Além da covid-19, Cabo Verde tem estado a braços com surtos de sarna e conjuntivite, a que se somam pragas de percevejo e outros parasitas.
Esse “ressurgimento”, de doenças tidas como “coisas do passado”, preocupa cidadãos e agentes de saúde pública. Além de outras medidas, estes apelam a maiores cuidados com a higiene pessoal e doméstica.
Cabo Verde está a registar surtos de doenças que, aos olhos dos mais atentos, já tinham sido “erradicadas”. São os casos de conjuntivite e sarna, também conhecida por coceirinha, nome popular para a escabiose, uma endemia
cutânea muito comum outrora nestas ilhas. Além da falta de higiene pessoal, a mesma está relacionada com carência de vitaminas, isto é, má ou deficiente alimentação, o que acaba por se manifestar através de problemas de pele, na cabeça, no tronco e noutras partes do corpo.
É o caso da pelagra, conhecida doença de pele, muito as sociada à carência alimentar, nomeadamente deficiência de vitamina B3, vulgo niacina, no organismo. Na sua ausência, esta pode provocar alterações na pele, diarreia e alterações neurológicas, como dor de cabeça, confusão mental e perda de memória.
Percevejo ou “dabiu”
A coceirinha e a conjuntivite, além da praga de percevejos, parecem ter voltado à tona, ainda por cima, num contexto de pandemia provocada pela covid-19.
Isto tem gerado, como seria de esperar, preocupações, nomeadamente, dos agentes de saúde pública, mas também de particulares.
O “regresso” ou “aumento” de casos de percevejos, coceirinha e conjuntivite foi “novidade” para uns e “más lembranças” para outros. “Eu nunca tinha ouvido falar de dabiu (percevejo) até que estive na presença de um”, afirma Cristiano, jovem estudante de 22 anos, residente numa república no Palmarejo, Praia, juntamente com outros colegas oriundos do interior da ilha de Santiago.
“Acordava todas as manhãs com marcas de mordidas no corpo e achava que eram picadas de mosquitos. Estranho é que eu procurava os mosquitos no quarto e não os encontrava. Até que um dia, quando comentei o
assunto com os colegas da casa, me alertaram que poderia tratar-se de percevejos”, acrescenta.
Avisado, Cristiano disse que procurou informar-se sobre os ditos parasitas e dos perigos que representam para a saúde humana. “Eles são nojentos, de causar arrepios, difíceis de combater quando se alastram. Limpámos a casa toda e, mesmo assim, permaneciam”, apontou o jovem, reconhecendo que “a falta de higiene” era uma das causas de percevejo na república onde residia já que “os outros rapazes pouco se importavam com a limpeza”.
Na altura, em Agosto, o alerta de percevejo foi dado pela Delegacia de Saúde da Praia que se mostrou preocupada
com a situação. “Temos estado a receber muitas queixas, aqui, na Delegacia, da existência de mosquitos em lares, mas quando vamos para atacar o insecto deparamos com percevejos e isso nos tem chamado atenção”,
conta a delegada Ulardina Furtado.
Assim como Cristiano, muitos outros jovens da sua idade não conheciam o percevejo, antes deste surto registado na Praia. Há anos que este insecto relacionado com a falta de condições de higiene e de habitabilidade deixara de ser “preocupação maior” na sociedade cabo-verdiana, junto com outros parasitas, como pulguinha, pulga, piolho, outrora muito comuns.
A vida rústica, no meio de animais, a par de pouca higiene doméstica e individual, habitações com iluminação solar e circulação de ar deficientes, propiciava esse tipo de endemia. No caso do percevejo, este insecto gosta particularmente de ambientes pouco salubres, instala-se entre os lençóis e, à noite, actua sobre o corpo humano, sugando o sangue de que precisa para viver e se desenvolver.
Sendo um parasita, como a pulga, o piolho e o carrapato, se não se tomar cuidado, os danos causados pelo percevejo podem não ser poucos. Nos animais de criação, o carrapato, também conhecido por carraça, alimenta-se do sangue das vítimas, tornando-as doentes e fracas.
Conjuntivite
Além do percevejo, o surto de conjuntivite, tem sido também outra novidade para alguns e o reacender de velhas lembranças, para outros. O uso de óculos escuros que “de repente” virou moda, independentemente da
hora ou do lugar, disparou.
“Há muito que não ouvia falar de conjuntivite. Da última vez, eu estava ainda no liceu, e lembro-me que lhe puseram nome de batida”, diz Maria Tavares sobre a doença que anos anteriores foi batizada, pelo povo, por
“lambada”, “dirapente”, “reggae”, entre outros nomes que a relacionavam com alguma passagem ou “kontu nobu” da época.
“Reggae”, por exemplo, surgiu no início dos anos 1980, apogeu de Bob Marley, e lambada, anos mais tarde, na década de 1990.
Esta nossa entrevistada, que terminou os estudos liceais em Santa Catarina há mais de 15 anos, diz que não contraiu “batida”, na altura, e que evitou da mesma forma o surto mais recente.
Em Setembro, a presidente do Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP), Maria da Luz Lima, confirmou o surto de conjuntivite na Praia. A doença muito contagiosa, que ataca a parte mais superficial do olho, a conjuntiva,
espalhou-se para outras ilhas e concelhos, além da capital.
Depois do alerta, a população procurou as farmácias à busca de medicamentos, com destaque para o soro fisiológico primário, para combater a doença que tem como sintomas intenso desconforto, sensação de areia nos olhos, secreção, vermelhidão, lacrimejamento, fotofobia, inchaço e coceira nas pálpebras.
Escabiose ou “coceirinha”
Antes dos dois surtos, atrás mencionados, Cabo Verde registou ainda um aumento de casos de escabiose, mais conhecido entre os cabo-verdianos por “coceirinha”. Este foi um dos primeiros surtos registados, tendo como referência a era pandémica da covid-19 que nos assombra desde 2020.
Neste caso o alerta foi dado pela dermatologista Raquel Fernandes que chamou a atenção para o aumento de ocorrências desta doença de pele. Conforme explicou, a “coceirinha” é de transmissão parasitária e infecto-contagiosa, que pode afectar gente de todas as classes sociais, com maior predominância nos mais pobres, e é transmitida por contacto “pele a pele”, roupas e toalhas, entre outros meios.
Nas crianças, a sarna chega a ser dramática, dada a tendência para o afectado se coçar o tempo todo, com risco de ver o corpo em carne viva. Uma vez mais, a questão da higiene é fundamental, como alerta a mesma especialista:
“Há que chamar a atenção das escolas, fazer um trabalho muito grande no terreno de saúde escolar e educar a população no sentido de eliminar os ácaros ou bactérias, como também cortar a transmissão da doença”,
apelando ao engajamento de todos para a eliminação dos ácaros e combater a sua transmissão.
Tendo em conta que esta doença, entre outras antes mencionadas, estão muitas vezes relacionadas com o clima e as estações do ano, Raquel Fernandes alerta: “O clima quente e húmido de Cabo Verde, aglomeração de pessoas e a questão do saneamento são aspectos e questões propícios para doenças como micose, infecções bacterianas e escabiose que são praticamente predominantes no país”.
Ressurgimento ou aumento de casos?
Esta reportagem não passou “pente fino” sobre todos os registos de doenças que o país registou nos últimos tempos.
Apenas tomou como referência aquelas que “voltaram” neste período pandémico e que mereceram uma “atenção especial” na comunicação social, o caso de percevejo, conjuntivite e coceirinha.
Independentemente disso, é necessário entender porque é que estas doenças “ressurgiram” ao fim de vários anos e se estão ou não relacionadas com a covid-19. Em se tratando de pelagra, esta normalmente é vista como um alarme para situações de fome crónica, ou de subnutrição. Num país com longo historial de fomes, a confirmar-se o retorno dessa endemia, urge accionar os mecanismos de defesa da população em situação de carência nutricional.
Enquanto a sociedade acredita que estas doenças já tinham sido erradicadas no passado, daí a surpresa do seu “regresso”, o director de Serviço de Vigilância e Resposta do Ministério da Saúde, Domingos Teixeira, esclarece que, afinal, a coceirinha, os percevejos, entre outros males da mesma natureza, não podem nunca ser considerados erradicados.
“Percevejo não voltou em alta. Os mais jovens podem não o conhecer por estarem num meio onde a sua presença é menos perceptivel. Com a melhoria das condições de vida e de habitabilidade, a sua diminuição foi drástica, mas ela nunca acabou. Quando muito, são situações que foram sendo melhoradas com o uso de produtos de higiene geral e pessoal.
As ocorrências, de um ou outro caso, sempre há nos Centros de Saúde, por exemplo. No entanto, por serem poucos os casos, são considerados irrelevantes”, afirma o interlocutor do A NAÇÃO.
Na mesma linha, Teixeira avançou que no caso da conjuntivite, esta “é uma doença comum nas épocas quentes e
em todos os países há factores do seu surgimento”, pelo que “Cabo Verde não está fora deste círculo”.
“A conjuntivite pode surgir com mais ou menos intensidade, mas não é uma doença que possa ser considerada erradicada. Pode até passar despercebida um ano ou outro, não só pela quantidade, mas pela atenção que é dada pela comunicação social. Este ano, tivemo-la com uma dimensão maior. Começou na ilha de Santiago e alastrou-se a outras ilhas. Em Santiago está praticamente ‘sem’ casos neste momento, mas nas outras ilhas do Barlavento, ainda há registo de casos. É uma doença passageira”, explicou.
“Tendência é sempre para diminuir”
Domingos Teixeira diz que a tendência, a nível geral, é sempre para diminuir, sobretudo quando se refere à coceirinha.
“A coceirinha é uma doença que, com o passar dos tempos, tem diminuído bastante. Eventualmente, em um momento ou outro, podem até aparecer mais casos, mas a tendência é para diminuir. Entre outras doenças e casos como percevejo, pulga, pulguinha, são ocorrências que, com o passar dos tempos, vamos deixando para trás, melhorando as condições de higiene e de habitabilidade das pessoas”.
Relações destes surtos com a pandemia
Questionado se o aumento de casos relativamente a estas doenças pode estar relacionado com a covid-19, o nosso
entrevistado responde: “Não tivemos evidências de que a covid-19 mudou o curso destas doenças ou que estão relacionadas de alguma forma.
O sistema de saúde de Cabo Verde resistiu bem, continuou a acompanhar todas as outras situações de programas de patologias com boa performance.
Mas temos a consciência que de alguma forma nos concentramos mais na Covid-19, mesmo que sem desprimor das outras doenças”.
Neste momento, prosseguiu o nosso interlocutor, “tendo maior domínio sobre esta pandemia, estamos folgados para dar atenção devida às restantes endemias”, avançando que, ultimamente, o foco tem estado nas Doenças Crónicas Não Transmissíveis, Saúde Materna Infantil, entre outros programas correntes que devem fazer diferença em Cabo Verde e que sempre foi destaque na região.
Melhorias visíveis no combate de certas endemias
De uma forma geral, os entrevistados do A NAÇÃO acreditam que o país melhorou muito no que se refere ao combate a certas doenças contagiosas, particularmente as relacionadas com determinadas estações do ano. São os casos da coceirinha e da conjuntivite registados recentemente, num universo de sarna, sarampo, rubéola, diarreia, pulguinha, piolho, carrapato, entre outros parasitas, que no passado recente foram preocupações maiores para o sistema nacional de saúde.
Na perspectiva da professora Maria Tavares, “algumas destas doenças voltaram, mas os casos são menos graves, se comparado com os anos 90 ou antes, em que a população sofreu com pequenas pragas e surtos. Nesse período até cólera tivemos”.
“O país melhorou neste aspecto e hoje em dia temos mais médicos e as estruturas de saúde estão mais bem preparadas. Também a população tem melhores condições de vida, mais acesso a informações sobre os cuidados
a ter, as prevenções e formas de combate são visíveis com mais remédios disponíveis”, considerou também.
No entanto, a mesma acredita que o “regresso” de conjuntivite, surtos de percevejo, entre outros, mostra que “ainda existem fragilidades e coisas que ainda precisam ser melhorados”, pelo que “a luta deve continuar para diminuir cada vez mais as possibilidades de voltarem a fazer parte da nossa sociedade com muita frequência, ainda mais no contexto da pandemia em que nos encontramos”.
Independentemente dos últimos registos, Admilson Graça, natural da ilha de Santo Antão, diz que também “há muito não ouvia falar da conjuntivite, por exemplo”. No seu caso, acredita que quando o assunto é doença, “independentemente de tudo”, a situação “é sempre preocupante em qualquer contexto” pelo que “temos de melhorar e estar sempre alertas, principal mente nas instituições públicas”.
Para este também professor, Cabo Verde não estava preparado para doenças epidemiológicas, mas hoje a situação melhorou em termos de cuidados, visto que “a covid-19 foi um alerta e uma chamada de atenção”, no sentido de que na luta pela saúde pública os ganhos nunca são definitivos.
População atribui “nota positiva” ao combate da covid-19
Relativamente ao combate da pandemia, os entrevistados do A NAÇÃO acreditam que, de uma forma geral, o sistema de saúde tem estado “bem”.
Para Maria Tavares, Cabo Verde “conseguiu a vacina rapidamente se comparado com outros países do mundo”. No entanto, ressalva, “houve muitas queixas por parte das pessoas que ficaram infectadas, no que tange às formas de tratamento’’, referindo aos profissionais de saúde e agentes sanitários.
Como diz, “muitos reclamaram da demora dos resultados dos testes e outros afirmam que ficaram sem saber os seus diagnósticos”.
Ademilson avalia, igualmente de forma positiva, a actuação do sector de Saúde no combate à pandemia que nos tem afectado a todos. “O Ministério da Saúde, bem como todos os profissionais desta área estão de parabéns pelo bom trabalho no combate à covid-19, com destaque para medidas tomadas no país, e o processo de vacinação”, destacou.
De um modo geral, os nossos entrevistados esperam que o país volte o mais depressa possível à normalidade, tendo em conta as consequências que a covid-19 está a ter no tecido económico e empresarial, comotambém na nossa própria vida individual e privada.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 744, de 02 de Dezembro de 2021