Para acompanhar filhos em internamentos nos serviços de pediatria do país, os pais precisam abrir mão dos seus rendimentos, caso as faltas ultrapassem os cinco dias a que têm direito junto da entidade patronal. Isto porque, nas pediatrias, a exigência de acompanhamento vai até os 9 anos, onze meses e 29 dias, mas o INPS só cobre, com subsídio de doença, acompanhantes para crianças até os seis meses de idade. Juristas apontam lacuna na lei.
Ciente de que não se trata de um problema novo, uma mãe, ao enfrentar a situação pela primeira vez e ficar perplexa com a falta de coerência, que denomina de “leis mal feitas”, resolveu trazer o seu desagrado ao A NAÇÃO. A sua esperança é, com o seu gesto, provocar um debate a volta do assunto e levar o sistema de segurança social a despertar para situações vividas por ela, enquanto mãe.
Em Dezembro passado, Ciliana Lima precisou se internar nos serviços de pediatria do Hospital Universitário Agostinho Neto, na Praia, como acompanhante da filha, que na altura tinha um ano e três meses. O internamento ocorreu em dois períodos, de cinco e 10 dias, separados por um final de semana, em decorrência de uma piora no quadro de saúde da criança.
“A minha filha teve pneumonia, fomos internadas numa segunda-feira e recebemos alta na sexta-feira. Entretanto, na madrugada seguinte de domingo para segunda ela voltou a piorar e voltamos ao hospital. Fomos novamente internadas, por mais dez dias”, explicou, indicando que o caso aconteceu entre 13 e 30 de Dezembro.
O hospital, conforme frisou, não permite que crianças nessa idade fiquem desacompanhadas. Mas, continua, mesmo que permitissem, não dispõe das condições, nomeadamente de pessoal, para cuidar de todas as crianças internadas.
“A minha filha era medicada de 4 em 4 horas e eu é que tinha de levantar de madrugada para levá-la à sala de medicamentos, pois havia um único enfermeiro para cobrir a ala. Somente na nossa sala estavam cinco crianças”, aponta.
O espanto desta mãe aconteceu, contudo, quando finalmente recebeu alta e descobriu, junto do INPS, que o atestado médico de incapacidade temporária que recebeu do hospital para entregar na instituição, afinal, não lhe valia de nada.
A solução foi negociar com os Recursos Humanos do seu empregador, para que 11 dias de falta fossem descontados nas suas férias. Ficou a perder, igualmente, mas, pelo menos, não foi o todo o vencimento que muita falta haveria de fazer no seu orçamento, ainda por cima num período de dificuldades.
Para Ciliana Lima, a lei não faz qualquer sentido, uma vez que seis meses na vida de uma criança não fazem qualquer diferença em relação à sua dependência de cuidados dos pais.
“Fui pesquisar e vi que, em Portugal (um país onde Cabo Verde gosta de ir buscar as bases para suas leis), para além destes seis meses, há uma observação que diz que o acompanhante só não tem direito ao subsídio de doença, se tiver, pelo menos, outra pessoa que pode acompanhar a criança, sendo o pai ou mãe. Caso puder provar que não tem essa alternativa, tem direito ao subsidio”, exemplifica, explicando que, no seu caso, está sozinha com a filha na Praia, já que o pai reside e trabalha na ilha do Sal.
A mesma situação ocorre quando a criança, não estando internada, precisa de acompanhamento em casa, por motivos de doença.
Foi o caso de Nelly Anjos, em São Vicente. Em Setembro de 2021, o filho de dois anos foi submetido a uma pequena cirurgia e, apesar de não precisar de internamento, teve de ser acompanhado em casa, por sete dias, para tomar medicamentos e evitar situações de perigo no pós-operatório.
Esta mãe, igualmente, estava sozinha em casa com a criança, já que o pai é marinheiro e encontrava-se em serviço em alto mar.
“Quando o médico me deu os sete dias de casa, preencheu os documentos do INPS e me pediu para carimbar no hospital e levar à Previdência Social. O documento foi carimbado, mas, já na secretaria do hospital, me avisaram que o documento não seria aceite no INPS, por causa da idade do meu filho”, explicou.
Na altura, Nelly fez uma publicação no Facebook para expor a sua indignação. O post foi comentado por vários outros pais, que relataram situações idênticas e a sua estranheza perante esta limitação, num país onde, supostamente, os seus cidadãos são tidos como o seu principal recurso.
No caso de Nelly, que tinha direito a três dias de faltas no trabalho, teve os restantes quatro dias de rendimento perdidos. Mas, segundo disse, o que a deixou mais triste não foi a perda monetária, mas a forma que esta lei é aplicada, em se tratando de uma criança indefesa.
Colmeia tem levado a questão ao INPS
De acordo com a presidente da Associação de Pais e Amigos de Crianças e Jovens com Necessidades Especiais – Colmeia, Isabel Moniz, esta ONG tem estado a sensibilizar o INPS ao longo dos anos, não somente em relação a esse subsídio que os pais estão a reivindicar, mas também sobre vários outros subsídios que, como diz, por vezes é moroso ou o próprio sistema não comparticipa.
“Por exemplo, com relação a comparticipação das terapias, que não são cobertas. A nível da deficiência”, aponta, “o INPS cobre apenas 65 sessões de fisioterapia, quando o número foi aumentado em mais 25% há já um ano”.
Outras terapias, como a fonoaudiologia, acompanhamento psicopedagógico e tudo o que é de fórum de neuro-desenvolvimento, não dispõe de comparticipação.
Segundo Isabel Moniz, o INPS alega que para cobrir essas modalidades, é preciso haver uma lei neste sentido, o que não existe.
Entretanto, segundo frisa, essa falta de cobertura tem afectado o tratamento de crianças e jovens com deficiência, sendo que muitos não conseguem seguir o planejamento de tratamento, que é muito custoso para as famílias, por falta de recursos.
“É uma questão de enquadramento que tem de ser trabalhado, para dar uma resposta no seu todo”, apela.
Juristas apontam incoerência e lacuna na lei
Jorge Duarte, advogado de direito laboral, entende que o quadro descrito pelas mães e pela presidente da Colmeia tem sido colocado por diversos clientes, nomeadamente junto do Sindicato da Indústria Geral, Alimentação, Construção Civil e Serviços (SIACSA), onde actua.
No seu entender, está-se perante uma lacuna na lei que regula as prestações da Previdência Social, pelo que o INPS deve vir a público esclarecer a questão e, se necessário, deve-se alterar a lei para colmatar essa deficiência.
A nível da lei laboral, segundo diz, existem duas situações. De um lado, “a lei nos diz que o trabalhador tem um limite de faltas que pode justificar ao acompanhar alguém”. Mas, por outro, “há outra situação, onde um documento médico ou junta médica leva o segurado à suspensão de contrato, sem perder o seu rendimento, através da proteção do Instituto Nacional de Previdência Social”.
Neste caso, o INPS arca com 70% do rendimento e a entidade empregadora os restantes 30%, semelhante ao que acontece, por exemplo, em licenças de maternidade.
Atendendo que o INPS tem legislação própria relativamente à forma de actuar em algumas situações, a advogado diz que o sindicato tem estado a tentar encontrar um ponto de encontro com a instituição, no sentido de fazer algum esclarecimento sobre o tema.
“Nós estamos a trabalhar sob aquilo que nos diz o Código Laboral, portanto, precisamos de alguma explicação por parte do INPS. Isto porque a lei laboral determina o número de faltas a que o trabalhador tem direito, mas, a partir desse limite de faltas, não há qualquer entidade a arcar com nada.
Sendo uma situação de saúde, Jorge Duarte entende que, de alguma forma, o INPS deveria cobrir o vencimento ou parte do vencimento do segurado, até a altura de voltar ao trabalho, atendendo que é uma situação de doença de uma criança, no caso, dos filhos.
Princípio do mínimo possível
De acordo com o jurista Cleidir Dias, em matérias de prestações, o INPS não se rege pelo princípio da justiça e justeza, mas sim pelo “mínimo possível”.
No caso de empregadores submetidos ao regime do código laboral, diz aquele entendido, o limite de faltas justificadas vai até cinco dias, para acompanhar membros do agregado familiar.
“O princípio de justiça e justeza nas prestações sociais, de facto, imporia que assim fosse, mas, em matéria de prestações sociais, onde a lei não explicita a obrigatoriedade de cobertura, o INPS parte do princípio que não tem o dever de cobrir”, explica.
Medidas de harmonização
Reconhecendo a injustiça dessa falta de protecção, e em jeito de sugestão, o jurista propõe medidas de harmonização de deveres profissionais de responsabilidades de natureza parental, sob pena de o sistema estar a “dar com uma mão e tomar com a outra”.
“Isto porque não faz sentido e é até controverso, o internamento de uma criança ser condicionado ao acompanhamento parental, e, entretanto, os pais ficarem desprotegidos em relação à entidade patronal, já que a base e sustentáculo do sistema de previdência social é o vínculo laboral e o emprego”, explica Cleidir Dias.
Silêncio do INPS
A NAÇÃO tentou ouvir o INPS a fim de esclarecer o posicionamento da instituição quanto às prestações relativas ao subsídio de doença para acompanhantes de crianças, mas tal não foi possível, apesar dos e-mails trocados desde o dia 25 de Janeiro do corrente ano. Um tempo mais do que suficiente caso quisesse participar na explicação deste problema que está longe de ser um caso isolado no contexto nacional.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 760, de 24 de Março de 2022