Por: Arsénio Fermino de Pina*
No meu último artigo falei do homem económico, vocacionado para o seu proveito pessoal, alheio ao ideal do Estado social com o seu pacto da partilha da riqueza por aqueles que contribuíram, com o seu trabalho aturado e empenho, no seu crescimento. Os impostos deveriam recair sobre os ricos, muito ricos e grandes empresas e não sobre os remediados e a classe média, até porque, recaindo sobre os que acumulam ociosamente riqueza, nem disso se apercebem, o que não acontece quando martiriza os com poucos recursos. Atente-se na doutrina Thatcher-Reagan em que os ricos passaram a pagar metade do que pagavam anteriormente, o que desencadeou lucro excessivo via neoliberalismo com privatização de serviços públicos, enriquecimento de quem já era rico, empobrecimento acentuado dos remediados e aumento do número de pobres. Os chamados 30 gloriosos anos (de 1945 a 1973), em que houve crescimento económico, elevação do nível de vida, mas com baixa qualidade desta, individualismo crescente, diminuição da solidariedade e hegemonia crescente do económico com degradação da política e muita selvajaria. É sabido que o capitalismo parasita os governos, as instituições europeias e internacionais através dos lóbis, autênticos cavalos de Troia disfarçados nos governos.
A chantagem permitida pela deslocalização das grandes empresas para países de baixos salários, com ausência de sindicatos e de leis de protecção de trabalhadores, que a globalização lhes permitia, acarretou a perda de força dos sindicatos de trabalhadores e das greves, agravada, pouco depois, pela introdução do capitalismo na China, o colapso da ex-União Soviética e a abertura económica da India, o que causou um verdadeiro choque de oferta de trabalho e aumento de desempregados nos países ricos. O desemprego, nestas condições, funciona como capital não investido, mas disponível aos investidores, para fazer baixar os salários, vergar os sindicatos e eliminar greves.
Já repararam que vivemos na fase decadente do capitalismo, em que o modo de produção capitalista vive da industrialização da guerra – as duas guerras mundiais e centenas de outras guerras -, e da destruição da força de trabalho, como nos assinala a historiadora Raquel Varela? Que dizer de invasões, ditas democráticas, pelo mundo, que incluem alianças ora com ditaduras modernas, ora com monarquias despóticas do tipo medieval?
Milionários honestos como Gulbenkian, Bill Gates, Thomas Piketty, entre poucos outros, reconhecem pagar poucos impostos e alguns compensam essa injustiça investindo, de motu próprio, sem interesse lucrativo, em actividades de interesse público, em bolsas de estudo, criando instituições de investigações científicas e também, no que as empresas farmacêuticas não fazem ou reservam ninharias – 1% dos seus investimentos -, na procura de vacinas e medicamentos para doenças tropicais que matam milhões de pessoas nos países mais pobres.
Grande número de milionários, multimilionários, negociantes de armas, traficantes de drogas e financiadores de terrorismo servem-se dos chamados offshores, ou paraísos fiscais, para esconderem as suas fortunas e recursos financeiros a fim de fugirem ao pagamento de impostos ou à alçada da lei, geralmente tendo por facilitadores escritórios de advogados. Os offshores, sendo sucursais de bancos conhecidos, não são ilegais mas, pelas suas actividades são, obviamente, imorais, por prejudicarem aqueles que pagam impostos, países e servirem para actividades criminosas. Recentemente, um consórcio de jornalistas de investigação identificou personalidades importantes do meio político (deputados), governamental (rei, ex primeiros ministros, primeiros ministros e ministros), financeiro (administradores e directores de bancos) e de outras actividades com milhões em offshores, a que deram o nome de Pandora Papers. Há muito que se fala na necessidade de extinguir os paraísos fiscais, mas como fazê-lo se quem pode actuar, alguns se servem deles para esconderem patrimónios, fortunas mal adquiridas ou para fugirem ao pagamento de impostos? Os Pandora Papers são uma última descoberta, mas já houve Panama Papers e outras Leaks com milhares de milionários aí metidos, tendo alguns admitido a falha e entrado em acordos com os Estados, em Espanha, por exemplo, pagando multas avultadas para não irem parar à cadeia, tratando-se, sobretudo de jogadores de futebol e seus managers. Em Portugal, ainda nada, ou bem pouco, aconteceu aos que fogem ao pagamento ao fisco, ou roubaram grandes quantias, falando-se simplesmente que o Governo está a acompanhar a situação para proteger os contribuintes, quando deveria ter dito, a realidade é esta: afinal, fomos roubados e temos de aumentar impostos para tapar os buracos.
Vivemos cada vez mais num mundo imoral e sem ética. Uma das maneiras eficazes de essa imoralidade das grandes fortunas e empresas ser amainada, não podendo ser erradicada, é, como assinalei no último artigo, através da cogestão do tipo germano-sueco, que os movimentos sindicais e os partidos sociais-democráticos conseguiram impor aos accionistas, em meados do século XX, havendo uma nova partilha do poder sob a forma do chamado sistema de cogestão, conforme aconselha o economista e professor Thomas Piketty, com regresso ao pacto social, que nada tem a ver com assistência social, como explicámos no artigo anterior, pacto que nasceu não de um consenso mas do apocalipse, dos 50 milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial e do facto de dezenas de milhões estarem armados e só aceitarem deixar a resistência e entregar as armas em troca de um pacto social europeu. O sistema de cogestão adoptado na Europa em certos países não é aceite pelos accionistas, por exemplo, nos Estados Unidos. Todavia, se mais países adoptarem o sistema, talvez o exemplo dê força aos sindicatos americanos e noutras paragens, até porque isso não prejudica as empresas, para, com a participação de trabalhadores eleitos no conselho da administração, mesmo sem serem accionistas, os sindicatos de trabalhadores ganharem forças para exigir esse sistema, o qual permite o controlo das actividades das empresas, prevenindo as que prejudicam os trabalhadores e o país, o excessivo aumento de prémios e vencimentos de administradores e directores. Não há direitos adquiridos como benesses, mas sim direitos conquistados à custa de muita luta, incompreensão e sofrimento. A força dos trabalhadores é o trabalho, porque sem ele não se produz valor, como admitiram, tanto Marx como Adam Smith e Ricardo.
Parede, Outubro de 2021
*Pediatra e sócio honorário da Adeco
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 739, de 28 de Outubro de 2021