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Da “colónia mártir” à “narrativa da fome”: Um apelo à comunidade científica cabo-verdiana

Por: Ângela Sofia Benoliel Coutinho*

Desde os tempos em que Cabo Verde era conhecido como “a colónia mártir”, as autoridades tinham de lidar constantemente com a chamada “carestia alimentar”, ou “fome”, como lhe quisermos chamar…

Sem que, até à data, tenha sido realizado um estudo completo e exaustivo referente à forma como se geriu esta situação de penúria alimentar permanente que a maioria dos cabo-verdianos enfrentaram ao longo do século XX colonial, é possível, pela simples consulta de alguma documentação depositada no Arquivo Histórico Nacional, apontar algumas das medidas que eram então adoptadas.

Por exemplo, relativamente aos anos de 1901 a 1910, constata-se que as autoridades coloniais organizavam comissões de socorro em cada concelho, elaboravam listas de “indigentes” – constituídas sobretudo por mulheres com crianças pequenas a cargo -, indagavam acerca das reservas de milho em cada concelho, promovendo acções de solidariedade entre as ilhas, distribuíam “sopas económicas”, e abriam trabalhos públicos, como forma de criar emprego temporário.

Eram também promovidas acções de caridade na então metrópole, Lisboa, para acudir à chamada “colónia mártir”…

O que sabemos hoje sobre toda essa realidade histórica que é a nossa?

As ditas “fomes” dos anos de 1940, estão, efectivamente, presentes em fotografias e na música popular, contudo, é necessário estarmos cientes do facto de que o historial de “carência alimentar” – chamemos-lhe assim – que os cabo-verdianos enfrentaram ao longo de todo o século XX colonial está documentado em arquivos nacionais (públicos e privados), em arquivos portugueses, britânicos, dos Estados Unidos da América e de muitos outros países.

Faz-se com frequência alusão à “fome de 47” na ilha de Santiago. Há, de facto, músicas conhecidas sobre este trágico tema. Mas quantos de nós têm presente a devastadora “fome de 41 e 42” que atingiu muito duramente os cabo-verdianos nas ilhas do Fogo e de S. Nicolau?

Considero, aliás, que faz falta um estudo aturado da História de Cabo Verde nos séculos XIX e XX, para que possamos, como Nação, situarmo-nos de forma mais consciente em relação ao passado, ao presente e ao futuro.

A boa notícia é que temos, actualmente, historiadores nacionais com preparação científica para empreender tal obra, isto é, que foram treinados na pesquisa historiográfica do século XX, que dominam a bibliografia existente, conhecem a época em questão e os arquivos disponíveis para consulta.

Lanço, pois, primeiramente, UM APELO a quem de direito para que esse estudo seja levado a cabo. Se quisermos que atinja o nível dos trabalhos de melhor qualidade da chamada História Científica, temos de ter presente de que se trata de trabalhos morosos que têm de ser levados a cabo por profissionais. Na elaboração da História Científica do século XX são cruzadas e analisadas diversos tipos fontes – chamemos-lhes narrativas – : a música popular, os depoimentos orais, a iconografia (fotografias), o próprio cinema e produções literárias, sem descurar a documentação escrita, produzida por organismos públicos, por privados e por particulares. Essas narrativas são cruzadas e são objecto de análise crítica por parte dos profissionais da História Científica, sempre tendo em conta os respectivos contextos em que foram produzidas.

Hoje em dia, quem tem presente essa denominação do arquipélago de Cabo Verde como sendo a “colónia mártir”? E no entanto, está bem presente na documentação de arquivo de inícios do século XX e na imprensa da então metrópole! Aquilo que de facto se passou com uma comunidade não é somente aquilo que uns e outros, mais tarde, efectivamente recordam, ou querem fazer lembrar… Quantos historiadores se têm dedicado à temática da História versus Memória, sublinhando que a História NÃO É o mesmo que a memória, seja ela individual ou colectiva! Seria fastidioso aqui remeter para esses inúmeros estudos académicos produzidos pelo mundo fora.

Deixámos, pois, de ser conhecidos como os habitantes ou naturais da “colónia mártir” quando um punhado – sim, um punhado – de cabo-verdianos, homens e mulheres, decidiram montar um projecto sério e consequente de luta pela nossa independência política, criando condições para ir recrutando um número crescente de nacionalistas, que, nas matas da Guiné ou em actividades clandestinas levadas a cabo em diversos países, bateram-se, de facto, para que esse projecto se concretizasse.

Esta narrativa não é objecto de controvérsia entre historiadores profissionais. Pelo contrário: é a existente em inúmeros livros publicados pelo mundo fora sobre este assunto, e baseia-se na documentação de arquivo que é possível consultar, depositada em arquivos de países de todos os continentes.

Esses mesmos nacionalistas e a geração que se lhe seguiu edificaram um Estado de Cabo Verde, a partir de 1975. Sobre este tema, ainda pouco estudado, existem também algumas publicações, e mais documentação ainda para consulta, sobretudo em arquivos estrangeiros, visto que a cooperação do Estado de Cabo Verde começou muito cedo, e a todos os níveis – da educação, saúde, militar, e por aí fora. Afinal, a independência do arquipélago de Cabo Verde foi um projecto apoiado por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas e a União Africana, por exemplo. Na documentação dos Arquivos dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros da França, de Portugal, e na documentação da ONU, para citar alguns exemplos, é possível consultar documentos relativos a acções de cooperação com o Estado de Cabo Verde, desde 1975. Há um estado independente em Cabo Verde desde 5 de Julho de 1975, reconhecido em todas as instâncias internacionais e pelo mundo inteiro, e isto independentemente do regime político vigente na altura. Não se vê referência nenhuma relativa a um estado Guiné-Cabo Verde, como alguns parecem querer fazer crer. 

Ora, tal como a maioria dos cidadãos nacionais, e de resto, tal como muitos dos nossos actuais governantes, deputados nacionais e autarcas, pertenço à geração dos que não viveram as humilhações nem as perseguições, nem tão-pouco a “carestia alimentar” – chamemos-lhe assim – do colonialismo fascista.

Sendo assim, pergunto: Quem somos nós para fazermos afirmações categóricas sobre todo este passado que não vivemos?

E refiro-me ao colonialismo, mas também à luta pela independência, à construção do Estado, e até à mudança de regime político para o multipartidarismo, todos estes períodos históricos que não vivemos ou, se os vivemos, não os protagonizámos.  Com que direito e a partir de que bases e perspectivas ousamos fazer julgamentos públicos sobre este passado, que é colectivo? Nem sequer podemos reivindicar uma narrativa memorialista!

Como profissional que me tenho esforçado por ser, da História Científica, e desde há quase 20 anos, julgo que devo alertar os meus concidadãos para o seguinte facto: existe muita documentação escrita sobre os acontecimentos e processos históricos em Cabo Verde, referente a todos estes períodos. O nosso nunca foi um país fechado ao mundo, muito pelo contrário! Ela existe em diversos países estrangeiros, de todos os continentes, e até mesmo nos arquivos de organismos internacionais. Esta documentação está bem salvaguardada, protegida e cada vez mais disponível para consulta, cobrindo praticamente todo o século XX. Existem também muitas obras científicas escritas por estrangeiros, que não se encontram nas bibliotecas públicas de Cabo Verde.

Aconselho, por isso, as pessoas da minha geração a estarem atentas a certas afirmações sobre o passado que podem fazê-las cair no ridículo.

Outra certeza me assiste: a de que o processo histórico de qualquer sociedade é muito complexo, e normalmente não obedece às narrativas simplistas de “cowboys” e “índios”, de “bons” e “maus da fita”.

Vindos de um passado complexo e deveras doloroso, atenhamo-nos agora a um presente não menos complexo.

Desde que alguns indivíduos das gerações anteriores lutaram pela independência nacional e desde que se construiu um estado soberano de Cabo Verde, deixámos de ser “a colónia mártir”. E recusámos, temos sempre recusado o papel de “mártires”. Quisemos ser senhores do nosso destino, ambicionando uma vida digna.

Pergunto: qual é o papel da nossa geração, que não lutou pela independência, que teve a possibilidade de estudar no liceu, de obter bolsas de estudo atribuídas ao estado sobreano de Cabo Verde para se formar no estrangeiro, e até – coisa inexistente para os mais jovens – de aceder a empregos, perante a situação que o país ora atravessa? Tecer discursos simplistas sobre um passado que não viveu e/ou não protagonizou?

Num momento em que o mundo enfrenta a maior pandemia da História dos últimos 100 anos, em que vimos populações de muitos países ricos recorrer a ajuda alimentar, será surpreendente constatar que em Cabo Verde há quem enfrente situações de “carestia alimentar” – chamemos-lhe assim -? Não seria expectável?

Só a título de exemplo, recordo-me que em França – país onde vivi durante 12 anos e cuja actualidade procuro sempre acompanhar – o Governo decidiu passar a servir refeições quentes aos estudantes pela quantia de 2 euros, na medida em que se constatou que os estudantes universitários franceses foram particularmente atingidos pelas consequências económicas da pandemia e não tinham a possibilidade de se alimentar de forma conveniente.

Vimos, também, através da TV, cidadãos norte-americanos que pela primeira vez nas suas vidas recorreram a ajuda alimentar, para adquirir bens essenciais, pelo simples facto de estarem desempregados.

É um facto assumido pelo mundo fora – pelo menos nos países ditos democráticos – que esta pandemia gerou novos pobres e novas situações de “carência alimentar”.

Havia de ser diferente em Cabo Verde? Porque razão?

Quando a imprensa começa a alerta-nos para o facto de que as instituições que se têm dedicado à ajuda alimentar desde o início da pandemia já não têm mãos a medir em relação aos pedidos que se multiplicam; quando os responsáveis destas instituições chamam a atenção para o facto de que – tal como noutros países – há “novos pobres” na sociedade cabo-verdiana, e nomeadamente, jovens e desempregados, quando há padres a escrever para jornais de países estrangeiros alertando para a situação de “carestia alimentar” em Cabo Verde, quando lemos que há chefes de família desempregados a catar comida no lixo para tentar sustentar as suas famílias, quando vemos que um campeão mundial de surf afirma que a juventude cabo-verdiana está entregue à prostituição e à delinquência, como formas de tentar sobreviver, e quando ouvimos, por fim, o Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande em Santo Antão afirmar que a população do seu município está sem água, pergunto: não são motivos de inquietação, de preocupação para todos nós, como Nação?

E insisto: julgo que vale a pena, sim, procurar conhecer o passado para nos situarmos no presente e nos projectarmos no futuro!

E creio ser de interesse saber ou recordar, que quando os militantes cabo-verdianos do PAIGC pegaram em armas nas matas da Guiné – renunciando à sua juventude – as autoridades portuguesas colonialistas e fascistas, que então geriam Cabo Verde decidiram tomar uma iniciativa inédita: promover um estudo exaustivo sobre a situação alimentar que enfrentavam TODAS as famílias cabo-verdianas.

Com efeito, é um facto documentado que o PAIGC, pela voz da militante e dirigente nacionalista Dulce Almada Duarte, acusou estas autoridades coloniais, perante as Nações Unidas, de manterem a maioria dos cabo-verdianos num estado de “carestia alimentar” permanente, promovendo a sua emigração para S. Tomé e Príncipe como “contratados”, como forma de resolução deste problema…e como forma de rentabilizar a deveras lucrativa produção agrícola de S. Tomé e Príncipe. Outro facto amplamente documentado é que milhares e milhares de cabo-verdianos foram encaminhados para estas roças de cacau e café, sobretudo desde que ocorreram as últimas “grandes fomes” na década de 1940.

O estudo inédito encomendado pelas autoridades coloniais, quando já se lutava activamente pela nossa independência política, com armas, na clandestinidade, e a nível diplomático intitula-se “Plano de abastecimento de Cabo Verde em época de seca”. Foi realizado por Ramirez de Oliveira, em conjunto com os cabo-verdianos Júlio Monteiro e Henrique Teixeira de Sousa, e resulta da realização de um inquérito, percorrendo todas as ilhas e concelhos do arquipélago. Terá servido de instrumento eficaz para enfrentar da melhor forma as secas, tomando medidas atempadas para proteger as populações mais carenciadas.

Isto, é claro, sem esquecer o papel massivo da chamada Diáspora, pois que nos anos 1960 já havia muitos mais cabo-verdianos a viver fora do arquipélago do que no país, e a emigração nunca deixou de ser solidária para com as ilhas.

Hoje, volvidos quase 60 anos, no ano de 2022, Cabo Verde tem cientistas sociais formados, doutorados, treinados a nível nacional e internacional na prática de pesquisa de terreno. Temos já cerca de uma dezena de universidades.

Pergunto: qual é ou pode ser o papel dos cientistas sociais nacionais, a trabalhar no país ou no estrangeiro, perante a situação dificílima que o país enfrenta? E que tudo indica que vai ser agravada com a invasão da Ucrânia pela Rússia, com o aumento dos preços dos combustíveis e dos cereais a nível mundial.

Tendo assistido, atónita, a um debate parlamentar que foi encaminhado no sentido de se confrontarem as supostas “narrativas da fome” e as declarações segundo as quais há neste momento em Cabo Verde “indivíduos e famílias que não se alimentam”, como se de um tema ideológico se tratasse, pergunto: como podemos nós, cidadãos comuns, fazer para ter uma real percepção do que se passa neste momento com os nossos concidadãos mais vulneráveis no que tange à sua segurança alimentar?

Caberá ao cidadão comum, que está a tentar conduzir a sua vida no dia-a-dia, tentando cumprir todas as suas obrigações, tudo largar para ir fazer indagações no terreno?

Não se deveria ter apresentado e debatido a real situação vivida neste momento pelas famílias cabo-verdianas?

São feitos apelos à diáspora! Como disse no início deste texto, já em 1901 se organizavam em Lisboa acções caritativas para ajudar a população fragilizada em Cabo Verde. Como promover uma intervenção capaz por parte da diáspora, sem um conhecimento real da situação?

Parafraseando o nosso Primeiro-Ministro: “falando a verdade, conhecendo a realidade”. Subscrevo esta afirmação. E julgo ser mesmo imperioso conhecer detalhadamente a realidade, e não nos perdermos, nem baralharmos os nossos concidadãos com exercícios de retórica sobre um passado, longínquo ou recente, de “cowboys e índios”, de “bons” e “maus da fita”.

Um exercício mais desafiante, e talvez, de maior interesse nacional pode ser o de tentarmos tirar lições positivas do passado.

Proponho, assim, que se constitua uma COMISSÃO POLITICAMENTE INDEPENDENTE integrada por cientistas sociais nacionais, residentes e a trabalhar no estrangeiro, comissão esta que proceda a um estudo detalhado da real situação das famílias cabo-verdianas, concelho por concelho, no que tange à satisfação das suas necessidades calóricas, de consumo de nutrientes, e de água potável, com o objectivo de preservar a sua integridade física e psíquica, enfim, a sua saúde.

Julgo que um relatório resultante deste estudo poderia dar-nos, como Nação, e sobretudo, aos profissionais experientes na área, a possibilidade de pensar nas estratégias mais eficazes para debelar este problema que o mundo enfrenta actualmente.

LANÇO ESTE DESAFIO à comunidade científica nacional, e faço um APELO ao Sr. Presidente da Assembleia Nacional de Cabo Verde para que uma tal Comissão seja constituída o quanto antes.

Afinal, pergunto, para finalizar: PARA QUE QUEREMOS NÓS A INDEPENDÊNCIA?

Lisboa, 1 de Março de 2022

*Historiadora, Investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)- Universidade Nova de Lisboa

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 757, de 03 de Março de 2022

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