Por: João Serra*
Parafraseando o economista norte-americano e Prémio Nobel da Economia em 2008, Paul Krugman, digo que, em 2020, Cabo Verde estava “prenhe” dos riscos gémeos de uma economia no fundo do poço e de uma dívida pública insustentável. Trata-se de uma combinação explosiva de acontecimentos simultâneos e interligados, uma verdadeira “tempestade perfeita”.
Com efeito, por causa da pandemia provocada pela Covid-19, o País viveu, em 2020, uma das mais profundas crises económicas e sociais da sua história. Segundo indicadores do INE, a economia cabo-verdiana sofreu, nesse ano, uma recessão histórica equivalente a 14,8% do PIB.
Com a dimensão desta queda do PIB, a média das taxas de crescimento anual do PIB, de 2016 a 2020, é de apenas 0,8%, muito inferior à taxa de 7%/ano, taxa essa considerada necessária para que haja espaços orçamentais para os necessários investimentos públicos, visando uma maior dinâmica económica e a redução do desemprego. Mas, mesmo antes de 2020, ou seja, de 2016 a 2019, a média das taxas de crescimento anual do PIB era de apenas 4,65%, portanto, sequer atingia 5%.
A recessão económica de 2020 inverteu os progressos na redução de pobreza alcançados ao longo das últimas duas décadas e colocou, de acordo com dados oficiais, cerca de 100 mil pessoas na pobreza temporária. Perderam-se, nesse ano, um total de 19.718 empregos e a taxa de desemprego aumentou para 14,5%, não tendo sido maior por causa das medidas de “lay-off”. O défice orçamental aumentou substancialmente, de 2,4% em 2019 para 9,1% em 2020, e os ganhos obtidos na redução do rácio dívida pública/PIB foram apagados.
Mas, o mais grave em tudo isso é que, nos últimos 5 anos, as famílias cabo-verdianas empobreceram, em média e em termos reais, ao ritmo de 1,8 % por ano, contrariamente à felicidade prometida, conforme se pode ver no quadro a seguir.
Ademais, teme-se uma situação de dificuldades financeiras de empresas e de famílias, principalmente quando a moratória pública terminar, em março de 2022. Isto pode pesar sobre o investimento e o consumo e, consequentemente, a oferta de crédito, aumentando os créditos malparados, já de si elevados à luz dos padrões internacionais. A ocorrer-se, esta situação pode criar problemas financeiros à banca nacional.
Por outro, a crise expôs algumas vulnerabilidades de um pequeno Estado insular em desenvolvimento, dependente de um modelo de crescimento caracterizado por uma forte dependência do turismo que, antes da pandemia, representava cerca de 25% do PIB.
Cabo Verde, enquanto um pequeno país insular em vias de desenvolvimento, tem muitas condicionantes, aliás à semelhança de muitos outros países. Mas temos uma condicionante muito marcada: um elevadíssimo nível de endividamento público.
Com efeito, segundo dados oficiais do Governo, o “stock” da dívida pública do País aumentou para o valor histórico de cerca de 256,7 milhões de contos em 2020, que compara com o valor de cerca de 200 milhões de contos em 2015. Em decorrência, o rácio dívida pública/PIB aumentou de cerca de 126% em 2015 para o valor, também histórico, de 155,6% em 2020.
Acrescenta-se, também, o expressivo aumento dos passivos contingentes de 2015 a 2020, por causa do grande uso de garantias do Estado, muitas vezes sem fundamentos razoáveis, o que pode representar um problema para os desenvolvimentos orçamentais futuros. Na verdade, o “stock” dos passivos contingentes passou de cerca de 10,7 milhões de contos em 2015 para cerca de 17 milhões de contos em 2020, tendo o seu rácio nominal face ao PIB passado de 6,7% para 10,3%.
Os dados oficiais do Governo relativamente à dívida pública não contabilizam os avales e as garantias concedidos pelo Estado a terceiros (empresas públicas e privadas, Câmaras Municipais, etc.), as responsabilidades decorrentes da extinção dos TCMFs e da subsequente transferência das suas contrapartidas para o Fundo Soberano, bem como os passivos contratados junto ao FMI, no quadro do “Rapid Credit Facility”.
Ainda que, em princípio, não devam ser registados como passivos nas estatísticas macroeconómicas, os passivos contingentes podem, mesmo assim, constituir um risco orçamental com alguma relevância, quando certas condições prevalecem, por exemplo, caso a garantia do empréstimo seja executada, obrigando o registo.
Assim sendo, as boas práticas internacionais recomendam que essas responsabilidades contingentes, em parte ou no seu todo, sejam consideradas no perímetro da dívida pública. A razão para isso tem a ver com o facto de estarem associadas a passivos do sector empresarial do Estado e de empresas privadas com algum interesse público, bem como a passivos dos Municípios enquanto entes públicos.
Ou seja, podemos estar a falar de um montante real de dívida cujo rácio dívida pública /PIB poderá já ter ultrapassado, em dezenas de pontos percentuais, o valor oficial de 155,6%.
Uma dívida pública alta, no entanto, pode ter um efeito negativo sobre a atividade económica ao exigir elevados impostos para financiá-la, o que acaba provocando uma subida nas taxas de juro e, consequentemente, prejudicando os investimentos privados e a vida das famílias. Se o Governo não consegue financiar o seu défice, medidas como corte de despesas públicas ou aumento dos impostos devem ser realizadas, com o objetivo de equilibrar, novamente, as Contas do Estado. Caso essas medidas não sejam colocadas em prática, o Governo provavelmente enfrentará uma crise da dívida, que o levará a inflacionar a economia ou aplicar um “default”.
Outrossim, quando o país gasta a maior parte das suas receitas com o serviço da dívida, sobram menos recursos para a educação, saúde e serviços essenciais para a sua população, o que faz parar o progresso.
Por essas e outras razões, a subida da dívida pública face ao PIB, mormente nos países em desenvolvimento, tem sido um dos temas mais debatidos a nível mundial, devido ao perigo que isso coloca às economias relativamente à capacidade de fazerem os investimentos públicos necessários ao desenvolvimento e, ao mesmo tempo, terem margem orçamental suficiente para honrar os compromissos financeiros.
Cabo Verde, no que à dívida pública diz respeito, está em situação de dívida problemática/ elevado nível de risco de sobre-endividamento (“high risk of debt distress distress”, no original em inglês), segundo o enquadramento da Análise da Sustentabilidade da Dívida que é feito regularmente pelo Banco Mundial e pelo FMI para aferir a capacidade de os países pagarem a dívida.
A trajetória da dívida pública em Cabo Verde está, assim, a tornar-se cada vez mais insustentável, com alguns dos principais indicadores sobre a dívida considerados pelo Banco Mundial e FMI a ultrapassar o limite de sustentabilidade, situação que poderá agravar-se ainda mais, em consequência dos efeitos da crise económica e social provocada pela pandemia.
Termino, dizendo que a situação ora analisada foi mais condicionada do que, na verdade, poderia ser, em resultado das opções políticas erradas dos Governos de Cabo Verde, mormente do em funções.
*Doutor em Economia
Praia, 08 de novembro de 2021
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 741, de 11 de Novembro de 2021