Por: Germano Almeida
São três magníficos:
-ANTÓNIO ANDRADE LOPES TAVARES
-JOSE ANTÓNIO TAVARES
-QUINTINO CASTRO TAVARES.
Justifica fixar esses nomes, respeitá-los e até mesmo reverenciá-los. São todos doutores em direito e foram convidados de João Silvestre Alvarenga, numa live sobre “Estado de Direito Democrático”, com incidência na prisão do deputado Amadeu Oliveira.
Não vou aqui esmiuçar as intervenções de cada um, tanto mais que em conjunto estão todos de acordo: o deputado Amadeu Oliveira está ilegalmente preso! Todos concluem que no caso do Amadeu a “emotividade” (dos magistrados) tomou o lugar da razão. Tomou o lugar das regras, tomou o lugar dos princípios. É uma vergonha, acabam por concluir, que os cabo-verdianos em geral, mas particularmente a classe dos advogados e alguns magistrados, continuem assistindo passivamente a esse abusivo descalabro na nossa ordem jurídica.
Confesso ter-me sentido confortado. Afinal não são todos os cabo-verdianos que preferem fechar os olhos e os ouvidos a uma injustiça que certamente a todos incomoda. Há afinal alguns, caso do advogado José António Tavares, que assumiu dar a cara na crítica a uma decisão de um juiz que certamente envergonha qualquer jurista.
Porém, a esses três, parece mais incomodar a evidente cumplicidade dos poderes soberanos deste país numa ilegalidade grosseira e que apenas a vingança pessoal (pois que não existe vingança institucional!) pode, não já justificar, antes pelo menos fazer compreender. Afinal, dizia alguém, se a vingança é o supremo prazer dos deuses, como não aceitar que também seja dos simples mortais?
Porém, sob o cacete vingador e vingativo do desembargador Simão Santos, todas as ofensas e insultos, sejam grandes, pequenos, médios ou mesmo ínfimos cometidos pelo advogado Amadeu Oliveira contra alguns magistrados, já devem estar mais do que saldados pelos quase oito meses de cadeia que ele já acumula.
O facto, porém, é que, mais tarde ou mais cedo, o Amadeu acabará por ser solto. Com ou sem julgamento, com ou sem condenação, ele será certamente libertado, porque as próprias medidas de segurança acabam tendo um limite temporal. E então, a pergunta nacional que teremos que fazer, será esta: como é que a História vai julgar esta IX Legislatura do nosso órgão máximo de poder dito democrático? Que se vai dizer do órgão supremo do poder do Estado de Cabo Verde, o órgão de soberania por excelência, que no ano de 2021 se permitiu relegar ao inquisitorial poder dos juízes um dos seus membros, sem nunca se ter preocupado sobre as condições legais estritas que devem rodear a prisão de um deputado?
Isso por um lado. Porque também a magistratura judicial, particularmente o desempenho do desembargador Simão Santos, não poderá nunca sair ileso desse cruel e vingativo atoleiro em que aceitou meter-se. Porque SS é um juiz de carreira, já com anos de serviço, já com tarimba, até que já chegou a desembargador. Não é, pois, um inexperiente, antes pelo contrário. Assim, admitamos uma sua eventual dúvida, ainda que na verdade pouco razoável, sobre se sim ou não o Amadeu, enquanto deputado, cometeu um crime de atentado contra o Estado de Direito quando acompanhou um indivíduo a sair do país. Admitamos essa subjetividade, assim uma espécie de uma dúvida existencial, como se diz e com razão, cada cabeça sua sentença.
Mas já quanto a um deputado não poder ser preso fora de flagrante delito sem previamente ter havido uma decisão da Assembleia Nacional proferida sobre um despacho de pronúncia judicial, sobre isso já não pode haver qualquer sombra de dúvida, isso já é algo objetivo, está claramente nas leis, preto no branco, nenhum oficial de justiça o ignora porque não é sequer suscetível de dúbia interpretação. Portanto o desembargador Simão Santos sabe-o, sempre o soube. E tendo, não obstante essa certeza, despachado no sentido da prisão do deputado Amadeu Oliveira após o primeiro interrogatório a que o sujeitou, sem estar para tal legalmente autorizado, esse facto inadmissível deve ser justamente considerado um ato de má-fé, ou de abuso de poder. Vindo da parte de alguém a quem a comunidade atribuiu a dignidade de juiz de direito, de julgador, enfim, alguém que tinha o dever de ser exemplo para nós outros, portanto acima das mesquinhas paixões do dia-a-dia.
Mais grave: o desembargador Simão Santos errou, é certo, porém teve tempo mais que suficiente para arrepiar caminho. Mas não, não o fez, optou por persistir no erro, e ainda persiste, cada vez com maior abundância de argumentação. E assim, há oito meses, um homem está amargando a cadeia, não porque a lei assim o ordena, mas antes pelo simples capricho de um juiz, que, pela especial função que está encarregado de desempenhar na sociedade, tem o absoluto dever de não se deixar dominar pelas paixões.
Sendo juiz-desembargador, o dr Simão Santos está certamente em rota de alçar à veneração do Supremo Tribunal de Justiça. E seria natural, se não tivéssemos que perguntar, com toda a franqueza e lealdade que a situação impõe, se Cabo Verde merece ter como juiz no Supremo Tribunal de Justiça alguém que descaradamente ignora e viola os elementares princípios do direito. Porque não se admitindo, sequer como hipótese, que o senhor juiz-desembargador desconheça os cuidados que rodeiam a figura de deputado da nação enquanto no exercício de funções, há que concluir que ele esteve e está cometendo um crime de prevaricação (art. 328º CP: “O juiz que, contra o direito e com intenção ou a consciência de prejudicar ou beneficiar alguém, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos em processo criminal, proferir despacho ou sentença que tenha por consequência a privação da liberdade de uma pessoa ou a sua manutenção de forma ilegal, será punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”) prendendo e mantendo preso um deputado no exercício de funções, sem o mesmo estar pronunciado por juiz competente e sem estar de mandato suspenso. Em 1979, nós em regime de partido único, um deputado foi detido e levado pela Polícia ao Tribunal de S. Vicente para ser julgado, acusado de um qualquer crime. Só com prévia autorização da Assembleia Nacional, despachou o juiz sem sequer tomar conhecimento da acusação. Por maioria de razão, agora que se diz que vivemos em regime democrático, deveria ser por maioria de razão, a menos que se aceite termos um quarto órgão de soberania: o governo dos juízes!
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 761, de 31 de Março de 2022