PUB

Convidados

Guerra na Ucrânia: hipocrisia e demonização do outro

Por: Mário Elisandro Gonçalves*

Questionei o porquê dos conflitos violentos na Ucrânia ter uma cobertura mediática sem precedentes. Da BBC à CNN, 24 sobre 24 horas, se falam deste conflito, fazendo aparecer que é o conflito violento mais grave e alarmante que o mundo tem registado no pós-segunda Guerra Mundial. Até que não deixa de ser, pois os beligerantes, diferente do que se possa pensar, não é a Rússia vs Ucrânia, mas a Rússia contra o Ocidente, ou melhor, o Ocidente contra a Russia. Contudo, tivemos e continuamos a ter conflitos violentos cujos impactos na vida de milhões de pessoas são alarmantes. Da Síria ao Iémen passando pela República Centro-Africana, milhões de pessoas continuam a sofrer com o flagelo da violência armada.

Percebi, contudo, que o que está em causa não é o conflito armado em si, a dita ‘invasão Russa à Ucrânia’, muito menos a deslocação e o sofrimento dos civis, mas sim a geografia do conflito armado e a identidade do dito agressor e agredido. De fato, se se tratasse da invasão de um Estado soberano a outro Estado soberano e/ou sofrimento e deslocação de civis, os Estados Unidos da América e alguns dos seus aliados Ocidentais, membros da NATO, sofreriam, assim como a Rússia neste momento, sanções pelas invasões e destruição do Afeganistão e do Iraque, por exemplo, ou pela colaboração com a Arábia Saudita na invasão do Iémen, cujos catástrofes humanitários se alastram. O que está em jogo é a postura do Outro ‘agressor’, a Rússia, tida e tratada, durante décadas, como inimiga/“maior ameaça à segurança europeia”, e pelo fato do país ‘agredido’ ser um país europeu. Contrário dos povos do Médio Oriente e da África, os cidadãos deste país (Ucrânia) “são brancos de olhos azuis”, são seres  humanos.

É latente neste conflito violento, onde a Ucrânia se afigura como um pião no tabuleiro dos poderosos, Ocidente sob a liderança dos Estados Unidos da América e a Federação Russa, a hipócrita ocidental, a sua estratégia de demonização do ‘Outro’. Estratégia esta bem aceite por aqueles que se recusam a pensar, e se deixam levar pela manipulação mediática. Foi sem pudor que a mesma media ocidental ajudou a demonizar o ‘Outro’ durante as invasões do Afeganistão e do Iraque e na destruição da Líbia. Quem se atreve a apresentar argumentos cônscios que desafiam a retórica pré-estabelecida, o argumento padrão é, quase sempre, excluído. Aliás, a mim não me estranha que, sendo os defensores da liberdade de expressão’, tenham bloqueado todos os meios de informação russa (do Sputnik à RT), de modo que nenhum cidadão no território europeu consegue ter acesso à outro lado da informação e tirar conclusões próprias.

Com a invasão do Médio Oriente, os invasores, os agressores, os destruidores conseguiram demonizar o ‘Outro’ fomentando o ódio e a Islamofobia cujas consequências nefastas continuam presentes, principalmente no mundo Ocidental. Agora estamos a assistir a fomentação do que podemos denominar ‘russofobia’ cujas consequências ainda se desconhecem. O que não ficou claro, o que os meios de comunicação ocidentais têm tentado esconder, e têm conseguido em certa medida, é a  responsabilidade do Ocidente neste conflito violento. Afinal, porque é que a Russia decidiu ‘invadir’ a Ucrânia e porque é que o Ocidente reagiu da forma como reagiu? Quais os objetivos e interesses do Ocidente neste conflito violento?

No meio disso tudo, me preocupa o fato de alguns líderes/países periféricos não perceberem que, em certas matérias, a neutralidade é mais do que uma questão de bom senso, é uma questão de sobrevivência.

* Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) e Centro de Estudos Sociais (CES)

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 761, de 31 de Março de 2022

PUB

PUB

PUB

To Top