Por: Arsénio Fermino de Pina *
Uma criança que nos tratava de tios, de um casal amigo, tranquilamente sentado na sanita, disse à mãe, ciente da imundice das fezes, que eu e a minha mulher não devíamos fazer cocó como ele, isso devido, provavelmente, à consideração e respeito que nos dedicava. Não mais pensei no assunto, que tomei como inocência infantil, até ler “A Insustentável Leveza do Ser”, do grande escritor checo Milan Kundera, onde encontrei a mesma dúvida de outra criança, mas referida a Deus, Adão e Eva no Paraíso, interpretada por teólogos e santos. Apresento-os à consideração dos leitores, a fim de poderem fazer juízo da antropologia cristã de épocas recuadas, o que não é de condenar, nos tempos que correm, face à evolução da mentalidade humana, dado que o grande filósofo René Descartes, contemporâneo de Espinosa, acreditava que o homem era o dono e o senhor da Natureza, negando que os outros animais tivessem alma sendo simples autómatos, uma máquina sem alma, esta um atributo exclusivo do homem.
Presumo haver uma fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem de Deus. Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem de Deus, imita Deus e tem intestinos, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com Ele. Os gnósticos antigos sentiam-no tão claramente como o meu sobrinho adoptivo, e com maior razão relativamente a Deus. Para resolver esse maldito problema, Valentino, grão-mestre da Gnose do século II, afirmava que Jesus comia, bebia, mas não defecava. As fezes são um problema teológico muito mais difícil do que o mal. Deus ofereceu a liberdade ao homem e, portanto, podemos admitir que Ele não é responsável pelos crimes da Humanidade. Mas a responsabilidade pelas fezes incumbe, inteiramente, Àquele que criou o homem, e só a Ele.
As minhas pesquisas teológicas têm-me levado a desencantar reflexões intrigantes, seguramente não avalizadas pela modernidade religiosa cristã. Enfim, convicções e “verdades” a que alguns apelidam de apodicticas, que duraram séculos, mancharam algumas belas mensagens dos Evangelhos, levando à morte aqueles que disso duvidavam ou tinham uma opinião ligeiramente diferente, durante a chamada Idade das Trevas (Idade Média), num período em que a Ciência, incipiente, estava subordinada à teologia.
Vejamos outras do género, também apontadas por Kundera: no século IV, São Gerónimo rejeitou categoricamente a ideia de que Adão e Eva tivessem podido fazer amor no Paraíso. João Escoto Erigena, ilustre teólogo do século IX, pelo contrário, admitia esta eventualidade, embora, na sua opinião, Adão podia levantar o seu membro viril (ter erecção), mais ou menos como nós levantamos um braço ou uma perna, pela simples acção da vontade, sem necessidade de excitação provocada pela beleza de Eva, não havendo, portanto, nenhum problema ou ameaça de impotência. O que o grande teólogo julgava incompatível com o Paraíso não era o coito e a volúpia que lhe estavam associados, mas sim a excitação; no Paraíso existia volúpia, mas não precedida de excitação. No raciocínio de Escoto Erigena, enquanto foi permitido ao homem viver no Paraíso, ou ele não defecava (tal como Jesus, segundo a teoria de Valentino) ou, o que parece mais provável, as fezes não eram consideradas qualquer coisa repugnante, imunda. Ao expulsar o homem do Paraíso, Deus revelou-lhe a natureza imunda e o nojo das fezes. O homem começou a esconder aquilo que o envergonhava e, simultaneamente, descobriu também a excitação quando olhava para a mulher, sem a qual o amor sexual não seria tal como o conhecemos, acompanhado por batimento cardíaco e uma grande alteração dos sentidos.
Um conhecido humanista do Renascimento, Giovanni Boccaccio, numa sátira à excitação erótica negada por teólogos transformou-a em metáfora numa das suas “Histórias Eróticas” entre um jovem e vigoroso eremita em penitência no deserto e uma inocente adolescente, que também quis penitenciar-se no deserto para merecer o Paraíso, na qual a erecção do eremita era a incarnação do Diabo que o atormentava, e a inocência da adolescente acreditava, permitindo, em penitência, com muita fé e gozo, que ele introduzisse o Diabo nas profundezas do seu Inferno, a fim de ambos poderem merecer alcançar o direito ao Paraíso.
A questão relativa ao sexo foi sempre complicada para a teologia e ainda o é, embora um pouco menos para os cristãos dos nossos tempos, pelo menos nos aspectos mais caricatos como os descritos por Kundera. Os muçulmanos integristas é que ainda não se libertaram desses preconceitos medievais, temendo a excitação da visão da beleza feminina, como o Diabo da cruz, levando o homem a obrigar a mulher a cobrir-se da cabeça aos pés, não valorizando nem cultivando o autodomínio, comportando-se como animais irracionais face a fêmeas no cio, vendo uma mulher descoberta, isto é, sem véu nem burka. Mesmo coberta, a mulher muçulmana é totalmente dependente do homem, praticamente sem direitos e muito menos autonomia, enfim, um objecto animado propriedade do homem que dispõe da vida e morte dela.
Parede, Outubro de 202
*Pediatra e sócio honorário da Adeco
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 741, de 10 de Novembro de 2021