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Economia

Ruptura de combustível da aviação: Um risco económico e um crime para o turismo

O atraso de um mês na chegada do barco abastecedor do combustível para a aviação civil (JET A1) veio pôr a nu a fragilidade da gestão das reservas desse produto, especialmente na ilha do Sal, onde a demanda é grande. Um avião da TUI esteve “preso” na placa, esta semana, por falta de abastecimento. A situação só deverá ser regularizada a partir do dia 23 deste mês.

Cabo Verde está a viver uma crise de combustível para a aviação, devido a uma ruptura de stock, naquele que é o aeroporto internacional mais movimentado do país, o Amílcar Cabral, na ilha do Sal.

Informações apuradas pelo A NAÇÃO, junto da Vivo Energy e Enacol, indicam que ambas estão a fazer uma gestão apertada do stock que ainda têm disponível, garantindo ter fuel para cumprir os compromissos apenas com os clientes contratualizados.

Gestão intercalada das infraestruturas
Estas duas petrolíferas fazem a gestão intercalada das infraestruturas de abastecimento da aviação, que são concessionadas, estando, neste momento, a gestão a cargo da Vivo Energy.

Segundo fontes do nosso semanário, “há tempos em que essa gestão é problemática e cheia de picardias”, entre as duas, acabando por não abonar a favor do sector, sendo que, nisso, cabe à Agência de Regulação Económica (ARME) garantir que os stocks de segurança estão salvaguardados.

Porém, conforme apurado também pelo A NAÇÃO, esta ruptura de combustível para a aviação civil já está a levar ao desvio de aeronaves para Dakar, pelo que nenhum avião da General/Business Aviation aterra no Sal, pois, por falta de fuel.

A Enacol e a Vivo Energy só estão neste momento a abastecer as companhias com quem têm contratos. Uma situação que, para as fontes do A NAÇÃO, não se coaduna com um país que quer ser competitivo com Dakar.
Vivo Energy descarta responsabilidades

Entretanto, a Vivo Energy veio a público informar que adoptou uma série de medidas de “contingência” para fazer uma gestão “criteriosa” do stock de JET A1, a fim de evitar uma ruptura de stock, devido ao atraso da chegada do navio que fornece esse combustível, que só deverá acontecer a partir do dia 23 deste mês.

“Este atraso, completamente alheio à nossa vontade e controlo operacional, teve sérias implicações sobre os nossos níveis de stock, afetando a nossa normal capacidade de abastecimento às companhias aéreas em trânsito pelo país”, justifica.

Gestão criteriosa de stock
Perante este cenário, A NAÇÃO tentou inclusive saber qual é, neste momento, o valor do stock para o JET A1, ainda que sem sucesso, recebendo apenas a resposta de que a companhia “dispõe de produto suficiente, para servir numa base contingencial, todos os seus clientes com operações regulares programadas”.

Questionada, enquanto actual gestora da infraestrutura de combustível de aviação, o porquê é que esta situação de ruptura não foi prevista com mais antecedência, a fim de poderem fazer uma melhor gestão e evitar chegar à actual situação, a Vivo Energy respondeu:

“A partir do momento que fomos informados do atraso do navio, envidamos todos os esforços, incluindo, mas não limitados a contactos com outros traders, que não o fornecedor actual do país, no sentido de mitigar os efeitos nefasto daí advenientes”.

Aquela petrolífera diz ainda que informou quer o regulador (ARME), quer a AAC e ASA da situação, “em tempo útil”, contrariando o que foi dito por uma fonte do A NAÇÃO, em como as referidas instituições foram informadas da ruptura de stock apenas um dia antes da situação que ocorreu com o avião da TUI.

Enacol admite constrangimentos no abastecimento
Contactada também, a Enacol mostrou-se igualmente ponderada nas reacções. Instada a confirmar a situação que ocorreu na segunda-feira passada,13, no Sal, com um avião da TUI (cliente da Enacol), com destino a Amesterdão, que não levantou voo devido à falta de abastecimento, e que a empresa terá sido “boicotada” pela Vivo Energy, a mesma não confirma, nem desmente.

“Neste momento, o foco da Enacol é a solução da actual situação, o mais rápida e eficazmente possível. Após isso, logo faremos análise mais cuidada de todo o processo e das respetivas responsabilidades de cada entidade”, avançou Luís Flores, director geral Enacol.

O nosso interlocutor admitiu, contudo, que “existiram de facto alguns constrangimentos no abastecimento de JET no aeroporto da ilha do Sal”, justificando que tal se deveu “ao incumprimento de prazos do fornecedor internacional contratado para fornecer combustível de aviação ao país e que deveria já ter acontecido”.

A Enacol argumenta que, “em conjunto com o outro operador”, e “apesar da falta generalizada de combustível de aviação no mercado global, em particular na zona Atlântica”, já conseguiu “assegurar uma solução de abastecimento alternativa e que deverá normalizar a situação previsivelmente entre os próximos dias 21 e 23”.

Questionada também sobre os níveis de stock disponíveis do JET A1, a empresa indica que tem stock disponível “para assegurar abastecimentos a todos os seus clientes regulares, para além dessa previsão”, embora “aconselhe a prudência, que face à situação, se faça uma gestão mais rigorosa do que o habitual, e até que todos os stocks estejam regularizados a níveis mais elevados”.

Questionada ainda sobre a gestão problemática e as picardias, entre as duas empresas, que acabam por prejudicar o sector, a Enacol responde:

“As infraestruturas de aviação são na sua maioria em regime de copropriedade com uma gestão alternada entre os operadores, e é responsabilidade da empresa que tiver atualmente essa operação assegurar o melhor serviço, da forma mais isenta e profissional porque acima de tudo é o nome do país e do seu turismo que está em causa. É dessa forma que atuamos em todas as operações que estão ao nosso cargo”.

Gestão complexa
Instada ainda sobre se o regulador está a desempenhar bem o seu papel, nesta questão da gestão dos stocks, a Enacol deixa a entender que sim.

“A gestão de armazenagem de combustível de aviação é muito complexa por obedecer a uma série de regras e obrigações de segurança internacionais, agravada pelo cenário pandémico, pelas nossas características insulares e pelo atual momento de falta de produto no mercado.

Reconhecemos, por isso, a dificuldade da tarefa inerente ao órgão regulador. Temos sentido por parte da entidade reguladora, e de forma regular, uma presença firme, mas construtiva na procura de soluções para o setor e, por isso, a apreciação que fazemos da ARME é positiva.

Relativamente à questão de se ter precavido esta ruptura com maior antecedência, agindo por antecipação, a Enacol diz que esta “é uma situação dinâmica que está a ser igualmente acompanhada pelas autoridades e tutela”, e que o mais importante é reafirmar que têm “disponibilidade de produto para abastecimento aos seus clientes, até à reposição da normalidade da situação”.

ARME descarta responsabilidades
Contatada, pela nossa reportagem, a ARME, Agência de Regulação Económica, descarta qualquer responsabilidade na matéria.

“Relativamente ao JET A1, combustível utilizado na aviação civil, informamos que, nos termos da lei, este não é um produto regulado pela ARME. Aliás, se observar bem, da Tabela de Novos Preços Máximos dos Combustíveis que enviamos mensalmente, à comunicação social, não consta este tipo de combustível”, começam por dizer.

Contudo, prosseguem nos esclarecimentos, “existem aspectos regulatórios que têm que ver com o Stock de Segurança desse produto que, de resto, deve ser garantido pelas petrolíferas”. Porém, dizem, “este aspeto faz parte da regulação técnica do setor, que não está adstrito à ARME, mas sim com a Direção Nacional de Indústrias, Comércio e Energia”.

De notar que, apesar das várias tentativas do A NAÇÃO em ouvir o director geral da Energia, não foi possível até ao fecho desta edição, podendo o assunto ser retomado em próximas edições.

O caso que pôs a nu a crise do JET A1

Um avião da TUI, com destino a Amesterdão, ficou retido na placa do Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, no Sal, na passada segunda-feira,13, por falta de abastecimento da aeronave.

Ao que tudo indicava, em causa esteve uma alegada “guerra” entre a Vivo Energy e a Enacol, algo que foi refutado esta quarta-feira,15, em nota de esclarecimento pela Vivo Energy, como veremos mais abaixo.

A aeronave, segundo as nossas fontes, acabou por pernoitar na placa, porque, alegadamente, a Vivo Energy, não teria permitido à Enacol fornecer mais 600 kg de combustível.

Conforme apuramos, já mais tarde, depois que decidiram abastecer a aeronave, o comandante do avião, aborrecido com todos os constrangimentos provocados pela situação, terá recusado levantar voo e mandou toda a gente para o hotel. Sendo que o avião partiu só na manhã seguinte.

Contatada, na altura, a Vivo Energy, para mais esclarecimentos, sobre a eventual recusa em essa empresa fornecer mais 600 kilos à Enacol, para abastecimento da referida aeronave, a responsável de Comunicação, Jassica Tavares disse apenas que “a TUI não é nossa cliente e não temos nada a ver com isso”.

Questionada, novamente, se a Vivo Energy se recusou a dar combustível à Enacol, a mesma reiterou que “não posso dar informações, porque não tenho essa informação”.

Entretanto, já esta quarta-feira,15, dia de fecho de edição deste número do A NAÇÃO, a Vivo Energy imitiu uma nota de esclarecimento, onde reafirma, mais uma vez que a companhia de aviação “TUI” é cliente da Enacol e não da Vivo Energy, sendo que a “responsabilidade pelo abastecimento das respetivas aeronaves cabe a essa empresa e não à Vivo Energy”.

A empresa diz ainda, “como é evidente”, que “não pode responder por eventuais constrangimentos ao abastecimento a uma aeronave que não faz parte da sua carteira de clientes, na medida em que se limita a responder às solicitações da outra operadora, a ENACOL, o que tem vindo a fazer em função dessas solicitações, com a devida programação, sem qualquer tipo de restrição”.

Nesse contexto, argumenta que “quaisquer esclarecimentos sobre as razões que terão ditado o alegado constrangimento no abastecimento dessa aeronave da companhia “TUI” em especial, deverão ser obtidos junto da operadora responsável por esse abastecimento, a Enacol, nenhuma responsabilidade havendo a assacar à Vivo Energy”.

Victor Fidalgo: “Erro que não pode ficar impune”

O economista e especialista em turismo Victor Fidalgo, maior accionista privado dos TACV, mostra-se perplexo devido ao facto de um avião ter ficado em terra, no aeroporto do Sal, por falta de abastecimento. Essa fonte diz que, do ponto de vista profissional, e de quem trabalha no sector, “é uma vergonha”, que a “ruptura, ou risco de ruptura de abastecimento”, tenha acontecido.

“Isso prejudica grandemente a imagem do país, no momento em que estamos a correr atrás dos turistas, para que prefiram vir para Cabo Verde, devido aos bons resultados que temos no quadro da luta contra a pandemia e, agora parece essa situação, de problema de abastecimento do avião”, começa por lamentar.

Como adverte, no aeroporto do Sal, “não pode falhar combustível e temos de ter combustível para X tempo, em que mesmo havendo disrupção no circuito, para termos sempre disponível combustível”.

Como lembra, “temos duas concessionárias em Cabo Verde, a Vivo e a Enacol, que têm compromissos e obrigações fortes que devem ser geridas e controladas pela Agência de Regulação Económica e Multissectorial, se a Agência não faz isso, não tem razão de existir”.

Isto, especialmente, quando “andamos a falar” da criação de uma Plataforma Aérea. “Que transportadora aérea vai optar entre Dakar e Cabo Verde, fazer a opção por Cabo Verde, apesar das muitas vantagens que tenhamos, se há risco de combustíveis?”, questiona. “Aqui falhou-se grandemente e a culpa não é necessariamente, ou obrigatoriamente das concessionárias, mas de quem controla a gestão das concessões”.

“Penso que deve ser a Agência de Regulação Económica, a principal responsável, que deve responder, porque é um caso grave. Se fosse até noutro país, o Ministério Público já estaria aí nas portas das agências para saber como é que isso aconteceu e, claro, também a Direcção Geral de Energia, enquanto Estado, seguir de perto o processo”.

Cobrar responsabilidades
Victor Fidalgo, lamenta, que a classe turística não se tenha manifestado, ainda. “Pena que não temos uma classe empresarial bem organizada, porque nos outros países os hoteleiros, quer directamente, quer através da Câmara de Turismo (que não temos) já estariam a exigir responsabilidades ao Governo, porque, no fundo quem manda no país é o Governo, independentemente das instituições porque as instituições não caíram do céu, e nem se autoproclamaram como instituições foram postas lá através de certos mecanismos, portanto o Governo também tem a sua responsabilidade máxima, senão agir”.

O mesmo defende que tem de haver mecanismos para “cobrar” responsabilidades a quem de direito, sendo certo que há também a questão estratégica de gestão de estoque.

“Porque somos um país arquipelágico, não estamos ligados a grandes piplines de combustíveis, é por barco, há produtos que são importados em nome dos dois pela Vivo Energy (como acontece com o Jet A1), há outros produtos que são importados em nome dos dois pela Enacol e é assim que tem funcionado. Portanto, falhou agora, mas é desleixo que decorre da falta de competência e de exercício de poder pela reguladora, que é responsável pela gestão da concessão. Senão que desapareça a reguladora, e o Ministério da Indústria e Energia, através da Direcção de Energia que vá gerir aquilo. Não podemos ter um regulador a ganhar rios de dinheiro e fazer coisas erradas, a não fazer o seu dever”, defende.

Na óptica deste operador, toda esta situação não só é uma “vergonha”, como “um crime” para a retoma turística em curso, mas também para o futuro do sector porque “no mundo de hoje, tudo se regista”.

“Quando se analisa, por exemplo, quantas vezes houve risco de abastecimento nas canárias? Quantas vezes houve risco de abastecimento em Dakar? Quantas vezes houve risco de abastecimento em Cabo Verde? É assim que as pessoas fazem as suas opções, e não é só no turismo”, adverte.

“Repare que nós, também no quadro do aeroporto do Sal, andamos a lutar para que certas companhias usem esse aeroporto para fazer a troca de tripulações dos barcos de pesca, ou também de aviões que vêm da América do Sul, que possam fazer escala no Sal e não em Dakar”, recorda, para avançar que existe um conjunto de questões que levam a questionar “onde está a perspetiva de plataforma aérea, se nem sequer conseguimos ter combustível?”.

Victor Fidalgo analisa, ainda, que “não vale a pena estar a discutir e a perguntar à Vivo, e à Enacol”, porque, como diz, “é incompetência na gestão da concessão, por quem de direito”, finaliza, alertando que “isto não pode acontecer no país”. 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 746, de 16 de Dezembro de 2021

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