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“Es li e nha palasiu”: notas sobre a Iniciativa Outros Bairros – Alto Bomba, Mindelo

Por: Redy Wilson Lima

A iniciativa Outros Bairros (IOB) é uma experiência piloto de reabilitação de zonas autoconstruídas a partir de uma pesquisa-ação centrada no bairro de Alto Bomba, no Mindelo que, na perspetiva dos seus promotores, representa um primeiro passo para a reflexão sobre uma possível intervenção pública de maior escala com possibilidade de implementação nas restantes cidades. Financiado totalmente pelo Governo de Cabo Verde, no âmbito do PRRA, o bairro vive atualmente momentos de incertezas, na medida em não há garantias da sua continuidade e consolidação, ao contrário dos Grandes Projetos Urbanos mais encarecidos e falhados como são os Grandes Conjuntos Habitacionais – Casa Para Todos – que, a meu ver, podem perfeitamente ser complementares.

O bairro de Alto Bomba nasce do transbordamento do bairro de Monte Sossego, cuja projeção no plano urbanístico dos anos de 1960 como célula habitacional 2 não evitou a forte pressão populacional proveniente da migração rural santatonense, desencadeada pela fuga do campo na decorrência das fomes que marcaram o arquipélago entre os anos de 1940 e 1960. Esta realidade criou um perfil urbanístico (informal) e demográfico (rural) estigmatizado do bairro, que tive contato pela primeira vez em 2019, enquadrado numa pesquisa sobre os movimentos sociais urbanos, num período em que se estava a preparar a implementação da IOB. Era visível o contraste urbanístico do bairro quando comparado com Monte Sossego ou outros bairros consolidados ou em processo de consolidação da fralda mindelense. Apesar da população com quem comecei a desenvolver as minhas primeiras relações no território tinha orgulho da cultura do bairro, sentiam-se algum mal-estar pela representação que os moradores dos territórios considerados centrais da cidade tinham do bairro, mesmo sem que lá tivessem estado.

Voltei ao bairro em março de 2020 e em conversa com rappers locais observei a fragmentação do bairro entre cima e baixo, uma situação típica do contexto urbano cabo-verdiano, visto que os bairros, especialmente os considerados periféricos, foram ocupados a partir de uma dinâmica familiar ou de afinidade, em momentos históricos e em conjunturas sociopolíticas diferenciadas. Segundo estes jovens, esta situação impedia a construção de uma consciência sociopolítica e identitária que, como consequência, bloqueava possibilidades de mobilização por causas comuns como o direito à cidade. 

A abordagem colaborativa implementada pela IOB e a ideia de trabalhar sem planificação, pelo menos na forma como ela é pensada nas escolas clássicas da arquitetura e urbanismo, em que a urbanização foi tomada como um processo, permitiu a identificação de micro-espaços de sociabilidades que abriu possibilidades para a organização de conversas de grupo autorreflexivas sobre o bairro, a cidade, o país e sobre as lutas transnacionais pelo direito à terra, dignidade humana e o direito à cidade e à habitação. Foi neste contexto que comecei a colaborar com a IOB através da coordenação da residência artística do hip-hop Kubaka, O hip-hop, pensado simultaneamente como cultura e movimento, foi utilizada como uma ferramenta de consciencialização social, política e identitária, bem como uma estratégia a partir da qual se procurou trabalhar a unidade e o djunta-mon entre os vários coletivos territorializados no bairro. 

A residência realizada entre os meses de outubro e dezembro de 2020 coincidiu com os programas Dsinrascá e Amdjer na Obra e ambos tiveram um importante papel na consolidação da dinâmica social e juvenil à volta das estruturas urbanísticas criadas e na consciencialização para a necessidade de propor uma outra forma de liderança comunitária colaborativa protagonizada por jovens e mulheres que, segundo o INE, são simultaneamente a categoria populacional nacional mais vulnerável, dinâmica e participativa. Esta consciencialização consolidou-se recentemente com a provável descontinuidade da IOB, uma situação já decorrente em Cabo Verde nos bairros alvos de intervenções públicas. Isto porque há uma falta de cultura de institucionalização de intervenções baseadas numa cultura de projetos (com uma validade de dois a três anos) financiados pelos programas das agências de ajuda para o desenvolvimento, que as tornam pontuais e pouco estruturantes, não mudando significativamente o bem-estar social e urbano do lugar, que são deixados ao abandono, especialmente quando não se prepara a sua saída ou ela acontece de forma abrupta.

Embora a IOB seja do Estado, por ser ainda percebido como uma intervenção piloto, não se ter institucionalizado enquanto política pública e ter ficado segregado ao bairro de Alto Bomba, impossibilitou a criação de uma dinâmica urbana entre os bairros inicialmente propostos (Fernando Pó e Covada da Bruxa) com vista à inclusão progressiva e simbólica da fralda na parte formal da cidade e a sua posterior multiplicação para outros contextos urbanos, desde que salvaguardando a história, trajetória e a cultura de cada lugar de intervenção.

É patente que a transformação comunitária e mudança de atitudes que tanto se fala só será alcançado a partir de uma política de emancipação destes bairros, algo conseguido em parte pelo IOB. Complementar este ganho passa pela necessidade de promover a apropriação da mesma pelos coletivos promovidos pelo IOB e isto se consegue, por exemplo, com o aproveitamento de equipamentos abandonados no próprio bairro. A necessidade da ocupação da Sentina abandonada pela CMSV e a sua transformação num Centro Comunitário depois de algumas intervenções arquitetónicas no espaço surge nas conversas promovidas pelo Kubaka, o que garantia a continuidade do espírito implementado pela IOB e a sua apropriação comunitária.

Por outro lado, é de salientar que alguns estudos realizados nas ilhas têm chamado a atenção para a proliferação de casos de frustração e ressentimento, associados a ansiedade e depressão, sobretudo nas camadas juvenis e nas mulheres, resultado da má gestão de expetativas desta camada populacional.  No caso de Alto Bomba, é evidente que o desfasamento entre o prometido e o realizado tem gerado algum stress, além de indiciar o aumento do sentimento de descrença no sistema político e na vontade política em desenvolver políticas públicas inclusivas e impactantes.

É preciso ter em conta que atualmente o país encontra-se no segundo momento da transição urbana. Isto é, que se no primeiro momento os movimentos do campo para a cidade expressavam uma busca do camponês de estar na cidade, como forma de fuga à realidade rural ou devido à atratividade urbana, atualmente, ao se instalar na cidade, a busca passa pela sua apropriação, aproveitando as condições que lhes são próprias e que lhes permite viver plenamente. Como nos disse uma entrevistada numa das casas de tambor do bairro, “ali em baixo eles tem o seu palácio. Aqui nós temos o nosso e este é o meu palácio… Só preciso de um documento de legalização já prometido pela CMSV para o poder transformar numa casa de bloco tal e qual lá em baixo”. Esta situação, observada noutras moradoras demonstram que apesar de se considerar este espaço informal e estas casas “clandestinas”, elas foram formalizadas a partir do momento em que pagaram serviços básicos, como por exemplo a eletricidade. Na verdade, os recibos destes serviços provam essa formalização e deveriam ser tomados como um dos possíveis critérios da sua legalização, em vez da promoção de uma política de demolições fora do calendário eleitoral, contrárias às políticas urbanas de inclusão aconselhadas pelo HABITAT III. São famílias encabeçadas por mulheres cujo único crime foi ter respondido de forma criativa a ausência parcial e por vezes total do Estado (municipal e central).

Como forma de conclusão, diria que a IOB, além da infraestruturação já feita, que trouxe uma outra visibilidade pública e nível de bem-estar do bairro, deverá ser continuado com a mesma abordagem que tem sido seguido até então e ser institucionalizado como uma política pública nacional. Esta opção reforça a solidariedade e coesão comunitária, algo que não tem acontecido com a política de Casa Para Todos, renomeada de Plano Nacional de Habitação, que na maioria dos casos tem desencadeado fragmentação dos bairros onde foram instalados, criando subzonas diferenciadas e conflitos entre grupos de residentes. Não fazer isso, além de falta de visão e vontade política, denota um total desconhecimento da dinâmica urbana arquipelágica.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 731, de 02 de Setembro de 2021

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