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Cabo Verde e o fim das moratórias bancárias públicas: Agir antes que a bomba-relógio exploda

Por: João Serra*

As moratórias bancárias públicas enquanto medida temporária de mitigação dos impactos da crise provocada pela pandemia de covid-19

Em 2020, a evolução da pandemia provocada pelo novo coronavírus, o SARS-CoV-2, fez com que praticamente todos os países do mundo adotassem um conjunto de medidas restritivas e decretassem o estado de emergência. Para proteger tanto as empresas quanto os trabalhadores durante a redução da atividade económica, diversos programas de apoio foram criados. 

Dependente do turismo e fechado ao exterior devido à pandemia, Cabo Verde não fugiu à regra, tendo o Governo lançado várias medidas para minimizar os impactos da crise económica no país, nomeadamente, lay-off simplificado, moratórias bancárias públicas e linhas de crédito garantidas pelo Estado.   

A moratória bancária não é mais do que uma extensão de um prazo de pagamento de um crédito bancário ao longo de um determinado período. Foi uma das medidas adotadas por vários países para fazer face à crise económica provocada pela pandemia da Covid-19.

Pode ser suspenso a prestação (capital e juros) ou apenas o capital. Em caso de suspensão de prestação, os juros são capitalizados (acrescidos) ao capital. Já no caso de suspensão apenas do capital, o cliente efetua o pagamento dos juros.

A suspensão dos pagamentos dos créditos traduzir-se-á automaticamente no aumento do prazo de pagamento por um período idêntico ao da suspensão.

Dito de um outro modo: no regime de moratória prevê-se a prorrogação, por um período igual ao prazo de vigência da moratória, dos créditos com pagamento de capital no final do contrato, juntamente, nos mesmos termos, com todos os seus elementos associados, incluindo juros e garantias, nomeadamente prestadas através de seguro ou em títulos de crédito.

Em Cabo Verde, as moratórias públicas ao crédito bancário foram aprovadas no final de março de 2020 e previam um primeiro período de seis meses, até 30 de setembro do mesmo ano, tendo sido então prorrogado até 31 de dezembro, devido à “evolução da covid-19, cujos impactos das medidas com vista à sua mitigação se fazem sentir na dinâmica económica e na situação financeira do país”, justificou o Governo.

Posteriormente, a medida voltou a ser prorrogada, com abrangências distintas, até final de setembro de 2021, face à situação de crise que afeta famílias e empresas cabo-verdianas, segundo o Governo.

Desta feita, a medida previa a suspensão do pagamento de capital, juros e prestações dos créditos concedidos às famílias, empresas, municípios e instituições sem fins lucrativos, até 01 de julho de 2021, a suspensão do pagamento do capital em dívida dos créditos concedidos, a todas as entidades beneficiárias, até 30 de setembro, e a suspensão do pagamento de juros, capital e prestação dos contratos das empresas não financeiras e famílias dos setores mais afetados pela pandemia, também até setembro.

Através do Decreto-Lei n.º nº 54/2021, de 12 de agosto, foi prorrogado, até 31 de março de 2022, o prazo de vigência do regime de moratórias ao pagamento de capital e juros em empréstimos bancários, particularmente para as empresas pertencentes aos setores mais afetados pelo impacto económico da pandemia de Covid-19 que ainda não recuperaram a atividade pré-crise, bem como para as famílias mais afetadas.

A moratória e a prorrogação do seu período de vigência foi uma boa notícia para as famílias, empresas e demais entidades abrangidas.

No entanto, é de salientar que a suspensão das prestações pode significar mais encargos após o período de moratória. A razão para isso tem a ver com o facto de os juros corridos acrescerem ao capital, aumentando o valor em dívida. Ou seja, a moratória não é um adiamento dos pagamentos ao banco, pelo que não significa “perdão da dívida”.

De acordo com o mais recente Relatório de Política Monetária (RPM) do Banco de Cabo Verde (BCV), publicado no mês de outubro de 2021, o regime das moratórias de crédito beneficiava um total de 2.100 entidades e 2.717 contratos em 30 de junho de 2021, representando 2,7% do total de contratos de crédito no sistema bancário.

Já o volume de crédito abrangido na mesma data pelo regime de moratórias era de aproximadamente 25,5 milhões de contos (25.441 milhões de escudos), “representando 19,8% do stock agregado do crédito à economia e aos governos locais”, o que compara com os 21,6% em 31 de dezembro de 2020.

Segundo o BCV, este volume de crédito em moratória é ainda equivalente a 14,2% do PIB projetado para Cabo Verde em 2021.

Do total de créditos em moratória, 77,5% eram financiamentos a empresas. Destes 77,5%, cerca de 44% das operações de crédito abrangidas pelas moratórias diziam respeito a setores relevantes e estruturantes para o turismo, designadamente setores de alojamento e restauração, transportes e armazenagem, e captação, tratamento e distribuição de água. Os particulares eram responsáveis por 13,4%, cabendo às câmaras municipais 9,1%. 40 % das moratórias estavam concentradas nas ilhas do Sal, Boavista e Maio.

Fim das moratórias: Enormes e complexos desafios 

Em termos globais, as incertezas que ainda perduram sobre a evolução futura da pandemia poderão retardar a recuperação económica, quer a nível nacional, quer a nível dos principais parceiros económicos do nosso país.

Por outro, os riscos para a estabilidade financeira nacional são ainda elevados, particularmente os relacionados com o ambiente macroeconómico e financeiro.

Assim sendo, com o fim das moratórias bancárias, enquanto medida de mitigação dos impactos da crise pandémica, há um conjunto de questões importantes para as quais ainda não existem respostas em Cabo Verde.

De acordo com o já referido RPM do BCV, o contexto da crise pandémica intensificou um conjunto de vulnerabilidades da economia nacional, nomeadamente o seu elevado grau de exposição a choques externos e a sua dependência estrutural face ao exterior.

Também, foram intensificados os níveis ainda elevados dos rácios de incumprimento de créditos bancários, não obstante a tendência de redução gradual dos últimos quatro anos. O aumento do volume de ativos não produtivos, no balanço das instituições financeiras, e o aumento do endividamento do Estado poderão condicionar a capacidade deste e daquelas de apoiar a recuperação económica.

Neste quadro, as medidas de suporte à economia para combater as consequências económicas imediatas da pandemia deverão ser continuadas, embora devidamente ajustadas.

Com efeito, segundo revela o Relatório de Estabilidade Financeira de 2020, divulgado pelo BCV no mês de agosto de 2021, as medidas de suporte à economia (fiscais, monetárias e prudenciais) para combater as consequências económicas imediatas da pandemia foram essenciais e deverão ser continuadas enquanto prudentes.

Neste âmbito, o “ritmo de retirada, deverá estar alinhado a um processo de saída gradual e direcionado ao setor financeiro, às empresas e famílias mais afetadas”, recomenda o BCV.

As medidas de apoio deverão, conforme a mesma fonte, estimular os bancos a assegurar o fornecimento de suficiente fluxo de financiamento às empresas e particulares, num quadro de uma gestão prudente dos riscos, de modo a suprir as suas necessidades de liquidez e permitir o investimento produtivo e, consequentemente, favorecer a recuperação económica.

Na verdade, estando o país dependente de uma economia de consumo, assente no turismo e nas exportações de serviços, que teimam em não arrancar de vez, o fim da moratória pública poderá ser problemático, mormente na falta de uma estratégia e de um plano realista para fazer face às suas consequências.

Desde logo, deve existir um esforço comum e um processo de negociação importante. Nem as famílias podem ficar sem os seus rendimentos e os seus bens, nem as empresas devem fechar as portas e nem a banca quererá crédito malparado no seu balanço.

Como já referido, as moratórias têm vindo a chegar ao fim. 31 de março de 2022 é a data limite.

O fim da moratória poderá trazer grandes problemas às famílias, empresas e demais entidades abrangidas por esta medida, por três ordens de razão:

A primeira: aquilo que na sua essência as moratórias representam, não é nenhuma solução, mas apenas uma dilação temporal da liquidação de diversas responsabilidades. No entanto, uma vez terminadas as moratórias, o problema poderá manter-se, ou seja, poderá não haver condições para retomar a regularização dessas responsabilidades.

A segunda: importa não esquecer que os créditos em moratórias em Cabo Verde são de uma dimensão muitíssimo superior face aos de países bem mais desenvolvidos que nós, cerca de 20% do total do stock do crédito do setor bancário – um valor assustador.

A terceira: como vai sendo apanágio de Cabo Verde, fazer política no nosso país parece resumir-se a empurrar os problemas com a barriga, em vez de procurar resolvê-los definitivamente. Há demasiada propaganda e muito pouca ação, sobretudo reformista. Foi mais ou menos assim, no passado e, presentemente, também o é, só que, desta feita, com muito mais intensidade e descaramento: quando aparenta haver dinheiro para gastar, tapa-se com ele os problemas que existem, não se importando com as consequências; quando há problemas, mas não há dinheiro, aposta-se no jogo do empurra para a frente e amplia-se a propaganda enganosa.

Só assim se compreende que o Governo em funções, a sensivelmente dois meses do fim das moratórias, não tenha ainda uma estratégia e um plano para o período pós-moratória.

E sem esse plano, teme-se que a bomba relógio das moratórias esteja prestes a explodir. E, caso exploda, poderão resultar consequências graves para o país, mormente à estabilidade financeira. 

Num estudo do FMI sobre a Estabilidade Financeira Mundial, divulgado em 06 de abril de 2021, esta instituição considera que as consequências de uma saída gradual mal gerida podem ser más e fragilizar ainda mais a economia, designadamente particulares, empresas e bancos.

O FMI reconhece que a figura das moratórias para os reembolsos de empréstimos e as garantias do Governo “têm sido um apoio para manter fluxos de crédito que são tão necessários” à saída desta crise.

“As moratórias reduziram drasticamente o incumprimento dos pagamentos, o que teria atingido diretamente o capital [dos bancos que teriam de incorporar quantidades avassaladoras de malparado] e reduzido o apetite por mais empréstimos”, diz o FMI.

“No entanto, os empréstimos sob moratória estão programados para expirar na maioria dos países durante 2021 e os empréstimos garantidos, embora ainda crescendo em algumas jurisdições, devem diminuir gradualmente à medida que esses empréstimos vencem”, acrescenta.

O FMI teme que o fim dessas políticas de apoio ao pagamento dos créditos “pode levar a incumprimentos mais elevados e exigir que os bancos aumentem as provisões e apliquem critérios de risco mais elevados nos novos empréstimos não garantidos”. Isto é, pode levar a que o crédito seja bastante mais caro, mesmo com as políticas dos bancos centrais em prol da manutenção de taxas de juro extremamente baixas e de dinheiro ultra barato.

O Fundo não duvida que “as reservas para perdas com empréstimos podem ter que ser aumentadas para absorver o fim das moratórias”, por exemplo.

Para o FMI, a situação ainda pode ser “gerível”, mas fica o seguinte aviso: “Nos países onde a pandemia está a ter um impacto macroeconómico maior, uma estratégia de saída das moratórias cuidadosamente gerida é mais importante.”

Como já referido, em Cabo Verde os empréstimos sob moratória chegaram a 25,5 milhões de contos, ou cerca de 20% do total de empréstimos em junho de 2021. Os valores em causa são, de facto, avassaladores.

O fim da moratória pública irá implicar a reposição do serviço de dívida das pessoas singulares e coletivas contempladas com esta medida, sendo de esperar a materialização de incumprimento por parte de alguns mutuários, designadamente os que tenham tido quebras significativas no seu rendimento.

A resposta a crise envolveu Estado, sociedades não financeiras, famílias e setor financeiro. Assim também deve ser na fase seguinte. Não é possível colocar todo o esforço do ajustamento apenas num destes setores, pelo que ninguém pode ficar de fora. Ou seja, todos os setores económicos devem retomar o processo de redução do endividamento.

Assim, o país tem de preparar o momento pós-março 2022, que marca o momento de saída das moratórias.

A solução para as empresas pode passar pela reestrturação dos créditos sob moratória, com o Estado a prestar garantia sob uma parte da dívida. A medida deverá destinar-se apenas a empresas nos setores mais afetados pela pandemia.  

 Para o efeito, deve o Governo trabalhar num programa de apoio à reestruturação da dívida problemática, isto é, ao seu refinanciamento. Deverá assegurar que a dívida gerada antes da pandemia da Covid-19, nestes setores mais afetados possa ser reembolsada num prazo mais largo e possa ter alguma carência de reembolso de capital no primeiro ano ou dois.

 Quanto aos particulares, a suspensão de parte ou da totalidade das mensalidades de um crédito foi uma ajuda importante para muitas famílias afetadas pela crise e pela pandemia. Com o fim das moratórias, pode existir algum receio, por parte destas pessoas, quanto à sua capacidade para continuar a pagar os créditos, sobretudo os que estão relacionados com a habitação.

Em Portugal, por exemplo, o retomar do pagamento das mensalidades não significou que estas famílias ficassem desprotegidas. Isto porque, ainda antes do fim das moratórias, foram dados passos no sentido de garantir medidas de proteção para os consumidores que estiveram abrangidos por este mecanismo.

É esse o objetivo do Decreto-Lei n.º 70-B/2021, que entrou em vigor a 7 de agosto. Esta lei prevê que os clientes que tenham recorrido às moratórias tenham um acompanhamento especial por parte dos bancos. Além disso, reforça mecanismos que já existiam com o objetivo de evitar o incumprimento.

Com a publicação do suprarreferido diploma, foi dado um prazo para que os Bancos avaliassem a capacidade financeira dos clientes com créditos em moratória.

Assim, para quem não recuperou rendimentos, o seu Banco deve fazer-lhe uma proposta com condições que lhe permitam continuar a pagar o seu crédito que estava em moratória.

De acordo com a nova lei, nos 30 dias anteriores ao fim da moratória o Banco deve analisar “eventuais indícios de degradação da situação financeira do cliente bancário”.

A redução do rendimento disponível, a existência de dívidas fiscais ou à Segurança Social, uma situação de desemprego ou o facto de o cliente trabalhar num setor em dificuldades são alguns indícios dessa degradação.

 Entre os indícios a que os Bancos devem estar atentos estão também os incumprimentos registados na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal ou a devolução e inibição do uso de cheques.

A insolvência, a existência de processos judiciais e de situações litigiosas, a penhora de contas bancárias e incumprimentos noutros contratos com o Banco são outros sinais de degradação financeira que constam da lei.

Detetados esses indícios, a entidade bancária tem de apresentar, 15 dias antes do fim da moratória, uma proposta adequada à situação financeira do cliente. O objetivo desta proposta é evitar o incumprimento. Ou seja, oferecer condições, adaptadas à sua situação atual, e com vista a manter o pagamento das prestações.

Neste contexto de prevenção do incumprimento, a renegociação do crédito obedece a um conjunto de regras para proteção dos clientes. A taxa de juro não pode ser agravada. A lei reforça também que não podem ser cobradas comissões durante esta renegociação.

Além disso, as soluções acordadas devem continuar a ser avaliadas, para que se verifique se estão realmente a ser eficazes ou se as dificuldades persistem. 

Que o Governo de Cabo Verde pense e adote rapidamente medidas adequadas para o fim das moratórias!

Praia, 30 de janeiro de 2022

*Doutor em Economia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 753, de 03 de Fevereiro de 2022

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