Por: Mário Paixão
A época festiva do ano, segundo reportagem no jornal “A Semana, de 5/12/2021”, traz de novo à ribalta o problema recorrente entre oferta e procura e problemas operacionais nos transportes marítimos e aéreos.
As reclamações realçam que “a nível da BestFly Cabo Verde/TICV está difícil conseguir passagens – de Praia e para outras ilhas estão praticamente vendidas até depois do Natal. Muitos cidadãos não conseguirão passar as festas com a família” (sic).
O Ministro do Turismo e Transportes considera que “o único avião da BestFly CV/TICV a operar está a dar vazão à demanda entre as ilhas”, apesar do acrescento contraditório, logo a seguir, que “nós estamos a trabalhar com a TICV para que tenhamos rapidamente a segunda aeronave…” e que “às vezes nós colocamos muito foco no número de aviões que temos aqui a voar, mas tem que também olhar se de facto a nossa capacidade instalada está ajustada àquilo que é a procura”.
Isto é, o governo sente que há problemas e pressões (com picos em determinadas alturas do ano, em que ficam descarnados os problemas do sector), mas diz que vai resolver o problema, pressionando os concessionários dos serviços de transportes. Pelo meio, sente (embora não identificando a raiz do problema, nem explicitando isso de viva voz) que o mercado pode descambar para o excesso de oferta.
Infelizmente, ele não reconhece que onde há desorganização há problemas, seja de défice, seja de excesso. No mínimo, pode-se dizer que o governo está dando preocupantes sinais de desorientação e que se encontra entalado entre protestos dos utentes dos transportes e contra-argumentações dos concessionários, num equilíbrio impossível.
Vivemos hoje uma situação nova em Cabo Verde, em que o Governo decidiu concessionar e transferir para privados os serviços de transportes marítimos e aéreos (domésticos e internacionais).
No sector aéreo internacional, a privatização falhou de forma triste e vergonhosa. A renacionalização da CVA/TACV mostra o quanto processos negligentes e intransparentes causam impactos internos e externos de consequências indesejáveis, algumas ainda por conhecer.
A saída da Binter do mercado cabo-verdiano trouxe à tona processos mal equacionados e resolvidos, fruto da precipitação e do amadorismo. Tendo Cabo Verde um mercado exíguo, diferenciado, pulverizado entre ilhas e diáspora, localizado na periferia da África e da Europa (com papel ainda marginal no negócio das viagens) e com fraco poder de compra, tem sido o Estado a assumir o ónus das imperfeições desse mercado atípico, onde teorias académicas abundam mas tardam em encontrar sustentação. Reconheço que não é fácil, mas convenhamos que o normal é melhorar e não retroceder. Sobre isso, nenhuma desculpa devia ser considerada legítima.
Teremos talvez de analisar o ponto de partida (ou o pecado original), avaliar com honestidade o que de bom e menos bom se fez e tomar decisões que a actual realidade impõe. Encher a boca de 2, 4 ou 11 Boeings para Hubs mirabolantes ou prometer mais ATR’s para agradar a clientela política só agravará o problema.
Se o Estado quer que seja o privado a prestar serviços neste mercado (endógeno e exógeno, ambos exigentes) terá de remeter-se ao papel de regulador e não de propagandista ou fazedor de opinião no espaço público. E para ser bom regulador e bom estratega de políticas públicas, terá de ser transparente, fazer estudos de mercado, definir cadernos de encargo e realizar concursos públicos.
Privatizar, descurando a regulação, sempre foi caminho andado para o fracasso e o caos. Volto a remeter-me ao pecado original para dizer, por exemplo, que regras omissas em torno de meios aéreos e capacidade de oferta deixam a obrigação de serviço público (OSP) praticamente nas mãos do concessionário, advindo daí compensações inadmissíveis pelo Estado. Para além de lesivo dos interesses do país, Cabo Verde nunca se libertará de problemas básicos de conexão, acesso, preços, pontualidade e previsibilidade nos transportes, para não falar de sinais de descrença e desconfiança que emite para fora.
O Ministro tem de facto um dilema entre as mãos que nem devia ser ele a propagar ou a resolver: que meios e capacidade para rotas entre as ilhas? Se ele aceitar que seja o concessionário a impor um meio unificado (pe ATR 72-600, de 70 assentos) para todas as rotas domésticas e regionais, é evidente que haverá um desacerto continuado entre oferta e procura.
Mais, será o governo (ou o contribuinte) a pagar os excessos de capacidade que o concessionário impôs com a alocação de meios nesta ou naquela rota. Quem pagará o excesso de capacidade na rota Praia-Maio ou Sal-S.Nicolau? Ou, invertendo a questão, por que razão ficarão os utentes dessas rotas prejudicados com a escolha de um avião com excesso de capacidade? E em que cartilha está escrito que no mercado interno cabo-verdiano ou entra quem tem ATR ou não entra ninguém?
Tal como estão as coisas parece que o risco continua todo nas mãos do Estado e que a privatização é mera figura decorativa. Se for o governo a impor um caderno de encargos e a requerer propostas racionais que respeitem a política publica pretendida, então, sim, haverá sucesso e benefício para todos: governantes, concessionários e utentes.
Clarividência, rigor e transparência, precisam-se.
*Artigo repescado do FaceBook do autor
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 745, de 9 de Dezembro de 2021