Por: António Andrade
Dany Mariano e João Cirilo são dois grandes artistas reconhecidos pelos cabo-verdianos na área musical tradicional da nossa terra, cada um ao seu estilo que merecem ser destacados como dos maiores da nossa mundivivência musical, sendo que um canta e toca violão e outro canta e toca acordeão respectivamente (Dany viola e João acordeão).
São exímios executantes desses instrumentos, que juntam à voz um dos seus principais recursos, emprestando ao ambiente identitário cabo-verdiano com as suas composições e interpretações – como a melhor coisa que há neste mundo, proporcionando prazer em ouvir e deleitar o quanto fizeram pela música, tranquilizando-nos o espírito e a alma, tanto no momento da solidão, como nas horas de ócio ou de divertimento, tornando a nossa vida agradável de viver.
Quando Dany Mariano gravou o LP RAÍZES em 1980 com a Label Discos Monte Cara, num momento de transição da música do arquipélago – na minha opinião numa clara ideia para produzir uma coisa melhor – do que dantes vinha sendo feito, designadamente no âmbito da morna, da coladeira, do funaná e do batuco, fê-lo ainda com determinados objectivos, isto é, de divulgar o seu espólio de uma forma diferente, à vivência de então e para a posteridade.
João Cirilo teve idênticos objectivos, num tempo em que o funaná dava os seus primeiros passos rumo à modernidade – tendo Katchás à testa -, fê-lo igualmente seguro e da melhor forma, com aquele disco denominado “PÓ D´TERRA-RAÍZES” por ele gravado em 1982, através da Label Edição Táki-Talá, curiosamente ambas situadas em Portugal que era o pais ideal para gravação e com orquestração do mestre Paulino Vieira e seu conjunto Voz de Cabo Verde, sendo que no do Dany houve ainda a participação do maestro Jotamont e do Tey Santos.
Apesar da beleza e da organização melódica estar em conformidade com as letras e não só.
Também ao facto dos discos terem sido muito tocados em diversos locais nomeadamente nas rádios e sobretudo em restaurantes, salões de bailes, discotecas, hotéis, festas de romarias, nos hiaces e noutros veículos que circulavam pelas estradas das localidades etc., ninguém se imaginava que nos dias de hoje os dois Lp´s se tornariam numa referência incontornável da vivência de todo um povo de uma determinada sociedade – Sotavento para Cirilo e Barlavento para Mariano.
De tal modo, que aos dias que correm, se pode afirmar convictamente que não só a faixa “MIÉ DODO NA BÔ CABO VERDE”, como o é “PÓ D´TERRA”, pois, ambos identificam claramente a cultura identitária e unitária do arquipélago, mas proveniente de duas regiões afastadas uma da outra dentro do próprio país.
O Dany que nunca ficou para trás, pois, na sua busca incessante de criação musical sui generis, neste meu raciocínio, vale afirmar que todo o conteúdo do disco desse artista, representa a cultura do norte, mas que transcende essa região para o universo cabo-verdiano e toca o âmago de todo o patriota que ama a sua terra e quer vê-la cada dia melhor, cada vez mais desenvolvida e com mais progresso.
“MIÉ DODO NA BÔ CABO VERDE” integra esse sentimento com a forma de estar do mindelense, indivíduo extrovertido e divertido e o extravasa para o nacional de uma forma geral. “MIÉ DODO NA BÔ CABO VERDE” …
“NA ONDAS DE BÔ CORPO” para a tradução do crioulo à língua de Camões “NAS ONDAS DO TEU CORPO”, constitui o hino imagético à dócil sensualidade da mulher cabo-verdiana, é sem dúvida um dos melhores momentos da inspiração do músico – para não dizer o primeiro grande momento melódico transcendente da sua vasta criação musical e poética depois de “MIÉ DODO NA BÔ CABO VERDE”.
Porque o disco num todo é “Um livro de poesias” nele contidas. Ou seja, nele se descobre facilmente a faceta tridimensional do homem criador. Isto é, de excelente compositor-músico, poeta e de muito bom intérprete das suas próprias melodias.
A canção/morna, “NA ONDAS DE BÔ CORPO”, representa não só a imagem sensual de uma crioula da Cidade do Mindelo como a da região norte do país, estendendo tal influência a todas as crioulas destas ilhas que todos cantaram, os artista cantaram, o poeta cantou e os escritores também o fizeram com elegância.
Enquanto que, “PÓ D’ TERRA”, conjuntamente com as demais composições nele contidas, representam a génese cultural do homem do interior de Santiago, isto é, da sua região norte, diria inclusive de toda a ilha, onde se encontra um filho da terra e de todo o Cabo Verde.
Nota-se que João não cantou no disco homónimo somente gêneros como o célebre funaná – mas também interpretou batuco, morna e coladeiras no seu estilo elegante e diga-se com elevação sentimental – transmitindo boas imagens e boas mensagens, após ter vivenciado algo ou depois da saudade apertar no coração do homem que se encontra longe de Mamãe Terra.
Ouçamos as faixas “CARGA PISADO” ou “GLÓRIA NA TERRA” e ainda a morna “MÃE PÁTRIA”.
Numa outra oportunidade à semelhança do que se fez com este artigo, iremos debruçar sobre o contributo dos irmãos ZÉZÉ E ZECA DE NHA REINALDA, à música cabo-verdiana.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 759, de 17 de Março de 2022