Por: Vítor Ramalho*
Estruturei esta minha intervenção com a consciência de que a economia é um instrumento da política.
As posições de Olaf Scholz representam uma grande viragem na política externa e o propósito de reforçar a coesão da U.E.
É de saudar e encorajar.
É útil, porém, avaliar-se o tardio acordar da U.E., face às tergiversações que teve e aos erros que cometeu que não podem repetir-se.
Com a implosão da URSS o conceito de democracia liberal foi universalizado com base no princípio “um homem, um voto”, sem se atender à realidade étnica e cultural diferenciada de cada pais, o que conduziu a guerras, como na Europa a ex-Jugoslávia.
Nelson Mandela foi quem o entendeu como ninguém os mecanismos constitucionais e a legislação promulgada sob sua influência para a fase de transição de um governo de maioria na África do Sul, fossem claros.
Depois das primeiras eleições livres o cargo de Vice-Presidente, o país deveria ser ocupado – como foi – pelo segundo partido mais votado e De Klerk acabou Vice-Presidente da África do Sul.
E porque todos os partidos com mais de 5% de votos deveriam participar no futuro governo, o INKATA, partido com base maioritária no povo zulu, foi representado no poderoso Ministério do Interior por Mangosuthu Buthelezi, exatamente por ter tido percentagem de votos superior.
Sucede que, neste quadro, a OMC foi enquadrada por uma displicente conceção neoliberal, conduzindo ao hegemónico reconhecimento dos mercados a que o Papa Francisco apelidou de capitalismo selvagem sem valores e princípios.
A deslocalização de empresas para mercados fora de portas, com baixos salários, é um exemplo do modo com a U.E não soube agir.
Aliás, com a recente pandemia a U.E. sentiu o quanto desarmada estava inclusive na produção de bens simples, como máscaras de proteção individual e equipamentos hospitalares.
A intenção – tardia, diga-se – passou a ser a reindustrialização. Ainda bem!
Portanto, os ideários dos partidos fundadores da U.E., democratas cristãos e socialistas, acompanharam a ‘moda’ e secundarizaram-se, pelo que o pragmatismo em toda a linha tornou-se invasor da estratégia.
A propósito, apenas duas breves notas esclarecedoras: O ex-Chanceler alemão socialista Gerhard Schroeder passou a aceitar ser dirigente da empresa russa Gasprom e Merkel, de um partido democrata cristão, impulsionou a construção do gasoduto Nord Stream 2…
Os partidos de extrema-direita radicais passaram a ter representações significativas e o distanciamento dos cidadãos dos partidos e da política passou a ter reborada preocupação.
As tergiversações da U.E., obnubilando objetivos, fez-lhe diminuir a voz na influência política que lhe era exigível.
Hoje, sobre a pandemia, surgiu a invasão à Ucrânia.
Esta, ao unir o ocidente envolveu por parte da U.E., uma resposta solidária à integração de milhões de refugiados da guerra, suportando o aumento generalizado dos preços, inclusive de alimentos.
Ao acordar, pela segunda vez, a U.E. assumiu uma resposta estratégica. Não há mesmo alternativa.
Se neste quadro a U.E. reforçar a sua defesa, equipando-se para a guerra, forma de a dissuadir, reganhando autonomia inclusive no setor energético e jogando como um grande player, evidenciará a superioridade das democracias e o contributo à escala planetária será grande e servirá de exemplo.
Importa tocar noutra parte da equação.
Portugal, em 1986, aderiu à U.E., surgindo nesta como parceiro privilegiado para as relações com os países ACP’S, sendo João de Deus Pinheiro nomeado para Comissário para as relações com esses países.
A primeira Cimeira U.E.- África foi realizada sob a presidência de Portugal sendo incontáveis as parecerias bilaterais que dinamizou com países ACP.
A paz em Bicesse para Angola e o grito soltado das gargantas do povo português pela independência de Timor-Leste teve eco mundial.
Incontáveis instituições públicas e da sociedade civil foram criadas em Portugal para aprofundamento da cooperação e amizade com os povos lusófonos.
Este objetivo tem vindo a perder dinâmica, afetando o instrumento privilegiado de afirmação externa de Portugal, o que não é questão menor na era da globalização.
Constata a minha experiência neste domínio que há uma queda da sensibilização para as questões da lusofonia, que se traduz, por exemplo, no afastamento de empresas públicas antes apoiantes de instituições como a que dirijo, não obstante a realização de iniciativas marcantes.
Há que ter consciência que o país ao vender o capital público de empresas estratégicas ou ao concessioná-las, desde aeroportos a todo o setor energético, incluindo a distribuição, as telecomunicações, os cimentos, não poupando a distribuição postal, todas fortemente lucrativas, para não falar na banca e nos seguros, enfraqueceu os instrumentos económicos para a cooperação.
São as empresas que internacionalizam a economia e não é indiferente as estratégicas terem ou não domínio nacional.
Dos 95% de capital sob domínio nacional que o país tinha há escassos anos na banca, tem hoje 8%.
As respostas que a U.E. e obviamente Portugal têm que dar numa lógica de coesão e crescimento, implicam uma planificação estratégica com eficácia da administração e com os responsáveis políticos a darem exemplo, cuidando-se das funções soberanas do Estado, da Justiça, alicerce da democracia, à Defesa, com a consciência da afirmação da nossa marca identitária.
Na lógica do tema do painel em que intervenho, deixo o meu contributo porque me parece ser de ponderar no seguinte:
– Os países lusófonos que fazem fronteira com o mar, por onde transitam mais de 95% dos bens comercializados, encorajam a criação de empresas comuns que os servem e beneficiam sendo realisticamente possível concretizá-las.
– Tendo esses países diásporas que se estendem a todos os continentes, a questão da mobilidade, ou seja, a livre e efetiva circulação de empresários que investem no espaço em que se integram bem como de homens de cultura e investigadores, tem de se assumir como um objetivo político prioritário.
– O facto das suas culturas serem resultado de encontros seculares tendo forjando uma singularidade única, deve conduzir ao reforço de parcerias que tenham por base as indústrias culturais.
– Os graves riscos do decréscimo populacional de Portugal, porque não será colmatado apenas com respostas de estímulo a uma maior natalidade, tem de conduzir à outorga de protocolos com países lusófonos estruturados para a imigração de cidadãos desses países que respondam às necessidades de Portugal numa lógica de futuro.
– Os riscos do terrorismo sobre navios que transitam no golfo da Guiné ou nas proximidades da Somália, nas costas de África, exige a legitimação de uma resposta no caso de apoio pela comunidade internacional aos países lusófonos atlânticos, que falam a primeira língua nessa região, com vista à contribuição real para a minoração desses riscos.
– Instituições vocacionadas para a paz como é o caso das Cruzes Vermelhas dos países lusófonos, podem e devem de igual modo articularem-se para a criação de numa instituição comum que intervenha e apoie os cidadãos vítimas de calamidades naturais ou em resultado de conflitos.
– O facto dos países africanos lusófonos terem como prioridade a diversificação económica numa lógica de autossustentabilidade, justifica que Portugal, face à grande experiencia nos setores agrícolas, na pecuária e nas pescas, reforce com eles políticos de cooperação nestes domínios.
– Finalmente, os dois países da Ibéria podem e devem ainda aprofundar no quadro das Cimeiras Ibero-Americanas a dinamização de uma relação triangular, estendida aos países africanos lusófonos.
Neste novo quadro mundial, a conceção universal e tolerante de estarmos unidos pela língua, reforçará a afirmação de todos.
Não me quero despedir sem deixar uma nota final sobre o presente. Na adolescência registei uma frase de um grande escritor “só quando vi e senti o sangue percebi que era verdade”.
Tropecei nela com a invasão da Ucrânia, face à grotesca violação do direito internacional e ao dantesco sofrimento causado aos ucranianos.
Fica o meu repúdio pela invasão e a minha solidariedade ao povo ucraniano e aos russos que se insurgem contra a guerra.
*Secretário-geral da UCCLA
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 759, de 17 de Março de 2022