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Sociedade

Angolanos vivem o mesmo drama do esquecimento dos cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe

Foto: Lourenço da Silva

Os descendentes de antigos escravos angolanos estão como que resignados. Não vêem chegar a hora para as indemnizações pelos logos anos de trabalho passados na “tonga” em todas as fazendas coloniais no tempo em que São Tomé e Príncipe, então colónia portuguesa, era um importante produtor mundial de cacau e café. Um drama muito parecido ao dos cabo-verdianos, antigos contratados, nessas mesmas roças. Uma reportagem do Jornal de Angola, da autoria de Leonel Kassana, que A NAÇÃO república, com a devida vénia.

Depois de uma paragem, por dois dias, no Monte Café, no distrito de Mé Zóchi, ao encontro de testemunhos dos descendentes de antigos escravos angolanos, “comprados” em solo angolano e levados a São Tomé, rumámos para Água -Zé, uma outra plantação de cacau e café, no passado propriedade de colonos.

Aqui, como noutras roças, a força de trabalho era maioritariamente proveniente de Angola, depois de uma penosa travessia transatlântica em navios negreiros. Encontrámos velhos, muitos velhos, um cenário desolador, que querem reencontrar-se com a história dos seus antepassados, feitos escravos e serviçais por longos séculos.

Angolanos, que chegados na condição de escravos a São Tomé, passaram depois para “contratados”, um processo subtil, para lidar com o movimento crescente de pressão de então, liderado pelo Reino Unido, para a abolição da escravatura.

Mas esse é só um detalhe, à parte, tal como o são as condições de “acomodação” dos escravos em quintalões, para a “engorda”, como o largo do Baleizão ou defronte daquilo que é hoje o Palácio D. Ana Joaquina (Luanda), para serem, depois, uma “mercadoria”, suficientemente atractiva.

Água-Zé estende-se por cerca de 12 quilómetros de costa e, no passado, foi tida como uma das roças de maior dimensão no país, ocupando uma área de 80 quilómetros quadrados, dos quais pelo menos 4.500 hectares para as plantações de cacau e café. Ao atravessá-la, tem a estrada que liga a capital do arquipélago de São Tomé e Príncipe à vila de Angolares, no extremo Sul, sede do distrito de Caué.

E Angolares deve ser assinalada, nesta incursão que o Jornal de Angola faz às roças, para onde muita gente foi levada para trabalhar nas plantações do cacau e café, em ritmos extremamente exigentes e sujeitos à violência de todo o tipo, se não cumprissem.

Os angolares estiveram no centro de revoltas, com grande impacto, de escravos e terá sido, também aí, que um navio com “mercadoria humana”, terá naufragado.

Com uma estrutura arquitectónica quase perfeita, Água-Zé  possuía condições que mais se assemelhavam ao que se poderia chamar de “roça-cidade”. As ruas estão bem delineadas, as casas resistem ao tempo e no tempo. Também mantêm-se incólumes, os antigos armazéns, carpintarias, serralharias e outras infra-estrururas de apoio à roça. Há, igualmente, outros edifícios históricos, como a antiga casa do administrador e os dois hospitais.

Antigas sanzalas que albergavam famílias de contratados ainda são visíveis ao longo de toda a encosta e estão “densamente” povoados – as aspas vêm a propósito, já que o conceito aqui neste arquipélago deve ser relativizado, longe de alguns dos mais emblemáticos de Luanda.

Essa é uma descrição que se impõe, numa viagem à história sobre os contratados, na roça de Água-Zé. Aqui, foi o calvário de sucessivas gerações de angolanos, que um dia foram forçados a deixar a sua terra, para “capinar, plantar e colher cacau e café nas roças”, como recordou Joaquim Riona, 76 anos e descendente de antigos escravos, com ligações à região central de Angola.

Aposta no registo de descendentes

“Os angolanos contribuíram muito para que Água-Zé se tornasse numa das maiores roças de cacau e café no Sul de São Tomé e Príncipe”, sublinha Joaquim Riona, visivelmente triste com o cenário de (quase) abandono, a que estão voltados os descendentes de escravos.

Muito respeitado entre a comunidade de Água-Zé, Joaquim Reoua lidera uma comissão que trabalha no resenceamento de todos os descendentes de Angola para que, junto da representação diplomática em São Tomé e Príncipe, possam receber algum tipo de apoio, a que julgam ter direito.

No essencial, pretendem manter uma ligação mais estreita com a embaixada, obter alguma documentação que os identifique como angolanos, ajuda material ou alimentar, já que são maioritariamente muito velhos e numa situação de extrema pobreza.

Para  piorar todo um cenário de dificuldades, a pensão de reforma – muito poucos recebem –  pelo trabalho nas roças é “tuta e meia”. São 600 dobras, pouco mais de 25 dólares. “Muito pouco mesmo para quem passou uma vida inteira a trabalhar nas roças”, refere Joaquim Reoua.

Um eventual regresso a Angola parece estar fora de cogitações para a maioria dos descendentes. Têm poucas referências. Tudo o que guardam são histórias dessa epopeia (triste), passada de geração para geração pelos seus ancestrais.

No complexo de edifícios de Água-Zé, vimos muitos velhos. Uns acamados e outros em cadeiras de rodas. Há, também, uns tantos que ficam próximo de locais de venda de vinho de palma, a versão local do maruvu, à espera de uma qualquer mão caridosa.

Homens ainda em idade laboral e jovens se concentram nesses locais. Estão com olhos avermelhados, empapuçados, apresentam uma cor algo “estranha”, barrigas inflamadas, tanta é a “wivua”.

Os descendentes de antigos escravos angolanos estão como que resignados. Não vêem a hora chegar, para que Portugal os indemnize, pelos anos de trabalho passados na “tonga” em todas as roças do território de São Tomé. Indemnizações individuais ou a jeito de assistência a projectos concretos, directamente virados às comunidades de descendentes de antigos escravos angolanos, eis a questão.

Pelas ruelas de Água-Zé estão montados pequenos negócios precários, como de bolachas, rebuçados, sambapitos e quejandos, um cenário que se repete ao longo das povoações, próximo da estrada que liga a cidade de São Tomé a Angolares.

Joaquim Reoua já viu muita gente partir mais cedo para o além, por falta de assistência. E é isso que ele e outros descendentes de angolanos temem.

A questão de (eventuais) indemnizações é recorrente em todas as roças, por onde o Jornal de Angola passou. “Estamos completamente abandonados, nossos bisavós, e pais chegaram aqui como escravos e trabalharam como contratados. Nós continuamos aqui, mas hoje não temos nada”, palavras de Joaquim Rioua.

Sempre em Água-Zé. Nosso principal cicerone, Joaquim Reoua mostrou-nos  todos os labirintos do vasto complexo de habitações. Serviu, como cozinheiro, no Palácio Presidencial, desde o primeiro governo de Manuel Pinto da Costa. Hoje está reformado e recebe uma pensão de 600 dobras.

“Viajei com o Presidente Pinto da Costa, para muitas partes do mundo”, gaba-se, contando alguns episódios, como aquele em que o “Chefe” detectou um cabelo num prato” (risos). Ficou muito chateado, conta.

Muito articulado, Joaquim Rioua conhece todos os moradores do complexo. Uma autoridade. “Este homem é angolano, seus avós vieram do Bié, aquela senhora aí tem origem no Huambo, aquele aí sentado na cadeira de rodas é do Cuanza -Sul. Todos eles nasceram aqui”, foi-nos indicando, à medida que íamos caminhando pelas ruas calçadas de pedra. “Um trabalho muito duro, feito pelos próprios escravos”, confessa.

Em Água-Zé, não dançamos tafua, como no Monte Café, mas os angolanos conservam a habitual jovialidade muangolê. À chamada de Joaquim Reoua, alguns exibiram mesmo os seus documentos. Falaram da brutalidade nas roças, das cadeias, para os mais revoltosos, do chicote, palmatórias, cacetes e outros maus tratos a que foram sujeitos os seus descendentes.

Escasseia trabalho nas dependências

(…)  Já não há trabalho nas roças de Água-Zé, que foram transformadas em cooperativas, mas absorvem pouca gente. No passado, essa unidade agrícola chegou a ter, pelo menos, 15 dependências: Santo António, Quimpó, Francisco Mamtero, Ponte das Palmeiras, Mato Cana, Anselmo de Andrade, Olivares Marin, Bernardo Faro, Caludino Faro, Alto Douro, Castelo, Cantagalo, Mendes da Silva e Monte Belo.

Hoje, não há estatísticas fiáveis sobre o número de contratados que trabalharam nessas roças, nem a quantidade de cacau e café aí produzidos e que catapultaram, a bem dizer, Água-Zé, para os píncaros da fama, à escala planetária, justamente por ser uma das unidades agrícolas de maior relevância do arquipélago de São Tomé e Príncipe, como se diz mais acima nesta peça.

Mantidos na completa ignorância, os contratados estavam – já se vê – alheios aos conflitos que se desenrolavam pela posse das melhores roças na Ilha. Era assunto de patrões

Do que sabem é que aí estiveram, na “tonga”, maioritariamente angolanos. Muitos ficavam por pouco tempo, pois seriam, depois, “reexportados” para outros continentes. Estando em trânsito em São Tomé e Príncipe, serviram em diferentes propriedades agrícolas.

Joaquim Reoua exibiu a lista de parte dos descendentes de antigos escravos, já registados. Homens, contabilizamos 21. Destes, referência para João Manuel, 63 anos, filho de pai angolano e mãe com origem são-tomense. É neto de Quessongo Segundo e de Anga Nhunca, ambos angolanos, nascidos no Chinguar, distrito (como prefere chamar) do  Huambo.

Casado com uma angolana a residir em Portugal, João Manuel trabalhou por 12 anos como despachante oficial no Porto de Luanda e, com Joaquim Reoua, é um assumido dinamizador do movimento de aproximação dos descendentes à embaixada, com o registo dos mesmos.

“Já fiz vários trabalhos para a embaixada, sobre o recenseamento de filhos de angolanos em Água-Zé”, afirma, acrescentando: “vamos continuar com esse trabalho, para que possamos ter um melhor apoio das autoridades angolanas”.

O seu colega, Joaquim Reoua, completa: “Toda a gente aqui em Água-Zé está interessada em ser registada e isso é muito bom, para os descendentes, pois se todas as roças o fizerem, poderemos ter melhores apoios”.

Ele exibiu uma lista de, pelo menos quinze mulheres, todas descendentes de antigos escravos apanhados em diversas partes de Angola. “Temos mais gente por registar, porque os angolanos estavam a trabalhar em todas as dependências de de Água- Zé”, adianta.

Um trabalho que faz com bastante entusiasmo. No dia em que estivemos na Água-Zé, Joaquim Reoua conversou por telefone como conselheiro da embaixada de Angola em São Tomé e Príncipe. Na segunda-feira, seria recebido, no que parece indicar “bons ventos” para uma melhor aproximação. Algo que as comunidades tanto desejam.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 746, de 16 de Dezembro de 2021

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