O lote de terreno registado pelo Grupo Stefanina é muito superior ao concedido à Salins du Cap Vert ao Estado de Cabo Verde desde os períodos coloniais.
A exploração privada da cratera – turismo e extracção de sal – em princípio, deveria ser feita através de uma competente autorização legal, porquanto a mesma é do domínio público do Estado (alínea d) art 20º lei de solos 2/2007 19 Julho).
Ex-Ministro Mário Lúcio tentou reaver os terrenos
A NAÇÃO sabe que o antigo ministro da Cultura, Mário Lúcio Sousa, esteve empenhado em reaver os terrenos da Pedra de Lume e, no seu esforço, chegou a declarar as Salinas de Pedra de Lume como Património Histórico-Cultural.
Conforme um documento que A NAÇÃO teve acesso, da autoria do advogado Rui Araújo, por escritura pública perante o notário da Praia, em 21 de Janeiro de 1999, a Salins du Cap Vert “teria vendido” à Dja D’Sal Turinvest certos prédios e certos equipamentos.
“Diz-se ‘teria vendido’ e não ‘vendeu’”, porquanto, segundo aquele advogado e consultor, “não fica claro” que a Salins du Cap Vert tivesse outorgado realmente procuração a quem presumidamente a representou no acto – Christian Georges Leon Bonidart – para a suposta venda.
A escritura, diz também, refere uma sociedade de direito francês denominada Salins du Cap Vert, matriculada no registo comercial de Bordeaux, sob o número B 300 155 447, “mas não diz que tenha sido apresentada alguma certidão nesse sentido. Tudo muito vago”.
Dúvidas sobre legalidade da transação dos terrenos
Outro aspecto que faz adensar as dúvidas sobre a legalidade dessa transação prende-se com o facto de a referida sociedade ter uma sucursal na ilha do Sal, com uma certidão emitida num feriado nacional (13 de Janeiro).
Rui Araújo reforça ainda que nesse processo, “viu-se que Salins du Cap Vert não comprou, em termos de terrenos, mais do que o de Feijoal, que não ultrapassa um hectare e da Horta Parda”.
Segundo a mesma fonte, em 2009, a Turinvest Holding requereu e obteve da Conservatória do Registo Predial, mediante declaração e com base em certidão matricial emitida pela Câmara Municipal do Sal em 21 de Maio de 2004 (mais de cinco anos antes) o registo de uma área de 1.263 hectares como a área comprada em 1999 à Salins du Cap Vert.
Registo dos terrenos
“Haverá que analisar esse averbamento, que parece claramente ilegal já que a Dja D´Sal Turinvest não foram transmitidos em 1999 mais do que aquilo que consta da escritura de Janeiro, pelo que mais não poderia ter passado à Turinvet Holding em Dezembro de 2004”, realça.
Nesse relatório, Araújo diz que “há que indagar sobre a certidão emitida pela Câmara do Sal em 21 de Maio de 2004, atestando uma área de 1.263 hectares à Turinvest Holding” e considera, igualmente, que “há que perguntar: quem é o responsável por essa certidão? Um funcionário descuidado (ou algo diferente), para além do próprio interessado?”.
Aquele consultor recorda, entretanto, que tendo em conta que a lei garante ao investidor externo o direito a não ser expropriado, “poderá revelar-se hoje providencial o facto de a ministra das Finanças (Cristina Fontes) não ter assinado em 2009, nem depois, o estatuto de investidor externo em relação a Stefanina, requerido pela Cabo Verde Investimento”.
Apesar dos constrangimentos, Rui Araújo diz que é difícil entender que a Câmara Municipal do Sal não tenha exigido até hoje (2012) responsabilidades à Turinvet Holding, tomando as medidas previstas no protocolo homologado por sentença para o caso de incumprimento das obrigações assumidas.
Suspeições sobre protocolo com o Grupo Stefanina
“Mas apesar de em 2004 terem sido lançadas, em campanhas eleitorais, fortes suspeições sobre o protocolo, existe hoje a perceção de que a Câmara Municipal do Sal tem vindo a suportar a contragosto a ação da Turinvest Holding relativa a Pedra de Lume – e especificamente quanto às Salinas -, onde, para mais com realizações de duvidoso valor, se apresenta como dono e senhor, limitando ao máximo até a entrada da autoridade camarária”, lamenta.
Diz, por outro lado, ser difícil entender que o Estado não tenha ainda conseguido corrigir a intervenção em Pedra de Lume, “se ela é realmente o desastre de que se ouve falar, dentro do pouco realizado”. Mas, para este consultor uma coisa é certa: “o Estado e o Município do Sal terão de estar juntos nessa empreitada, sob pena de nunca se chegar a qualquer resultado”.
Fábrica de fazer dinheiro
Dado o seu valor patrimonial para Cabo Ver-de, Pedra de Lume foi classificado como paisagem protegida, através do decreto–Lei 3/2003, de 24 de Fevereiro.
O objectivo desse diploma visava, na altura, preservar os elementos naturais e culturais relacionados com a existência de uma caldeira de exploração do sal e que se ajusta a uma paisagem de beleza singular e valor ecocultural.
Neste sentido, também foi classificado como Património Natural, Histórico e Cultural Nacional através da resolução n° 21/2012, de 24 de Abril.
Nenhum benefício para Pedra de Lume
Na verdade, porém, desde que assumiu Pedra de Lume como propriedade sua, esta tem sido uma autêntica fábri-ca de fazer dinheiro para Andreias Stefanina. Se entrarem 300 pessoas
por dia nas salinas, por 5 euros, no fim do dia são arrecadados 1.500 euros, no fim do mês 45.000 euros e no fim do ano 540.000 euros. Antes da covid-19, na época alta e média, o número de entradas era de 900 pessoas por dia. Conforme uma fonte, liga-da ao processo, nem um centavo desse montante fica em Pedra de Lume, em benefício da sua população e preservação e reparação das infraestruturas.
Local excepcional na cratera de um vulcão extinto
Salinas de Pedra de Lume, situadas na parte NE da ilha do Sal, com uma área de 40 hectares, é um local excepcional formado na cratera de um vulcão extinto a 39 metros acima do nível do mar e 1500 metros de uma enseada abrigada. Em tempos, a cratera esteve em contacto com o mar pelo seu lado norte, por canais naturais, possibilitando a infiltração da água que, devido à evaporação, deixou um depósito de sal-gema calculado em mais de cinquenta milhões de toneladas.
Extracção e exploração do Sal
À volta desta mina de sal formatou-se, no passado colonial, uma sociedade industrial com infraestruturas básicas tais como capela, escola, maternidade e cantina social. Desta, é visível o tipo de assentamento humano, baseado nas divisões socioeconómicas industriais, manifestando-se nos diferentes conjuntos habitacionais destinados aos trabalhadores das salinas, aos engenheiros e aos chefes que aí residiam.
A extracção de sal foi o factor impulsionador para a ocupação e efectivação da ilha, tendo como mentor o abasta-do comerciante Manuel António Martins que, por volta de 1796, com famílias oriundas da Boa Vista e homens escravizados da costa ocidental, fixou-se em Pedra de Lume. Desde então, a ilha passou a ser procurada por navios de várias nacionalidades, principalmente do Brasil, para se abastecerem do “ouro branco”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 762, de 07 de Abril de 2022