Por: João Serra*
No já relativamente longínquo ano de 2007, escrevi uma série de artigos sobre o funcionamento do Estado em Cabo Verde, todos publicados no jornal “A SEMANA”, dos quais destaco três, pela sua atualidade e importância: (i) “A Reforma do Estado versus Ciclo Político”; (ii) “Administração Pública: Reforma ou Transformação?”; e (iii) “Cabo Verde versus Corrupção”. Nestes três artigos de reflexão, teci duras críticas aos Governos da década de noventa (liderados pelo MpD) e – objetivamente, com menor incidência – aos Governos em funções de 2001 a 2007 (liderados pelo PAICV), pelas práticas que, na minha perspetiva, não estavam conformes com o que entendo dever ser o ideal republicano. Para além das críticas feitas, apresentei, também, um conjunto de propostas conducentes à melhoria da situação então existente.
Uma das críticas feita é a de que “a nossa administração pública era excessivamente pesada, burocrática e sem a qualificação que o novo paradigma político-económico dela requer.” Também critiquei a politização/partidarização da máquina do Estado, referindo-me que, de um modo geral, “não existia a serenidade suficiente para que fosse visto com normalidade o exercício de funções em postos de responsabilidades por pessoas com filiação política diversa dos detentores do poder”. Eu estava ciente de que a exclusão de alguns quadros qualificados e altamente qualificados poderá ter impactado no planeamento e na execução das medidas necessárias ao desenvolvimento de Cabo Verde.
Entretanto, pelo que se vem assistindo, nunca a politização/partidarização da administração pública e da vida pública atingiu a dimensão e o “descaramento” imprimidos pelos Governos do MpD saídos das duas últimas eleições legislativas, a ponto do líder da UCID ter dito, numa das sessões parlamentares da Legislatura anterior, que, citando de memória, “num único ano de mandato, o Governo do MpD fez nomeações políticas que os Governos do PAICV levaram 15 anos a fazer.”
Com efeito, já não bastam as nomeações políticas para o exercício de postos de elevadas responsabilidades, pouco se importando com a existência das necessárias competências técnicas e de perfil adequado às funções. Pois, para, praticamente, todo e qualquer tipo de recrutamento, é tomado em consideração, quase exclusivamente, critérios de afinidade política, de amiguismo e de compadrio. E quando não há outra forma de enquadrar os “novos melhores filhos da nossa terra”, criam-se novas estruturas ou novos e bons “jobs for de boys”.
Assim sendo, não é de se estranhar a hipertrofia da máquina do Estado, a contar pelo próprio elenco governamental (o mais gordo da história), sorvedora de enormes recursos financeiros, mormente nos tempos que correm em que os recursos públicos são insuficientes para se fazer face à grave crise económica e financeira provocada pela pandemia de Covid-19.
Além disso, tornou-se prática corrente que os destituídos de funções tomem conhecimento do facto após a consumação do mesmo, no Boletim Oficial e nos órgãos de comunicação social. Talvez seja por causa dessa falta de cultura institucional, que muitos dos “despedidos” não comparecem ao ato de tomada de posse dos seus sucessores.
Por outras palavras, desde 2016, passou-se a ignorar, completamente, o preceito constitucional que impõe ao Estado o dever de garantir a não discriminação dos cidadãos em função da sua convicção política, assim como a obrigação de garantir a igualdade de oportunidades a todos os cabo-verdianos. Digo desde 2016, porque, verdade seja dita, tanto na década de noventa como até 2015, houve alguma preocupação com o aproveitamento das capacidades técnicas dos melhores quadros nacionais, independentemente da sua preferência partidária, convicção filosófica ou religiosa. Prova disso, é a elaboração, nesses dois períodos de tempo, de um vasto conjunto de importantes documentos de estratégias para o desenvolvimento político, económico, social e cultural do nosso país, coisa que não acontece atualmente.
À excessiva politização/partidarização da máquina do Estado, acresce, ainda, a falta de sentido de Estado, enquanto parte da cultura política elementar em todas as democracias. O sentido de Estado parte do pressuposto de que há sempre um interesse superior – o do Estado democrático – ao de cada opção partidária. E o que o Primeiro Ministro demonstrou com o seu envolvimento e o da maioria do elenco governamental em torno do seu candidato presidencial foi exatamente falta de sentido de Estado. Este envolvimento, pela sua intensidade, fervor e falta de pejo, acontece pela primeira vez. Julgo que foi precisamente isso que terá levado o chefe da missão dos observadores das eleições presidenciais da União Africana a propor ao Governo a introdução, na lei eleitoral, de uma norma para restringir o uso de bens e meios públicos para fins de campanhas eleitorais.
Em Cabo Verde, a estrutura da administração pública central é um complexo labirinto de direções gerais, serviços desconcentrados do Estado, dezenas de institutos públicos e empresas públicas. É fácil imaginar quão exigente é o desafio do exercício de controlo sobre este complexo aparelho administrativo, nomeadamente pela dificuldade de coordenação das atividades entre estas instituições. E é o, também, entre os seus dirigentes que têm, muitas vezes, as suas preferências ideológicas, tentando implementá-las.
A legitimidade do sistema democrático assenta na premissa de que as funções de decisão e de implementação de políticas são controladas por partidos políticos que foram às urnas e ganharam as eleições. Esta ligação é importante para garantir o funcionamento eficiente da democracia representativa. Assim sendo, é normal que os partidos que estão no governo procurem os melhores mecanismos de controlo, sendo que as nomeações para cargos de direção na administração pública são não só um dos mais antigos, como também um dos mais utilizados instrumentos de controlo da administração pública.
Ora, o problema reside no excessivo aumento da politização ou partidarização da administração pública, com referências à nomeação e ao recrutamento preferencial de gestores e servidores públicos ligados ou próximos do partido no governo. Com efeito, as numerosas nomeações políticas são vistas como o sintoma da ocupação ou captura das estruturas do Estado pelos partidos políticos. Esta situação mina a credibilidade e a transparência no acesso aos serviços públicos, desfigura a capacidade da administração pública, a qualidade da democracia, para além de comprometer o desempenho dos serviços e o próprio desenvolvimento do país.
Efetivamente, as nomeações em Cabo Verde, de um modo geral, nascem de laços pessoais, políticos ou partidários entre políticos e dirigentes, bem como entre dirigentes de diferentes organizações. Elas geram ou reforçam um circuito relativamente fechado em que dificilmente se criam mecanismos que permitam prever e identificar potenciais conflitos de interesses.
Outrossim, a ausência de mecanismos transparentes e profissionalizados de escolha de candidatos leva à colocação nas estruturas de governação de indivíduos com menores competências e, potencialmente, mais permeáveis à corrupção.
Por causa disso, a administração pública passou a ser vista pelos cabo-verdianos, cada vez mais, como uma propriedade exclusiva de quem exerce o poder. Esta perceção reforça a imagem negativa dos partidos e da máquina administrativa, percetível nas elevadas taxas de abstenção aquando da realização de eleições.
Na verdade, atualmente, a administração pública central, em Cabo Verde, tornou-se, praticamente, uma sociedade unipessoal detida pelo MpD, contrariamente ao que devia ser: propriedade de todos os cabo-verdianos. Esta situação de exclusividade gera uma certa sensação de sufoco, para além de impactar no funcionamento de várias áreas da sociedade e nas relações interpessoais.
Continua…
Praia, 25 de outubro de 2021
* Doutor em Economia
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 739, de 28 de Outubro de 2021