A TACV vai retomar os voos internacionais na próxima segunda-feira, 27, com duas ligações entre Praia e Lisboa, às segundas e sextas-feiras, num novo arranque sobrecarregado de velhas incertezas. Um dos temores é se tudo não passa, outra vez, de mais uma nova jogada política de Ulisses Correia e Silva para se livrar daquele que é tido como um dos maiores fracassos da sua governação. Uma coisa é certa: a gestão financeira da “companhia de bandeira”, entre 2017 e 2019, foi a mais catastrófica de sempre e a culpa não pode ser atribuída à covid-19, que só chegou em 2020.
Tanto assim é que um documento confidencial (antevisão da assembleia geral dos accionistas da TACV) deixa a nu, preto no branco, o desastre que foi a gestão da Icelandair na companhia.
O documento, a que A NAÇÃO teve acesso, confirma os dados que este jornal foi revelando ao longo de todos estes anos em que o dossiê TACV e Icelandair esteve na berlinda.
Situação da TACV agrava-se ainda mais com o Governo de UCS
Assim, se em 2015, um ano antes da mudança do partido no Governo, a companhia tinha uma situação “assustadora” e “caminhava a largos passos para o abismo”, o quadro agravou-se ainda mais com a eleição do Governo de Ulisses Correia e Silva e do MpD, em Abril de 2016 e a entrada em cena do parceiro islandês, chamado a trazer a solução milagrosa para a TACV.
Conforme a mesma fonte, os resultados líquidos passaram de -1.516.129.000 CVE (13 749 866 €) em 2014, para -3.437.528.000 CVE (31 175 151 €). “Número catastrófico e tendência apavorante que fizeram com que o tema ‘TACV’ figurasse como sendo um dos principais assuntos (cavalo de batalha) na disputa eleitoral de 2016”.
“Assim, uma das missões mais importantes do Governo formado pelo partido que ganhou as eleições era inverter a situação e salvar os TACV. Infelizmente isso não aconteceu”, lê-se no documento (ver quadro).
Em 2016, o défice dos resultados líquidos com relação a 2015 foi reduzido em 33%.
“Sem dúvida, foi um bom desempenho porque significava inversão da tendência 2014/2015. Mas foi sol de pouca dura”, porquanto os “demónios” do défice crónico regressaram com a decisão do Governo em contratualizar, em Setembro de 2017, a assistência técnica da Icelandair, com vista a preparar a privatização da empresa.
Com a Icelandair à frente da gestão da TACV, em 2017, a redução do défice iniciada em 2016 foi anulada levando à queda dos resultados líquidos da empresa para -3.755.956.000 CVE, ou seja, houve um agravamento de 63%.
Resultados de 2018 com agravamento de 190% em relação a 2016
“Começou a grande saga de Hub no Sal e a ambição de ligar 4 continentes, tendo Cabo Verde como plataforma de distribuição. Assim, em 2018, os resultados líquidos da empresa passaram de -3.755.956.000 CVE para -6.711.790.000 CVE. Ou seja, um agravamento de 79% com relação a 2017, já com a assistência técnica da Icelandair e 190% com relação a 2016, onde ainda não tínhamos a perniciosa assistência técnica da Icelandair”.
Em 2019, o défice reduziu-se para -6.031.809.000 CVE, uma melhoria de 10%, “graças a uma melhoria das taxas de ocupação e porque certas ligações Europa-Brasil foram suprimidas e particularmente as ligações entre a Nigéria e os EUA inauguradas com muita pompa foram também descontinuadas”.
Presença nefasta da Icelandair
Segundo uma das conclusões desse documento, a presença da Icelandair na TACV foi geradora de agravamento do défice nos resultados líquidos da empresa e, portanto, a todos os níveis, nefasta.
“Mas os danos causados aos TACV são também danos directos ao país e à sua economia”, porquanto “a empresa subsistiu graças a sucessivos avales do Estado que acabaram por se transformar em dívida pública. Ou seja, “nem por milagre os TACV poderão restabelecer-se e pagar a dívida aos bancos avalisada pelo Estado. É um total de 7 milhões e 450 mil contos”.
Conforme a antevisão da assembleia geral de Agosto deste ano, a companhia foi vendida ao “desbarato” e o Estado, de facto, nem sequer recebeu pela transmissão da titularidade das acções – denúncia, aliás, pública, do accionista Victor Fidalgo nas páginas do A NAÇÃO.
Escolha da Icelandair foi “no mínimo inadequada”
O documento considera, igualmente, que a escolha da Icelandair foi “no mínimo inadequada”.
Os resultados de gestão dos TACV, com a sua assistência técnica, em 2017 e 2018, “davam claros indícios que não haveria sustentabilidade na estratégia em curso, porque os islandeses não iriam trazer nenhum ganho de produtividade e eficiência”.
A mesma fonte revela que no acto de venda o Estado não acautelou a presença mínima na governança da empresa, entregando toda a Comissão Executiva à Loftleidir/Icelandair, assumindo, no entanto, o ônus de garantir os financiamentos da operação.
“Este descuido permitiu que o sócio maioritário pudesse ter a totalidade dos poderes, incluindo o de fazer negócios consigo próprio, em prejuízo dos TACV e de Cabo Verde”.
“Foi assim que no leasing dos aviões, a escolha recaía sempre sobre os aviões da Icelandair, com o inconveniente de serem descontinuados (tecnicamente antigos), sem o conforto actual exigido pelos passageiros, com um consumo exagerado de combustível e seguramente por um preço não competitivo”, revela.
31 de Dezembro de 2019 era o prazo contratualizado para o pagamento do remanescente de 48 mil contos relativos à venda de 51% da TACV, mas nunca houve nenhum sinal nesse sentido e, por isso, o Estado tinha todas as condições para reverter toda a venda ou pelo menos reverter 17% das ações da empresa, “visto que 96.893.714,78 CVE pagos na natura, correspondem a 34% das ações ao preço de venda acordo em Março de 2019”.
“Assim, automaticamente, a Loftleidir perderia a maioria e um reajuste necessário no Conselho de Administração e governança da empresa teria lugar. Ou seja, já nessa altura, o Governo deixou passar uma oportunidade de ouro de proteger adequadamente os interesses do Estado”, realça o documento.
TACV volta a levantar voo
A TACV vai retomar os voos internacionais na próxima segunda-feira, 27, com duas ligações entre Praia e Lisboa, às segundas e sextas-feiras.
Em comunicado enviado à imprensa, a transportadora informa que a retoma será, entretanto, gradual, “tendo em conta as incertezas e bloqueios em resultado da evolução da pandemia” e a “recuperação dos mercados emissores”.
A retoma será feita com um Boeing-757-200, em regime de wet leasing, o que significa que o proprietário do avião garante a tripulação, assim como o seguro do equipamento.
Isso significa, por um lado, que o avião da Icelandair retido no aeroporto do Sal continua ao sol e ao vento, sem dia de poder ser utilizado. E, por outro, o pessoal de cabine contratado continuará em terra a receber.
Diante de tais custos, A NAÇÃO sabe que os accionistas minoritários, com Victor Fidalgo à cabeça, defendem que a TACV “não pode continuar na fantasia” de ligar quatro continentes, com um hub no Sal e ter uma frota de 11 aviões, às expensas do Estado de Cabo Verde.
“Aliás, o recrutamento desenfreado de certo tipo de pessoal enquadrava-se nesta estratégia que visava usar Cabo Verde como escoadouro dos aviões inadequados e descontinuados da Icelandair, com o Estado a conceder avales sucessivos”, realça uma das nossas fontes.
Mas para que a retoma seja sustentável defendem reformas para o “renascimento” da TACV, assentes em quatro pilares: o pilar comercial; o de engenharia e operações; o financeiro; e o pilar de recursos humanos.
Defendem, igualmente, que a TACV não deve ser nem um “centro de emprego”, nem tão-pouco uma “FAIMO de Luxo”.
“Para regressar às operações, a empresa tem que ser redimensionada, de acordo com o mercado a ser explorado”.
A partir de segunda-feira, consoante os ventos, se saberá até que ponto esta nova descolagem da TACV é financeiramente sustentável ou não.
Para já, espera-se que a TAP e a SATA, a operarem na principal linha cabo-verdiana (Lisboa-Praia-Lisboa) venham a rever as suas tarifas, de modo a desafogar os cabo-verdianos que precisam de viajar para o exterior, via Lisboa. DA
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 747, de 23 de Dezembro de 2021