honorário e dos da associação, a comunidade, diz, sente-se “esquecida” e “negligenciada”. “Por exemplo, os nossos jovens precisam de bolsas de estudo, mas não podem aceder-lhes porque não têm nacionalidade cabo- -verdiana”.
O Estado cabo-verdiano, segundo disse, deve criar um mecanismo especial e sustentado, que permite à diáspora assumir os seus direitos de cidadania, para além das “promessas das várias delegações oficiais que visitam Abidjan”, sem que nenhuma seja cumprida.
“Temos de facilitar a procura de documentação que permita aos nossos membros rastrear as suas origens, o que deve resultar na disponibilidade de arquivos para a realização desta investigação”, sustenta Michel de Pina.
Uma vez recolhida esta documentação, explicou, os meios devem ser implementados para que os compatriotas possam, sem ter de viajar para Dakar ou Praia, ter os seus passaportes e CNI emitidos em Abidjan, ou em qualquer outro lugar onde vivem.
Ainda, pede que seja fornecida ao Consulado uma mala para recolher dados biométricos, dotando-o dos meios necessários para a sua missão ou, ainda, construindo um ambiente colaborativo eficaz à sua volta e à volta da associação, para resolver os problemas dos compatriotas.
“Nós, os cabo-verdianos, estamos dispersos, não só fisicamente, mas também culturalmente. Há quem viva no arquipélago e nós da diáspora, que todos dizem ser a “décima primeira” ilha. Como tal, ela deve ser ouvida no seu pedido de reconhecimento, por ações concretas que vão transpor este slogan para a realidade e que nos fará cidadãos completos como todos os outros, em particular, exercendo o nosso direito de voto nas eleições nacionais”, exortou.
Sede de reconhecimento e risco de desinteresse
O Estado, segundo o jurista, deve continuar a envidar esforços no sentido de aproveitar as valências da sua diáspora, nomeadamente a africana, que “dispõe de recursos humanos de qualidade, capazes de trazer valor acrescentado ao nosso país”, mas que muitas vezes é esquecida, em detrimento da diáspora europeia ou americana.
Se nada for feito nesse sentido, perspectivou, poderá aumentar o desinteresse de muitos no país, aumentar o esquecimento e fazer com que muitos desapareçam sem nunca ter visto Cabo Verde.
“Assistimos, impotentes, ao desaparecimento gradual da própria memória de Cabo Verde na nossa comunidade. Já muito poucos de nós ainda falam crioulo e os jovens estão a afastar-se cada vez mais dele. Os nossos compatriotas desencorajam-se a ver os seus esforços para obter o reconhecimento da sua nacionalidade constantemente adiados, por razões de morosidade administrativa”, adverte.
Michel Henri de Pina congratula-se com a existência de deputados da diáspora no parlamento, mas diz que gostaria que, para além desta forma de representação, um país como Cabo Verde pudesse abrir um lugar direto para a sua diáspora, que representa mais de 3/4 da sua população, através da criação de um Conselho da Diáspora, com voz assessoria sobre questões de interesse nacional.
Integração económica na África Ocidental
“É fundamental resolver o isolamento do país”
Ainda que não tenha planos para fazer grandes investimentos pessoais em Cabo Verde, o consultor espera, através de um trabalho que já está a desenvolver, atrair investidores no mundo dos negócios na África Ocidental, tendo por base que Cabo Verde oferece “muitas oportunidades interessantes”, em vários sectores.
Esse trabalho será feito, segundo diz, através da criação, na Praia, de um gabinete de consultoria, para apoiar empresas cabo- -verdianas que desejam projetar- -se no mercado “natural” e de “dimensão gigante”, que é a África Ocidental.
“Para dar uma ideia, só a cidade de Abidjan tem mais de 5 milhões de habitantes, enquanto a CEDEAO tem um PIB de 628 mil milhões de dólares e uma população estimada em quase 350 milhões de habitantes. É absolutamente essencial que a iniciativa privada cabo-verdiana consiga com o apoio do Estado, resolver os problemas de isolamento do país, principalmente marítimo, que ainda me resta um mistério”, considera.
Neste âmbito, estranha que, apesar da presença de mais de 20.000 compatriotas em Senegal, não exista uma linha de envio regular entre Dakar e Praia, “sem mencionar transbordos de outros países africanos para Cabo Verde”.
“Penso que a criação de um armamento nacional é essencial e urgente para o desenvolvimento comercial de Cabo Verde, sem o qual os esforços do Estado para atrair investidores poderiam ser diminuídos, devido à falta de meios de distribuição dos produtos no continente”, alerta.
Os amigos e colegas que traz para Cabo Verde, garante, tiveram, até agora, uma apreciação muito favorável, mas, com o mesmo pensamento de que “CaboVerde não está em África”.
“Para o visitante, Cabo Verde muitas vezes parece estar mais desenvolvido, embora seja necessário chegar a acordo sobre o significado deste conceito. Mas, em geral, é verdade que, mais do que arranha-céus, é o nível de desenvolvimento humano, o elevado nível de alfabetização, de saúde, de segurança e paz pública – quando comparado com outras realidades africanas – , das infraestruturas e, sobretudo, das instituições republicanas e o seu funcionamento”, explica.
“É um tesouro que deve ser preservado a todo o custo. Orgulhamo-nos da excelente reputação internacional de Cabo Verde em termos de governação, responsabilidade social, desenvolvimento integrado, especialmente o desenvolvimento da cultura que, em minha opinião, é hoje a primeira indústria do país, depois do turismo”, apontou.
Uma vida entre Cabo Verde e Costa do Marfim
Michel Henri Kokra de Pina, 62 anos, casado e pai de três filhas, visita Cabo Verde, onde tem famílias e amigos, entre três e quatro vezes por ano, desde que “descobriu” a outra metade da sua identidade. Acompanhado da esposa, Mama de Pina, marfinense, mas que hoje, também, já é cidadã cabo-verdiana, o casal divide os seus meses entre a cidade da Praia, onde mantém um apartamento, e a Costa do Marfim. Com igual sentimento de pertença nos dois países, desejam poder passar mais tempo em Cabo Verde, assim que se reformarem.
“Sempre me recusei a apagar ou privilegiar uma parte da minha identidade, que é, naturalmente, complexa, mas que não permaneceria se fosse amputada de um dos seus componentes. Sou, portanto, totalmente marfinense e cabo-verdiano. Estamos aqui a falar de sangues e culturas que, mesmo misturados, se expressam juntos de forma equilibrada e assumida na mesma personalidade”, elucida.
Para localizar familiares em Cabo Verde, contou com a ajuda da pesquisa genealógica e dos testes de ADN, que permitiram documentar a história da família e expandir muito a sua linhagem.
Neste quesito, felicita o Estado de Cabo Verde pelos “importantes esforços desenvolvidos para dispor e divulgar um Estado civil extremamente bem conservado, que serve de exemplo a muitos países africanos”.
“Descobrir Cabo Verde foi uma experiência avassaladora para mim e para a minha família. Lembro-me de uma grande amiga, que me perguntou se eu tinha vindo “levar a minha parte das pedras”. Sim, é mais ou menos isto. Mesmo que haja apenas isso, estou feliz por fazer parte dele e de tomar a minha parte neste país com o qual forjei uma ligação quase mística”, sublinha.
Naquilo que lhe toca, diz que está à disposição das autoridades cabo-verdianas para colaborar no que estiver ao seu alcance, bem como de qualquer empresário ou investidor que deseje aproximar-se do mercado da África Ocidental.
Michel fez todos os seus estudos na Costa do Marfim, desde o jardim de infância até à universidade, tendo- -se formado em Direito e advocacia. Atua no ramo de Direito Empresarial de Ohada e propriedade intelectual, para além de ser agente credenciado em propriedade industrial, autorizado pela organização africana de propriedade intelectual – OAPI.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 767, de 12 de Maio de 2022