Poderão as “novas tecnologias” ditar o fim das livrarias físicas em Cabo Verde? Ou há espaço para o livro digital e o livro físico neste mercado de escassos consumidores? Daniel Brito, dono da Livraria Semente, no Mindelo, defende que a luta passa, acima de tudo, por vencer as dificuldades tradicionais que se colocam a quem decidiu abraçar o negócio de livros, como é o seu caso.
As chamadas TIC, Tecnologias de Informação e Comunicação, vêm impactando em todas as esferas da sociedade, criando novos estilos de vida e de consumidores.
Com a internet, as plataformas de comunicação não param de se expandir, através da conquista de novos consumidores, pondo gente em rede e em contacto como nunca dantes visto.
No que diz respeito ao consumidor cultural, actualmente, o mundo editorial, tanto dos livros como dos jornais, vem experienciando e adoptando novos padrões de consumo, um dos quais o livro digital, mas também o comércio electrónico (e-commerce), entre outros.
Questões e inquietações
Todas essas transformações podem ser vistas com “bons olhos” e “bem aceites”, mas abrem também espaço para outras questões e inquietações.
Uma dessas inquietações é como irão “sobreviver” as livrarias físicas perante a constante e feroz evolução tecnológica em que tudo é praticamente desmaterializado?
Daniel Brito, dono da livraria Semente, no Mindelo, acredita que, por proporcionarem experiências diferentes, “há espaço para ambas”.
“Quando muito, as duas formas de venda e leitura – livraria física como a online – vão conviver por muito tempo, por serem modelos de negócios diferentes”, diz (ver destaque).
Livraria exclusivamente dedicada à venda de livros
Professor universitário, actualmente afastado da academia, animador de um programa sobre livros na Rádio Morabeza, o entrevistado do A NAÇÃO diz relativizar o problema do livro digital, numa sociedade como a cabo-verdiana, onde livro físico, em papel, enfrenta sérias dificuldades de sobrevivência.
Tirando o caso da livraria do Centro Cultural do Mindelo, propriedade da Biblioteca Nacional, a Semente é única livraria privada, do país, que se dedica única e exclusivamente à venda de livros.
Outras, na Praia principalmente, para sobreviverem, exploram outras actividades comerciais que não apenas o livro. São papelaria, bares-restaurantes, etc.
Situada no centro do Mindelo, a Semente existe desde 2006, altura em que foi fundada por Daniel Brito e a esposa, Antónia Mosso, ambos motivados pelo gosto de leitura e pela necessidade de haver, na época, uma livraria em São Vicente que satisfizesse as suas necessidades.
Primeiro, na Rua Angola, hoje, na rua Fernando Fortes, quase defronte da Delegacia de Saúde, num espaço maior.
É lá que A NAÇÃO foi encontrar Daniel Brito, que nos contou a sua aventura e o que tem feito para sobreviver, num sector tido por muitos como sendo particularmente problemático, tendo em conta os baixos índices de leitura dos cabo-verdianos, a que se junta o recurso a fotocópias, entre os estudantes e professores, como forma de fugir à compra de livros.
Uma livraria à altura de uma cidade cultural
“Eu e a minha esposa sempre gostamos de ler e sentíamos a necessidade de encontrar os livros que não encontrávamos em São Vicente. Questionamos, na altura, como é que Mindelo podia ser considerada uma cidade de cultura, a capital cultural de Cabo Verde, sem uma livraria digna desse nome? Então decidimos lançar esta ‘semente’ e que se mantém até hoje”, diz Brito, como explicação do nome da livraria.
Contando com variadíssimas obras, sobretudo ao nível da literatura, e passe a publicidade, na Semente pode-se encontrar livros de ficção, infanto-juvenil, desenvolvimento pessoal, autores cabo-verdianos, estrangeiros, exceptuando-se livros técnicos que foram descontinuados devido à procura ser praticamente inexistente.
“Apesar de haver mais do que uma universidade no Mindelo, a verdade é que se lê pouco; os chamados livros técnicos, estes então, praticamente não têm saída”, afirma este livreiro.
No decorrer da nossa conversa conseguimos apurar informações interessantes, relativamente ao perfil dos clientes da Semente. Actualmente, ela possui clientes em todas as ilhas do país e até além-fronteiras (Brasil, Reino Unido, Portugal etc.).
“Somos contactados, por clientes noutras ilhas e até do estrangeiro, que nos encomendam livros. Através da nossa página nas redes sociais, nomeadamente no Facebook, eles vão sabendo o que temos ou não”.
“Top Mais” da Semente
De acordo com o livreiro do Mindelo, o consumo de livros é maior no sexo feminino do que o masculino e com mais incidência nas faixas etárias entre os 25 e os 44 anos, o que de resto quase coincide, na totalidade, com dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE) quanto aos hábitos de leitura dos cabo-verdianos.
Os livros com mais procura, na Semente, são os de ficção, principalmente romances, mas também os de desenvolvimento pessoal, de auto-ajuda, mas também os infanto-juvenil, “sendo as crianças grandes influenciadoras da compras de livros infantis por parte dos pais e encarregados de educação”.
A literatura cabo-verdiana, segundo o nosso interlocutor, “vai saindo”, com Germano Almeida à testa.
“Neste momento as obras mais procuradas são ‘A confissão e a culpa’ de Germano Almeida, ‘Cabo Verde um corpo que se recusa a morrer’ de José Vicente Lopes e ‘Noite Escravocrata Madrugada Camponesa’ de António Leão Correia e Silva”. (A história, nomeadamente a de Cabo Verde contemporâneo, é das áreas mais procuradas, mostrando-se a Semente relativamente fornecida.)
Dos estrangeiros, Daniel Brito aponta Napoleon Hill, Augusto Cury, Margaret Atwood, Isabel Allende, Chimamanda Ngozi Adichie, J.K.Rowling, mas também os clássicos como Dostoievski, Tolstoi, Jane Austen, Toni Morrison, Nietzsche, com títulos de “cauda longa”.
Os desafios do avanço tecnológico
Dados recentes do INE indicam que cerca 76% da população em Cabo Verde tem acesso à Internet, metade (50,8%) tem acesso a revistas, jornais, e livros electrónicos.
Contudo, de acordo com a mesma fonte, apenas 38,4 % dos cabo-verdianos têm o hábito de ler. Nessa equação, nem sempre fácil de resolver, há quem diga, até, que os números são menos optimistas.
No mar de dificuldades que é manter uma livraria, para sobreviver, diz Daniel Brito, para além das vendas no local, a Semente vem tentando, na medida do possível, acompanhar os avanços tecnológicos aproveitando algumas das suas facilidades.
Vendas através das redes sociais
Realiza vendas através das redes sociais, nomeadamente no Facebook e no Instagram, embora não possua um site para “fomentar” o comércio electrónico. Ainda assim, os leitores mais curiosos e interessados, através dessas duas plataformas, vão vendo o que a Semente tem em carteira.
Daniel Brito, a propósito: “A nossa venda online faz-se da seguinte forma: os clientes solicitam os livros através das redes sociais (Facebook e Instagram), efectuam a transferência bancária e a livraria, por sua vez, envia as encomendas pelos correios. Em breve disponibilizaremos um método de pagamento novo e mais prático que é o Easy link (serviço simples que permite aos comerciantes criarem links de pagamento de forma fácil)”.
Face ao avanço imparável das TIC, Brito diz-se ciente também desse perigo, uma vez que, por este mundo fora, “as pequenas livrarias físicas não conseguem competir em termos de preços com as grandes e nem com as Big Tech tal como Amazon (apesar de esse não ser o core Bussines da Amazon)”.
Em Cabo Verde, como refere, a sobrevivência das livrarias coloca-se num nível mais básico.
Livraria física e livraria online: duas experiências completamente diferentes
“Há desafios sim, mas em Cabo Verde não se sente tanto, tal como nos outros países em que o digital pode ser considerado um adversário agressivo para as livrarias físicas. Quando muito, as duas formas de venda e leitura-livraria física como as online – vão conviver por muito e muito tempo, por serem modelos de negócios diferentes”.
Para este amante do livro e da leitura, “escolher um livro online ou entrar numa livraria pegar num livro e manuseá-lo, ter um livreiro disponível para se aconselhar acerca de uma obra, não acontece no digital, logo, são experiências completamente diferentes”. Por isso, acredita também, aconteça o que acontecer, “o livro físico terá sempre o seu lugar”.
Custos e dificuldades
Além disso, particularmente em São Vicente, que é a realidade que o nosso entrevistado melhor conhece, as TIC não estão longe de ser o principal desafio a ser considerado nesta equação pela sobrevivência.
Há outros desafios, nomeadamente, a pequenez do mercado, as tributações e a distribuição das obras nacionais, estas sim podem ser consideradas o calcanhar de Aquiles neste ramo de negócio.
“O mercado é muito pequeno e esta é uma limitação que coloca em risco não só a sobrevivência das livrarias como de vários outros negócios. Depois, há os custos alfandegários, os impostos que se tem de pagar, embora, quando abrimos, já sabíamos que haveríamos de nos confrontar com este tipo de dificuldades”.
O grave problema de transporte entre Santiago e São Vicente e vice-versa
O sector livreiro em Cabo Verde, ainda de acordo com o nosso entrevistado, enfrenta um outro grave problema, quase estrangulamento, o da distribuição e transporte, nomeadamente da ilha de Santiago para São Vicente, ou vice-versa, de obras de autores nacionais.
Há, inclusivamente, organismos do Estado (a Biblioteca Nacional e a Imprensa Nacional) que não fornecem livros para particulares em outras ilhas, “o que é um entrave para quem não está na capital”.
Em consequência, há obras publicadas na Praia que não chegam ao Mindelo, e vice-versa, ou que, por causa disso, levam uma eternidade para chegar. Um exemplo flagrante e grave: até a Constituição da República chega a ser difícil de encontrar no Mindelo.
Por isso, o entrevistado do A NAÇÃO diz não ter dúvidas: “As melhorias do sector passam pela distribuição (inexistente ao nível das entidades públicas – Biblioteca Nacional, Imprensa Nacional, entre outras).
Necessidade de uma política de incentivo ao livro e à leitura
Mas também a organização de toda a cadeia do livro, constituição de associações e entidades representativas como, por exemplo, uma associação de editores e livreiros e, por que não também, “políticas de incentivo ao livro e à leitura”, a que se junta algum controlo nas fotocópias de obras inteiras.
Ademais, há também o Plano Nacional da Leitura, há muito anunciado, mas que, no dizer do nosso entrevistado, ainda não se conhece a “sua configuração”, não se sabendo ao certo o que se pretende com o mesmo.
“À partida, será algo positivo, desde que devidamente enquadrado por medidas e estratégias que envolvam as comunidades educativas. Algo que também deverá ser equacionado pelas Câmaras Municipais são os Planos Municipais de Leitura. Nós, na Semente, disponibilizamos muitas das obras que fazem parte do PNL de Portugal e que têm boa aceitação entre os nossos leitores”, sugere..
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 754, de 10 de Fevereiro de 2022
Por: Louisene Lima (estagiária)