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Sobre a crise EUA-Rússia ou a mestria de Joe Biden, obtendo 2 objectivos: “ Isolar a Rússia, a fim de conter o empoderamento alemão”

Por: Victor Fidalgo*

A crise actual vem sendo apresentada como “russo-ucraniana”, mas esta narrativa é falsa. Aliás, é ridículo ou mesmo um insulto à inteligência, abraçá-la.

Com o desmoronamento da ex-URSS, não só os países independentes da Europa de Leste, então sob a sua influência adquiriram a liberdade de escolha das suas alianças internacionais, como também muitas das ex-Repúblicas Federadas Soviéticas que se tornaram independentes (os chamados países bálticos), escolheram ancorar-se no Ocidente para o seu desenvolvimento. Esta escolha foi muitas vezes, senão quase sempre, motivada pela expectativa das benesses da União Europeia. Assim, todos os antigos membros do ex-Pacto de Varsóvia (sob o controle da ex-URSS) integraram a NATO, como condição de integrarem a União Europeia e terem acesso às ditas benesses, tal como vem acontecendo com os países da Europa do Sul (Portugal, Espanha, Grécia e parcialmente a Itália).

Convém relembrar aqui que a União Europeia, teve a sua génese em 1951, inicialmente como a Comunidade Europeia de Carvão e Aço, (nessa altura era esta indústria que alavancava o mundo), com o fito de controlar e condicionar o desenvolvimento da Alemanha, evitando que de novo se tornasse na economia dominante da Europa. E Charles de Gaulle, então Presidente da França, país iniciador do processo, também declarou que o Reino Unido jamais deveria entrar no Mercado Comum Europeu, mais tarde, Comunidade Económica Europeia e, desde 1993, União Europeia. Charles de Gaulle convenceu os 4 outros países (Itália, Holanda, Bélgica, Luxemburgo) que pondo em comum, os principais meios de produção da altura (carvão e aço) e integrando a recém-criada República Federal da Alemanha (23/05/1949), controlava-se o ritmo e forçava-se uma certa convergência e interdependência económica, onde cada um produzia algo que outro precisava e ninguém deveria ser auto suficiente, nem dominador no conjunto. Isso permitiria um controlo estrito do desenvolvimento da Alemanha e evitar que nunca voltasse a tornar-se numa potência económica dominante. Lembramos que o Reino Unido só entrou na União Europeia, em Janeiro de 1973. Contudo, saiu em Janeiro de 2021.

No domínio político militar, os EUA, fortes do seu domínio económico no mundo (cerca de 45% do PIB mundial) criaram a NATO (ou OTAN), em 1949, como a organização político-militar que lhes daria o controle absoluto da Europa. Aliás, esta pretensão levou a que bem cedo, a França, sob a presidência de De Gaulle, saísse do Comité de Programação Militar, a fim de manter a sua independência nuclear, através da sua chamada força de dissuasão. Regressou durante o mandato de Nicolas Sarkozy. Interessante notar que, no momento da sua fundação, a NATO, sob a influência da França e outros países que tinham sido ocupados pela Alemanha nazi, fecharam as portas à entrada da República Federal da Alemanha (RFA), criada a 23 de Maio de 1949. Esta posição só foi alterada em 1954, quando, por insistência dos EUA, a RFA foi convidada a entrar na OTAN, o que aconteceu em Maio de 1955. A partir dessa altura, a Alemanha deixou de ser considerada país ocupado, tendo recuperado parcialmente a sua soberania. O Plano Marshall (programa americano de auxílio económico à reconstrução da Europa) era a outra face do seu domínio na Europa. A pouco e pouco a Europa foi se reconstruindo e adquiriu potencial económico considerável.

A entrada da RFA na NATO, levou a então URSS a criar o Pacto de Varsóvia, juntamente com os países comunistas da Europa do Leste, sob a sua influência e, quiçá, dominação. Esta organização foi extinta a 1 de Julho de 1991, no processo de democratização dos países da Europa de Leste e subsequente decomposição da URSS. A NATO não só continuou, como admitiu no seu seio os antigos membros do pacto de Varsóvia, e 3 ex-repúblicas federadas da ex-URSS: Estónia, Letônia e Lituânia. Estes 3 Estados eram independentes até 1940 quando foram ocupados pela URSS e só recuperaram a sua independência em Agosto de 1991, pouco antes do desmoronamento da URSS, em Dezembro do mesmo ano.

De notar que com a entrada da República Federal da Alemanha na NATO, esta organização mudou de filosofia e objectivos. Passou a ser essencialmente um instrumento de luta contra o comunismo na Europa: a principal tese era a contenção do comunismo e com Ronald Reagan, passou a vigorar a tese de empurrar o comunismo algo que, de facto, foi conseguido, com o desmoronamento da URSS, em 1991.

Qual é o quadro actual? Se até 1991, era a ex-URSS que tinha tropas na Europa do Leste, no centro de Berlim, às portas da Dinamarca, Noruega e Grécia, hoje são os países da NATO que cercaram a Rússia. Mas a reunificação alemã no dia 3 de Outubro de 1990, despertou na Alemanha um certo ardor patriótico e iniciou-se um processo de libertação da população do trauma mental, resultante das atrocidades do nazismo. Ou seja, a geração actual de alemães começou a sentir-se que não é culpada das atrocidades do nazismo e não tem que se sentir responsabilizada pelos crimes do Hitler e pagar por isso, eternamente. Portanto, a actual geração alemã deveria libertar-se do fardo do passado e olhar para a frente, com responsabilidade, solidariedade universal e independência de pensamento e de ambição, a fim de ocupar um lugar de maior relevo no xadrez político internacional.

Assim começo o nascimento de uma nova forma de pensar e uma nova ambição, numa Alemanha realmente independente e poderosa economicamente e livre de qualquer complexo do passado. Este desígnio era assumido essencialmente pelo antigo Chanceler Gerard Schroder e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros Joschka Fischer (1998-2006). A primeira reação veio da França, a querer repetir a estratégia dos anos 50: tentando criar o eixo franco-alemão, como a locomotiva da União europeia. Mas isso não satisfazia as ambições da Alemanha e iria asfixiá-la, transformando-a no carregador do fardo dos demais países da União Europeia, sem ter como contrapartida a dinâmica económica. A dupla Schroder-Joschka Fischer viu no ressurgimento da Rússia de Putin o parceiro ideal para edificar um grande império económico na Europa Central e Oriental e quiçá no mundo. O poderio económico da Alemanha, com grande potencial de expansão, aliado a um mercado emergente tão grande e ambicioso como a Rússia, trouxe novos dados ao xadrez político mundial. Assim iniciou-se uma autêntica interação política e económica entre os dois países que começou a preocupar muitas chancelarias no Ocidente, porque iria levar a uma revisão dos fundamentos da ordem política e económica mundial. O projecto North Stream-2, sem ser o mais importante, aparece como o sinal mais visível desta aliança nascente. Estaríamos a ver nascer um grande espaço económico, ancorado pela Alemanha, incluindo a Áustria, Hungria, República Checa, Roménia, Bulgária, a Rússia e os países da antiga Jugoslávia. Desnecessário dizer que qualquer espaço económico dessa envergadura, tornar-se-á tarde ou cedo num interlocutor político mundial de peso.

Interessante relembrar que após a queda do muro de Berlim, em 1989, nem a França, então presidida por Mitterrand, nem os EUA, então presididos pelo George Bush (pai) ou o Reino Unido estavam entusiasmados com a reunificação alemã e tentaram convencer Mikhail Gorbatchev a não facilitar este processo.

A grande pergunta é quem perderia com isso? O fortalecimento da China, Brasil e Índia também trazem a necessidade de reajustamentos e inclusive da revisão dos princípios da Ordem Mundial. Os EUA e os seus aliados mais próximos do eixo Anglo-Saxónico (Reino Unido, Canadá e Austrália) seriam os grandes perdedores desta recomposição da correlação mundial de forças. Os países da Europa latina ficariam divididos entre o bloco Anglo-Saxão e o Germano-Russo. Portanto, há que sabotar esta visão segundo o ditado: “matar o monstro no ninho”. Um grande acontecimento que favoreceu os EUA na sua tarefa de sabotagem, foi a substituição de Gerard Schroder pela Sra Ângela Merkel nas funções de Chanceler Federal da Alemanha, em 2006. Esta não partilhava da mesma visão e ambições que o seu antecessor. Nela os EUA viram o cavalo de Tróia que iria inviabilizar o projecto de Renascimento do bloco: Europa Central, Oriental e Rússia.

A primeira tentativa de criar fricções entre a Europa Ocidental e a Rússia, foi feita através da instrumentalização da Geórgia. Utilizando o então Presidente Mikheil Saakashvili, numa clara provação à Rússia, em Agosto de 2008, a Geórgia invadiu a Ossétia do Sul, onde estavam tropas russas em missão de manutenção de paz ou cessar fogo. A reação da Rússia, considerada desproporcional pelo Ocidente, foi firme e dissuasiva. Mas ficou claro que não se trata de um conflito local. A Geórgia era apenas um balão de ensaio instrumentalizado. A tentativa falhou, mas só quem não conhece ou não viu as razões profundas desta crise poderia acreditar que tudo estava resolvido. Interessante é que Saakashvili, depois de 2013, foi viver na Ucrânia onde a partir de 2014, se tornou Governador de uma das Regiões deste país. Perguntamos ao serviço de quem?

Nos finais de 2013, instiga-se uma profunda crise na Ucrânia. Em Janeiro/Fevereiro de 2014, há um assalto ao poder e um Governo pró-americano é instalado em Kiev, com a promessa de uma adesão à União Europeia e integração na NATO. Coincidência ou não, um dos primeiros consultores do novo Governo de Kiev, foi o filho do então Vice-Presidente dos EUA, actual Presidente, Joe Biden. Segundo os jornais, ele terá recebido não menos de 50 milhões de dólares, em “honorários”. E nós sabemos qual o papel do lobbismo na política americana. A euforia do golpe (revolução de Maidan) levou o novo poder a cometer um erro crasso. Uma das suas primeiras medidas foi a alteração da Constituição de 1996, para substituir o princípio de bilinguismo (ucraniano e russo) pelo unilinguismo ucraniano. Imaginem que a Bélgica, Estado criado, no início do sec. XIX, no respaldo das guerras napoleónicas, decidisse hoje banir o francês ou o flamengo. Que faria a população falante da língua banida? Portanto, a revolta no Leste da Ucrânia encontra a sua génese nessa decisão pouco inteligente, irresponsável e provocadora do novo poder em Kiev. Só um ingénuo acredita que os americanos não foram os instigadores de tal decisão. E anteviram o seu resultado e posterior desenvolvimento. Inicialmente, a população russófona da Ucrânia, decidiu lutar para os seus direitos culturais. A população da Crimeia, região pertencente ao Império Otomano até  1771 e conquistada pelo Império russo, decidiu ir mais longe. À semelhança do Kosovo, em 2008, os russos da Crimeia que constituem cerca de 60% da população, organizaram um referendo logo em 2014 e decidiram pedir a reintegração da região na Rússia de onde tinha sido separada em 1954 por mera decisão de Nikita Khrushchev, então líder soviético.

Para resolver a questão no leste da Ucrânia, a França, a Rússia, a Alemanha e a própria Ucrânia formaram um quarteto que assinou os Acordos de Minsk, que de entre outras coisas previam o regresso ao bilinguismo, uma larga autonomia para as regiões do leste da Ucrânia, a não adesão à NATO, etc. Mas, letra morta. Particularmente com a eleição de Joe Biden como Presidente dos EUA, em Novembro de 2020, o radicalismo alimentado pela estratégia americana de sapar de vez qualquer hipótese de estabelecimento de uma nova área económica na Europa, aumentou e levou a provocações e perseguição dos russófonos da Ucrânia. O separatismo destes foi ganhando forma e, com a iminência de um “genocídio”, a Rússia teve que reconhecer as duas repúblicas separatistas e assumir a sua proteção. No dia 24 de Fevereiro, as forças russas entraram na Ucrânia, para pôr fim ao “genocídio” e restabelecer os direitos da população russófona. Claro, que além disso, a Rússia quer banir de vez as veleidades da entrada da Ucrânia na OTAN. Por isso, declarou como objectivos da sua intervenção, a “desmilitarização e desnazificação” da Ucrânia.

Os EUA e a Europa vinham brandindo a ameaça de sanções e já começaram a praticá-las. Para que fim? Se o Mali, país pobre e sem meios materiais nem humanos, apoiando-se no seu orgulho e dignidade nacionais, vem ignorando as sanções da França/União Europeia e seus delegados regionais tais como a União Africana ou CEDEAO, quem espera que a Rússia, grande potência, que já se vinha preparando para isso, vai vergar-se perante as sanções? Nem os decisores das sanções acreditam nisso. Neste caso, pareceu-me bastante lúcido o comunicado do Governo de Cabo Verde: condenação da violência e do uso (directo ou indirecto) da força nas relações internacionais, respeito pela integridade territorial de cada Estado, no estrito respeito dos Direitos Humanos e retoma do cumprimento dos Acordos de Minsk, bom manancial de instrumentos de resolução deste conflito.

Mas o drama é que este conflito foi orquestrado pelos EUA, apenas com o objecto de cortar e destruir, por muito tempo, as pontes entre a Rússia e a Europa, particularmente a Alemanha. E já o conseguiram, sem disparar um único tiro e sem ter nenhum soldado americano morto em combate.

Finalmente quem ganha e quem perde o quê nesta crise?

1. Ganham os EUA, porque ao consolidar a sabotagem da aproximação entre a Alemanha e a Rússia, sapam o projecto de um grande bloco económico na Europa Central e Oriental, reforçam o seu domínio político-militar e, acima de tudo, impedem que a Alemanha se transforme numa grande potência económica mundial e subsequentemente política e militar, no futuro. Os demais países da família anglo-saxónica ficam contentes e a França, prefere a arbitragem americana a uma Alemanha voltada para Leste. Os EUA continuarão, portanto, a ser o líder do mundo ocidental, dando conteúdo ao anúncio do Presidente, Joe Biden no início do seu mandato: “America is back”. Eu acrescentaria: “to the world leadership”.

2. Ganha parcialmente a França, porque perante o divórcio entre a Alemanha e a Rússia, preserva a possibilidade de manter a ilusão da dupla Germano-Francesa, como a locomotiva da União Europeia.

3. Ganha parcialmente a Rússia, porque mostrou ao mundo que é também uma superpotência militar e que na defesa dos seus interesses vitais, não vê a meios. Com isso adquire a respeitabilidade que Obama (talvez mal aconselhado por Biden) lhe negou em 2014.

4. Perde a Ucrânia, porque sairá arrasada deste conflito, o governo central será mais fraco, com fortes tendências para a autonomia das regiões e sem amparo real dos seus promissores protectores.

5. Perde a Rússia, porque se militar e politicamente “ganha”, ao impedir que a Ucrânia integre a NATO, a sua ambição de integrar o grande espaço económico liderado pela Alemanha e integrando os demais países da Europa do Centro e do Leste, fica adiada sine-dia ou senão mesmo morta. Ou seja, recebe uma vitória amarga e inútil da qual não precisava, em detrimento de um grande objectivo económico que a ajudaria a acelerar a reconstrução pós-soviética e lançar-se num desenvolvimento estável, sustável e duradoiro. Querendo ou não, terá agora que conviver com o isolamento e o estigma de “agressor” herdado do período soviético.

6. Perde a Alemanha, porque a sua ambição de se libertar dos fantasmas do passado e da tutela dos seus “amigos ocidentais” que a derrotaram na guerra de 1939-1956 fica adiada para um futuro muito longínquo, até reaparecer de novo um líder como Gerard Schroder. A recente declaração não inocente do Vice-Almirante, Kay-Achim Schoenbach, ex-Chefe da Marinha Federal, onde alerta os alemães para o erro que estão incorrendo, ao ignorar os legítimos interesses de uma potência como a Rússia foi sufocada e ele teve que se demitir do cargo.   

7. Finalmente, perde a OTAN, embora temporariamente, em matéria de credibilidade e confiança. Depois da sua vergonhosa derrota no Afeganistão, o eixo Anglo-Saxão fez crer aos dirigentes de Kiev que estavam protegidos, contra qualquer intervenção russa. Finalmente não estavam e o seu país está sendo destruído, tendo a OTAN como observadora distante, cínica e cretina.

*Mestre em Relações Económicas Internacionais e Ex-Embaixador de Cabo Verde

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 757, de 03 de Março de 2022

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