O que tem tornado a agricultura em Santo Antão uma “arte do empobrecimento”, como defendeu, há dias, o autarca Orlando Delgado, da Ribeira Grande, não é apenas o embargo, mas também a falta de um trabalho de raiz, estruturado, no sentido de procurar soluções para a praga dos mil-pés na ilha das montanhas. É o que defende o engenheiro agrónomo Daniel Xavier da Luz ouvido pelo A NAÇÃO, a propósito.
Para Daniel Xavier da Luz, que foi delegado do Ministério da Agricultura no Porto Novo, entre 2012 e 2016, e que fala a este jornal a título pessoal, na qualidade de técnico, levantar o embargo, apenas através de decreto, não é a solução para a praga dos mil-pés em Santo Antão.
Com efeito, há mais de 40 anos que essa praga tem vindo a afectar a produção agrícola nessa ilha, acusando aquele autarca falta de vontade política para resolver o problema que, a seu ver, tem estrangulado a economia de Santo Antão.
Em primeiro lugar, defende Xavier, é preciso desenvolver um trabalho da base ao topo, para desenvolver uma cadeia de valores dos produtos de Santo Antão. O passa, desde logo, pela organização dos produtores.
O Centro Pós-Colheita, segundo disse, pode ser uma contribuição importante para ultrapassar a questão do embargo, juntamente com outras soluções, nomeadamente a aposta e desenvolvimento da pequena indústria de transformação.
“Para mim, o embargo de Santo Antão poderia constituir uma grande oportunidade para o negócio do sector agrícola na ilha, na medida em que se podia aproveitar e desenvolver a pequena indústria de transformação. O embargo não tem de ser feito apenas através de decretos, tem de haver alternativas, e, desenvolvendo essa valência da transformação, a ilha não teria problemas”, analisa.
Segundo este engenheiro agrónomo, não se pode simplesmente levantar o embargo, porquanto há muita coisa que se tem que fazer “até chegar lá”, sendo uma delas uma transição necessária do discurso político para a acção. De outro modo, deixa a saber, é grande o risco da praga propagar-se a outras ilhas, a começar por Santiago.
Organização e trabalho em conjunto
Segundo Daniel Xavier da Luz, os produtores de Santo Antão detêm pequenas parcelas de terreno, que vão de dois a quatro mil metros quadrados, sendo difícil encontrar um agricultor com um hectare de terreno.
Por isso, para impulsionar a resolução de escala, e aproveitar as valências do centro de inspeção, é fundamental que estejam organizados. Mas, lembra também, a ilha padece de “outros problemas”, entre os quais a falta de mão-de-obra e uma melhoria na organização e gestão da água.
Uma das melhores vias para fazer essa organização, entende o nosso entrevistado, será por via de cooperativas, admitindo ser esta uma mudança que não acontecer “em dois dias”, tendo em conta as características do homem e mulher de Santo Antão.
“É um trabalho de persistência, de formação e educação para essa modalidade, sensibilizando os produtores para as vantagens de trabalharem com organização, definir o modelo de cooperativa que melhor se adequa as suas necessidades, e, a partir dai, gerar uma cadeia de valores”, explica.
Centro pós-colheita como contribuição
O Centro Pós-colheita de Santo Antão, que, segundo disse o presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, é hoje um “elefante branco”, pode ser, para Daniel Xavier da Luz, que participou da sua implementação, em 2013, uma importante contribuição para ajudar a mitigar o efeito do embargo.
O interlocutor do A NAÇÃO recorda que o centro de Santo Antão é o único que faz a inspeção fitossanitária dos produtos, para além da embalagem e tratamento, e que foi criado precisamente com o propósito de ajudar a contornar o embargo na ilha.
“Depois de várias intervenções, em 2013, foi possível abrir as portas pela primeira vez, numa filosofia de sensibilização, não só dos agricultores, como também para os próprios comerciantes”, recorda.
O serviço, na altura, segundo diz a nossa fonte, era gratuito, sendo que todo o material de embalagem foi doado, e o centro era gerido pela própria delegação do Ministério da Agricultura, no sentido de sensibilizar para as vantagens que podia trazer para os agricultores. “Tudo isso, tendo em conta a disponibilidade de barcos para a Boa Vista e Sal, para onde eram enviados os produtos”, sublinha.
Em suma, era um recurso, segundo a mesma fonte, utilizado pelas rabidantes que residem em São Vicente e que iam a Santo Antão buscar mercadoria. Neste quadro, afirma, “passaram pelo centro mais de 300 toneladas de produtos, funcionando as segundas, quartas e sextas, em regime de disponibilidade de barcos”.
Dos produtos que passaram por inspeção, 70% eram provenientes do Porto Novo, facto, segundo Xavier, até certo ponto compreensível, por ser o concelho que mais produz hortícolas. Cerca de 19% de produtos eram provenientes do Paul e só “mais ou menos” 10% da Ribeira Grande, mesmo este sendo maior do que o Paul”.
Mesmo assim, descarta o argumento de que a localização do centro seja o motivo dessa discrepância a nível de utilização.
O que faltou, na sua visão, foi um trabalho de parceria, por parte do próprio edil da Ribeira Grande, que “sempre fez um discurso de que o centro não funcionava”.
“Na sua implementação, fizemos a questão de convida-lo para ir lá ver que o centro estava a funcionar, no sentido de sensibilização. Ele deveria ter sido um parceiro, mas não agiu como parceiro. Fez uma desinformação junto dos agricultores de que o centro não funciona”, acusa.
Por isso, diz para concluir, “a localização do centro é uma falsa questão”, até porque um estudo feito pela então equipa responsável, para avaliar o nível de satisfação das pessoas, “a questão não foi colocada”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 758, de 10 de Março de 2022