Com os preços em alta e falta de poder de compra, os pequenos comerciantes de São Vicente dizem que já não sabem que contas fazer para, no fim de cada dia de venda, garantir o lucro que lhes permita sobreviver, sem afugentar a pouca clientela que ainda lhes resta. Sem muita fé, estes “filhos de parida” apelam a uma melhor atenção das autoridades para a situação em que se encontram na Ilha do Monte Cara.
O cenário na Praça Estrela, no Mercado Municipal, ou em qualquer outro espaço de venda de frescos no centro do Mindelo, vulgo Morada, está longe de estar nos seus melhores dias. No geral, o movimento é fraco, para não dizer praticamente nulo.
O desânimo no olhar dos pequenos comerciantes, na maioria mulheres, parece exprimir o que vai na alma dos pequenos operadores económicos que, todos os dias, naqueles espaços comerciais de referência do Mindelo, procuram ganhar a vida e, com isso, a sobrevivência quotidiana.
Taxas e outros encargos
Muitos são “chefes de família”, a maior parte, sem nenhuma outra fonte de renda que não esta, a de tentar a sorte atrás de uma “pedra”. Vendam ou não, têm sacramentalmente de pagar 110 escudos à Câmara Municipal. Pois, é com esta taxa que os Serviços de Saneamento, por seu turno, dizem garantir o asseio do espaço, além de outros
serviços.
Por causa do pouco movimento comercial, quem vende fala em reduzidas margens de lucros, a que se somam os custos de transportes das mercadorias, o pagamento de taxas, entre outras obrigações e compromissos, especialmente, com os fornecedores.
José Varela, 37 anos, natural de Santiago, é comerciante na Praça Estrela há sete anos. Diz-nos que veio para São Vicente dado que o mercado na sua ilha natal estava “saturado”. Pai de três filhos, com a mulher desempregada, reside na Ribeirinha, e não se mostra muito optimista com o presente e o futuro.
“A maior parte dos clientes já não consegue comprar”
“Em São Vicente não se produz quase nada, por isso, os nossos produtos vêm de outras ilhas, nomeadamente de Santo Antão, Santiago e São Nicolau, e, até chegarem cá, temos de vendê-los a um preço que, muitas vezes, a maior parte dos nossos clientes já não consegue comprar”, admite.
Como exemplo, esse comerciante diz também que compra batata doce por 230 escudos o quilo e revende por 250. Mesmo assim, desabafa, “os clientes reclamam que é caro, não compram, e quem pode comprar adquire os seus produtos nos supermercados”.
Associado ao mau ano agrícola, que já vai no seu quarto ano consecutivo, a que se soma a covid-19 e outros problemas e contrariedades, os pequenos comerciantes dizem já não saber o que fazer para conseguirem o seu “ganha pão”.
Custo diário de cerca de 510 escudos
A venda nos mercados é realizada mediante o pagamento de uma taxa de diária de 110 escudos, que lhes começa a ser cobrado a partir das 11 horas.
Esse valor que aparenta ser um preço simbólico tem-se revelado, por vezes, difícil de cumprir, dado que há dias em que os vendedores alegam não conseguir vender sequer o suficiente para repor esse montante “sagrado”.
A isso junta-se o custo das desolações das mercadorias para as suas habitações e para o mercado, o que somado anda à volta dos 400 escudos. Nesta matemática, diariamente, ao todo, o vendedor deve ter disponível cerca de 510 escudos, independentemente da venda que conseguir efectuar.
Concorrência desleal e fiscalização deficiente
Além da falta de espaços seguros para, no fim do dia, deixarem as mercadorias, sem ter que as levar para casa, também reclamam a concorrência dos outros pequenos comerciantes, nas ruas, que têm a seu favor o controlo ineficiente dos fiscais e ainda as negociações com os fornecedores que, às vezes, é difícil.
Natural de Santo Antão, mãe de três filhos, todos sob a sua responsabilidade, Osvaldina Tolentino, vendedeira no Mercado Municipal, partilhou com A NAÇÃO o seu descontentamento devido às vendas que são realizadas na
rua, mesmo na “barba cara” dos fiscais, impedindo com isso os potenciais clientes de se dirigirem ao Pelourinho. Como deixa a transparecer, esta é uma reclamação antiga, “infelizmente”, sem solução à vista.
Osvaldina reside em Horta Seca e diz que há já algum tempo que ela e os demais vendedores, no Mercado Municipal, praticamente deixaram de vender.
“Hoje em dia, praticamente pagamos para estar aqui, sentados. Eu, por exemplo, pago 220 escudos todos os dias porque tenho duas bancas. Há dias em que da mesma forma que chego, assim regresso a casa, sem conseguir vender nada”.
Andreza Lopes, 56 anos, vendedeira na Praça Estrela, partilha do mesmo descontentamento em relação à concorrência daqueles que vendem na rua. Apela por isso aos fiscais para uma melhor gestão do espaço e mais brio no seu trabalho, actuando junto de quem vende nas ruas da Morada.
“Já reclamámos, mas os fiscais não fazem nada”
“Muitas vezes não vendemos nada porque há quem fique logo na entrada, ou até mesmo fora da praça, e os clientes compram logo ali, não estão para chatices de percorrer as bancas. Já reclamámos, mas os fiscais não fazem nada.
Todos deveriam vender aqui dentro, como manda a lei, caso contrário, a solução é passarmos todos a vender nas ruas”, sublinha.
Residente na Ribeira de Craquinha, Andreza tem quatro filhos, todos sob a sua responsabilidade, dado que nem os mais grandes têm trabalho fixo, “trabalham quando aparece alguma obra para fazer”.
O marido é agente de segurança privada e é com o rendimento dele e dela que o casal procura “se desenrascar” nestes tempos de dificuldades.
No seu caso, conta que todos os dias paga 600 escudos pelo transporte das mercadorias e mais os 110 escudos da taxa diária para poder vender na Praça Estrela. Contas feitas, já nem sabe se tem lucros ou não, ao fim de cada dia de trabalho. Uma certeza garante ter:
“Com o tempo, com o ir e vir do transporte, há produtos que se estragam e, por isso, às vezes, não ganho nada”.
Como a generalidade dos vendedores, Andreza adquire os produtos a crédito para pagar depois aos fornecedores. Nisso, fala da pressão que, às vezes, sofre na hora da cobrança. Nesses momentos de “afronta” é obrigada a emprestar junto de outras pessoas para poder quitar a dívida, caso contrário, deixa de receber mercadorias para a revenda.
Segurança social
Sem rendimento fixo, ou rendimento baixo, a vida não permite a estes pequenos operadores ter um salário claro e menos ainda fazer poupanças.
Com isso também, não conseguem inscrever-se no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), por forma a acederem à assistência que essa entidade presta aos seus contribuintes. O mínimo que o INPS exige é um salário mensal de 15 mil escudos (1º escalão).
Mais conhecida por Gu, Gumersina Ramos Medina é natural de Santo Antão e, como conta, veio para São Vicente à procura de melhores condições de vida.
Desde 2012 vende frescos na Praça Estrela. Viúva, vive na Ribeira de Craquinha numa habitação de lata com os cinco filhos, sendo que os outros dois já não vivem com ela. Dos sete filhos apenas um trabalha quando aparece.
Embora inscrita no cadastro social, Gu conta que nunca foi beneficiada de nada, nem tão-pouco os filhos órfãos. Para esta vendedeira, os desafios repetem-se todos os dias.
Para abrir a banca tem de ter os 110 escudos.
Uma outra conta, também sagrada, é com os fornecedores dos hortícolas que vende.
Acredita que, caso tivesse como pagar a pronto o que recebe, as coisas seriam mais fáceis e a margem de lucros maior. A NAÇÃO perguntou-lhe se conhece organismos que concedem microcréditos (Morabi, OMCV…), mas a resposta foi negativa.
Para esta vendedeira e viúva, alimentar a sua família está a tornar-se cada vez mais difícil. Se antes da covid-19 a luta já era difícil, agora, com a pandemia e a carestia de vida, fruto da falta de trabalho que vai por São Vicente, diz que há dias que não consegue levar nenhum dinheiro para casa. Muitas vezes, o que ganha mal dá para comprar um quilo de arroz.
Como confessa também, há muito que não sabe o que é ter três refeições por dia. O jantar é a refeição principal e o pequeno almoço se resume, na maioria das vezes, a um pão com chá. Sim, com tão pouco, há momentos que sente o estômago a gritar por comida.
Falta de oportunidades
De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas (INE), o sector informal é representado maioritariamente por pessoas do sexo masculino. Em 2020 havia 57.603 homens e 38.670 mulheres com empregos informais.
Na maior parte dos casos é gente que, sem emprego fixo, decidiu aventurar-se no sector informal. Quando há, tiram o dia de trabalho em “biscates” que vão aparecendo, aqui e ali.
A venda de verduras nos mercados municipais, de guloseimas nas ruas das cidades, ou de produtos diversos através de venda ambulante são algumas das saídas mais comuns para quem desistiu do emprego formal.
É o caso, pode-se dizer, de José Varela, comerciante na Praça Estrela, que decidiu criar o seu próprio emprego como vendedor de verduras. Natural de Santiago, há sete anos a buscar a vida em São Vicente, Varela diz que, mesmo com a queda das vendas, não pode ficar parado, já que a família depende daquilo que ele consegue levar para casa.
“A solução é insistir, uma vez que a oferta de emprego é bastante escassa, ainda por cima para gente como eu”. Questionado se, caso aparecesse um emprego fixo, mudaria de profissão responde que sim: “desde que seja para melhor”.
Sector informal que soluções?
Perante tal situação, os pequenos comerciantes apelam a uma atenção especial, porparte das autoridades, nacionais e municipais, tendo em conta a situação a que estão a atravessar. Acreditam que, com boa vontade, é sim possível olhar para os “mais vulneráveis”.
Lousiene Lima
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 756, de 24 de Fevereiro de 2022