A falta de um espaço curricular que aborde questões de género tem levado à exclusão de alunos LGBTI (sigla que designa pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, intersexuais ou outras com orientação sexual diferente da heterossexual). Esta situação tem comprometido a continuidade desses alunos no sistema de ensino, afirmam activistas dessa comunidade. O Ministério da Educação diz que as escolas têm reforçado os programas no sentido de se abordar os valores de cidadania, respeito e diferenças, nomeadamente as questões do género.
Apesar de não existirem dados e nem estudos que comprovem o abandono escolar por parte de alunos LGBTI em Cabo Verde, as associações que trabalham com essa comunidade têm alertado para a existência desse problema. É o caso da Arco-Íris que tem notado um aumento de jovens LGBTI fora do sistema de ensino.
Sentimento de exclusão
“Temos constatado que há muitos jovens LGBTI que têm deixado as estruturas de ensino. Muitos por não se sentirem acolhidos, outros por dificuldades financeiras. Mas, na maioria das vezes, o sentimento de exclusão é o factor predominante. Não se sentir identificado num ambiente que não respeita a diversidade é complicado e motiva o abandono”, explica Elvis Tolentino, presidente da Arco-íris.
E, é esse sentimento de exclusão, com dificuldades financeiras à mistura, que levaram Hélio, 16
anos, a abandonar os estudos no 10º ano.
Não se sentir identificado com os estereótipos da escola, que não inclui a diversidade no currículo, segundo o jovem, o motivou a desistir.
Apesar de bom aluno, diz ter sentido que a escola o excluiu por, muitas vezes, o fazer sentir culpado por ser quem é e por conviver, diariamente, com um ensino heteronormativo e que não leva em
conta a diversidade e as questões de género existentes.
Sistema educativo“obsoleto”
Para a professora e socióloga Patrícia Silva, que convive com alunos LGBTI, o abandono escolar na comunidade é um factor preocupante e culpa o sistema educativo “obsoleto” pela exclusão.
“Uma das principais causas do abandono escolar é um sistema educativo obsoleto que não se adaptou à nova geração. Quando pensamos nas questões LGBTI, a questão é mais preocupante, pois, estes, além de serem vítimas desse sistema obsoleto, não são ‘tidos e nem achados’ no mesmo.
Existe, sem dúvidas, exclusão do assunto e poucas questões de géneros nas escolas”, categoriza Patrícia Silva.
Apesar de notar maior abertura e alguma tolerância em relação ao assunto, destaca que há, ainda, um percurso enorme a se fazer, sobretudo nas gerações mais velhas, inclusive nos educadores.
“Sinto e vejo o preconceito nos meus pares, contudo, actualmente, as pessoas sabem que é necessário
se policiarem perante o preconceito, portanto, controlam mais, o que poderá ser negativo pois as coisas ficam debaixo do tapete”, aponta a socióloga.
Por sua vez, a estudiosa do género e antropóloga Lurena Silva é da opinião que a escola não se encontra preparada para a diferença por reproduzir valores que a sociedade quer preservar como normais.
“A escola é descrita como o pior lugar para pessoas que fogem à norma de género. E, para as pessoas que não se enquadram nessas normas estabelecidas pela sociedade, acabam sendo reprimidas e maltratadas pelos colegas e professores”, avança Lurena ao A NAÇÃO.
Para esta estudiosa e autora do livro “Homossexuais, Gays e Travestis em Mindelo: Entre Identidades e Resistências”, a própria escola acaba por “expulsar” alunos LGBTI, por vivenciarem momentos de angústia e de rejeição que culmina no abandono escolar, devido a pressão que são submetidos.
Activismo pelos direitos LGBTI
Lurena considera que a exclusão e o consequente abandono escolar podem comprometer o
futuro e o activismo, na medida em que exclui os alunos LGBTI de adquirirem ferramentas para
a formação de uma consciência crítica que lhe permita reivindicar direitos.
O comprometimento do activismo e a defesa por direitos igualitários ficam “fortemente condicionados” com o abandono escolar, o que, segundo Patrícia Silva, tem sido notável entre os
membros da comunidade LGBTI.
Para a socióloga e professora, o conhecimento é poder e, torna-se “fundamental” ter conhecimento para se engajar em “qualquer luta” e para que a comunidade use de sua legitimidade para fazer-se ouvir.
É neste sentido que a professora defende a criação urgente de espaços no currículo escolar para que os alunos conversem sobre temas diversos, inclusive questões de género, principalmente numa altura em que as únicas disciplinas reservadas para o fim, Formação Pessoal e Social (FPS) e Educação para a Cidadania, têm sido retiradas, paulatinamente, do currículo escolar.
Debate da diversidade sexual nas escolas
Lurena Silva também defende o mesmo. Para a estudiosa, a falta de uma educação cidadã nas escolas estimula a reprodução de padrões de masculinidade, tornando-se no apelo à violência
física, discriminação contras as mulheres e homofobia.
“A escola precisa contribuir com o movimento de emancipação, de tornar a diversidade sexual algo discutido, debatido de forma natural, de modo a preparar os alunos para a diversidade, prevenindo situações de homofobia nas instituições de ensino”, indica Lurena Silva.
Para além de questões LGBTI, Lurena defende a inclusão de temas como a prevenção da violação sexual e da violência baseada no género, no sentido de prevenir situações perigosas que advêm da sociedade machista cabo-verdiana. Para isso, é necessário também, segundo a nossa fonte, a formação massiva de professores para tratar assuntos do tipo com os alunos nas diversas faixas etárias.
Igualdade de género nas escolas continua pendente
Apesar de se reconhecer a urgência na implementação da igualdade de género nas escolas, o processo continua pendente. Mesmo com a elaboração de manuais para professores e guias para alunos por parte do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG), a introdução
desta temática permanece em “banho maria”.
Rosana Almeida, antiga presidente do ICIEG, substituída esta semana no cargo, considera que a questão merece prioridade e que não se pode deixar a temática exclusivamente para as famílias numa sociedade machista como a cabo-verdiana.
“É uma questão que merece total prioridade”
“É uma questão que merece total prioridade porque quando se introduz uma matéria dessas numa sociedade machista, com casos de VBG (Violência Baseada no Género) e feminicídio, é nossa obrigação continuar a trabalhar a nova geração, e nas escolas podemos fazer isso. Não podemos deixar essa questão, numa sociedade machista, somente às famílias”, considera Rosa Almeida.
“Tratar o mal pela raiz”
Conforme avança Rosana Almeida, o ICIEG sempre considerou que para se ter uma sociedade igualitária e tolerante, deve-se tomar medidas de política e, segundo diz, introduzir a igualdade de género nas escolas pode ser uma medida que pode impactar e “tratar o mal pela raiz”.
A introdução da igualdade de género nas escolas é um passo histórico, segundo Rosana Almeida, sendo que “poucos países no mundo” conseguiram implementar esta temática no ensino básico e primário, o que pode fazer de Cabo Verde uma referência neste domínio.
O módulo sobre igualdade de género nas escolas procura melhorar o conhecimento sobre género existente nos espaços educativos, facilitar ao corpo docente a operacionalização da transversalidade de género no âmbito educativo mediante exemplos práticos e mostrar a importância de uma linguagem inclusiva, não sexista e nem discriminatória.
Ministério da Educação garante inclusão. Manuais sobre igualdade de género estão a ser impressos
A directora nacional da Educação, Eleonora Sousa, disse ao A NAÇÃO que o Ministério da Educação não tem conhecimento de eventuais abandonos escolar motivados por questões do género.
As escolas, como afirma, têm reforçado os programas no sentido de se abordar os valores de cidadania, respeito e diferenças, nomeadamente as questões de género.
Aquela responsável afiança que o género tem sido trabalhado de forma transversal em todas as disciplinas, sendo que, segundo Eleonora Sousa, as escolas possuem espaços de inclusão educativa para desenvolver atividades com os alunos.
Em relação à implementação efectiva da igualdade de género nas escolas, em parceria com o ICIEG, a nossa fonte diz que as escolas estão à espera da impressão dos guias e manuais, mas que as versões digitais já estão nas escolas.
“Esses manuais vão ajudar a facilitar a dinamização dos conteúdos por parte de qualquer professor de qualquer disciplina. Mas esses conteúdos já são ministrados de forma transversal nas escolas”, esclarece Eleonora Sousa que avança ainda que a retirada de disciplinas como FDS do currículo não compromete a educação sexual e nem a cidadania.
“Não queremos que estas temáticas fiquem restritas a apenas uma disciplina e não se verificar na prática os ensinamentos. Queremos que questões de género violência, cidadania sejam transversais
e que as escolas se tornem num espaço onde, realmente, se vivencie a cidadania”, aponta a directora nacional da educação que avança que Cabo Verde tem seguido os indicadores de qualidade dos outros
países mais desenvolvidos para implementar a reforma curricular.
Em relação ao abandono escolar, a taxa no ensino básico registou uma diminuição de 2,8% para 1,5% e no ensino secundário também ouve uma diminuição de 6,0% para 1,6%, mas não há estudos que comprovem até que ponto as questões de género podem contribuir para oabandono escolar de alunos LGBTI no país.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 741, de 11 de Novembro de 2021