Por: João Serra*
Conforme já referido na primeira parte deste artigo, publicada na edição anterior deste jornal, os dados preliminares do RGPH-2021 apontam para uma diminuição da população residente em Cabo Verde, de 491.683 habitantes em 2010 para 483.628 em 2021, com o INE a estimar uma taxa de crescimento anual médio (tcam) de -0,2% (0,2% negativos), de 2010 a 2021, contrariando as projeções, inclusive do próprio INE, que indicavam um aumento significativo da população residente no país em 2020.
Esses dados apontam, também, para uma diminuição muito grande da população jovem, de 20 a 24 anos, e para um ligeiro aumento da população idosa em relação a 2010.
Nesta segunda parte, procuraremos abordar a questão da transição demográfica em Cabo Verde, bem como as consequências de um eventual envelhecimento precoce da nossa população. Trabalharemos com os dados disponíveis de 1970 a 2015, na medida em que o INE, por enquanto, apenas fez uma apresentação muito sucinta de alguns dados preliminares obtidos com o RGPH-2021.
Algumas considerações sobre a transição demográfica e as suas fases
Nascer, crescer, reproduzir-se e morrer são factos indissociáveis da espécie humana. Este ciclo ocorre com uma intensidade diferente, em função das características de cada país, Estado ou cidade, dependendo de alguns indicadores e fatores: por um lado, das taxas de fecundidade (TF), natalidade, mortalidade e migração e, por outro lado, da influência exercida sobre esses indicadores pela economia, pelas variações climáticas, pelas crises sanitárias e humanitárias e pelas mudanças culturais.
Nesta ótica, as dinâmicas demográficas exprimem processos de natureza muito distinta, com as transformações económicas e sociais, as condições sanitárias e de saúde, as acessibilidades ou outras questões de natureza política a induzirem transformações no modo como as populações evoluem demograficamente. Também, o ritmo de crescimento e distribuição geográfica da população e das estruturas demográficas influenciam, significativamente, a evolução das dimensões associadas a estes processos.
As alusões à transição demográfica referem-se, essencialmente, às tentativas de explicação para as transformações operadas nas populações dos países industrializados, entre meados do século XIX e meados do século XX.
Na verdade, num processo que se estendeu por cerca de um século, esses países passaram de uma situação demográfica caracterizada pela existência de um quase paralelismo entre altas taxas de mortalidade e altas taxas de natalidade, para uma situação totalmente oposta, caracterizada pela existência de um quase paralelismo entre baixas taxas de mortalidade e baixas taxas de natalidade. Na primeira situação, a mortalidade funcionava como uma espécie de mecanismo regulador dos avanços e recuos das populações.
Segundo estudiosos da matéria, Adolphe Landry, um populacionista francês, foi o primeiro a expor, nos inícios do século XX, uma teoria sobre estas mudanças demográficas, sob a designação de Transição Demográfica. Nas décadas seguintes, essa teoria teve largo desenvolvimento, contando com importantes contribuições dos demógrafos dos EUA, Warren Thompson e Frank Notestein.
A teoria de Transição Demográfica é uma das teorias mais complexas e fundamentais para o entendimento da demografia. Ela surgiu como uma forma de refutação, a partir de argumentos sólidos, da teoria populacional do clérigo inglês Thomas Malthus, formulada no início do século XIX e que predizia um cenário catastrófico para a Humanidade, caso o crescimento populacional se mantivesse a uma taxa constante. O “Malthusianismo” foi a primeira teoria populacional a relacionar o crescimento da população com a fome e miséria. Isto porque, dizia Malthus, os recursos alimentares iriam crescer mais lentamente (em progressão aritmética), e não seriam suficientes para alimentar a população, com uma tendência de crescimento muito mais rápido (em progressão geométrica).
Segundo a teoria da transição demográfica desenvolvida por Frank Notestein, na primeira metade do século XX, não existe um processo homogéneo e unificado de constante explosão de crescimento populacional. Na verdade, quando esse fenómeno acontece, acredita-se que a tendência é de uma futura estabilização.
De acordo com Frank Notestein e outros grandes pesquisadores da dinâmica populacional, a transição demográfica acontece em quatro fases distintas, a saber:
1 – Pré-transição
A primeira fase do processo de transição demográfica é a pré-transição, quando a população se encontra num estágio de equilíbrio entre as taxas de natalidade e mortalidade. Entretanto, esse equilíbrio dá-se por meio da elevação dessas taxas. Assim, à medida que nascem muitas pessoas, muitas também morrem.
Essa é a característica principal das sociedades caraterizadas por um baixo nível de desenvolvimento socioeconómico. A qualidade de vida também é baixa e as condições sanitárias e de saúde são precárias. O melhor exemplo desse tipo de sociedade corresponde aos países europeus no início do processo de industrialização.
2 – Aceleração ou explosão demográfica
Na segunda etapa da transição demográfica ocorre um fenómeno conhecido como explosão (ou “boom”) demográfica. Ou seja, num curto período de tempo, a população cresce a níveis exponenciais.
Ao contrário de outras teorias, a transição demonstra que esse processo não acontece pelo aumento das taxas de natalidade, mas sim pela diminuição da mortalidade, em resultado, principalmente, das melhorias nas áreas da saúde, saneamento e outros.
Na Europa, essa fase ocorreu durante todo o século XIX. Já nos países em vias de desenvolvimento, o processo aconteceu ao longo do século XX. A aceleração demográfica volta a atingir a Europa durante o pós-guerra, o que resultou na criação da expressão “geração baby boom”.
3 – Desaceleração demográfica
Ao longo do processo de desenvolvimento das sociedades, as das taxas de natalidade tendem-se a entrar numa fase de desaceleração. Os fatores que induzem a isso têm a ver, no essencial, com o planeamento familiar, a inserção de mulheres no mercado de trabalho, a urbanização e o aumento do custo de vida.
Assim, a tendência é que a sociedade, que se encontra no processo de desaceleração demográfica, entre num processo gradual e de constante declínio da quantidade de nascimentos, ao passo que a queda da mortalidade começa a entrar na fase de estabilização.
4 – Estabilização demográfica
Por fim, a quarta fase da transição demográfica ocorre quando a sociedade atinge a estabilidade. Nesta fase, o equilíbrio das taxas de natalidade e mortalidade dá-se em patamares muito mais baixos que no início do processo, apesar de uma ou outra oscilação conjuntural.
Nesta fase, o crescimento populacional está contido e controlado. Apesar disso, a população atinge um processo de envelhecimento, com elevada expetativa de vida e baixas taxas de natalidade. O resultado é uma sociedade que enfrenta maiores gastos com a segurança social e saúde, além de queda na população economicamente ativa.
Enquanto o modelo original de Transição Demográfica descrito acima, apresenta só quatro fases, atualmente aceita-se uma quinta fase, onde a mortalidade superará a natalidade. Com efeito, devido ao elevado custo de se criar filhos, principalmente nos países desenvolvidos, as famílias optam por ter um número muito reduzido (entre 1 e nenhum) de filhos para manter o padrão de vida. Trata-se de uma fase de crescimento populacional negativo, provocando um decréscimo populacional, com o número de idosos tendencialmente a superar o de jovens, o que pode acarretar problemas em relação à força laboral e ao sistema de segurança social
A primeira transição demográfica iniciou-se no século XVIII, na Europa, com o processo de revolução industrial, enquanto que, nos países em vias de desenvolvimento, isto ocorreu a partir do ano de 1940, porém, com uma diferença fundamental: a queda de mortalidade verificada nesses países não foi acompanhada por um declínio significativo da natalidade, nem da modernização das suas economias.
A teoria de Transição Demográfica não está isenta de reparos. Para os seus críticos, ela oferece uma explicação redutora sobre a evolução das populações, nomeadamente porque apenas tem em conta a natalidade e a mortalidade a partir dos cálculos das taxas brutas, deixando de fora aspetos importantes, tais quais, os ligados, por um lado, às migrações e, por outro, às questões de natureza económica e social, como a participação das mulheres no mundo do trabalho ou a nupcialidade.
Entretanto, independentemente de reparos que possam ser feitos, as transformações demográficas ocorridas, até hoje, saldaram-se, numa primeira fase, pelo crescimento em contínuo das populações envolvidas, para, posteriormente, estacionarem e mesmo regredirem nesse crescimento. Porém, essas mudanças não se efetivaram nos espaços menos desenvolvidos ou nos chamados países em vias de desenvolvimento. Nestes países, regra geral, continuam a nascer muitas pessoas e continuam também a morrer muitas pessoas, mas a um ritmo menor que a reprodução, o que tem conduzido a um crescimento sem paralelo dessas populações e, por consequência, da população de todo o planeta. Esta circunstância tem feito reacender o debate sobre a velha questão malthusiana do necessário equilíbrio entre a população e os recursos, sobretudo em épocas de crise, quando o crescimento económico se apresenta menos resoluto.
Segundo especialistas, a população mundial continuará a crescer, pelo menos durante as próximas quatro décadas, principalmente no continente africano, devendo atingir o pico por volta de 2064. Nessa altura, o planeta contará com cerca de 9,7 mil milhões de habitantes. Entretanto, enquanto alguns países iniciam a sua transição demográfica ou conhecem um aumento da natalidade, outros chegam ao fim deste ciclo e confrontam-se com o desafio do rápido envelhecimento da sua população.
A transição demográfica em Cabo Verde
Da análise dos dados disponíveis, constata-se que, de 1970 a 2015, ocorreu uma alteração radical nos indicadores de mortalidade e natalidade em Cabo Verde. Tal como ocorre nas sociedades à medida que elas se desenvolvem, as taxas de mortalidade começaram a cair bem antes das de natalidade. Com efeito, a estrutura da mortalidade tem vindo, progressivamente, a concentrar-se nas idades mais avançadas, de 60 e mais anos, o que reflete uma melhoria das condições sanitárias do país e das condições gerais de saúde da população. A taxa bruta de mortalidade (TBM) carateriza-se por apresentar baixos níveis de mortalidade geral, reflexo da estrutura jovem da população e dos baixos níveis de mortalidade infantil e juvenil. A TBM (por 1000) era de 4,5 em 2010 e de 5,2 em 2015, que compara com a de 8,2 registada entre 1961-1970. A redução dos níveis de mortalidade teve como consequência o aumento da esperança de vida à nascença, que passou de 56,1 para 79,9 anos nas mulheres e de 54,7 para 71,5 anos nos homens, entre 1970 e 2015. Ou seja, em 45 anos, as mulheres tiveram um ganho de 23,8 anos de vida e os homens de 16,8 anos.
Da mesma forma, tem havido uma tendência decrescente dos níveis de fecundidade da mulher cabo-verdiana, embora o decréscimo seja mais acentuado nos últimos anos. De facto, a evolução da TF passou de pouco mais de 7 filhos por mulher em idade fértil no final dos anos 1970, para 6,1 filhos entre 1982-1984, 6 filhos entre 1985-1988, 5,5 filhos em1990, 4 filhos em 2000, 2,4 filhos em 2010 e 2,3 filhos em 2015. A redução da fecundidade deve-se, em grande parte, à generalização do planeamento familiar (através dos serviços de saúde reprodutiva) e à escolarização das meninas.
A redução da mortalidade, associada a uma redução menos acentuada da fecundidade, fez com que a população cabo-verdiana tivesse um aumento persistente desde 1950, ainda que oscilando em função do saldo migratório, particularmente nas últimas duas décadas e meia.
Efetivamente, o ritmo de crescimento anual da população foi bastante elevado na década de 60, na ordem dos 3,1%. De 1970 a 1980, com a forte corrente de emigração que ocorreu no país, em resultado da pobreza, da instabilidade política e de outras causas, o crescimento populacional conheceu uma redução drástica, passando para uma tcam de 1%. As décadas de 80 e 90 do século passado foram de maior crescimento anual da população, de 1,5% e 2,4%, respetivamente. De 2000 a 2010, a tcam da população foi de 1,2%, e de 2010 a 2015 de 1,1%.
Outrossim, a população cabo-verdiana continua sendo jovem. A idade média da população residente no país passou de 24,2 anos em 1970 para 25,2 anos em 1980, 26,6 anos em 1990, 28 anos em 2000, 29,5 anos em 2010 e 28 anos em 2015.
Em face dos dados disponibilizados pelo INE (Censos e estimativas) e referentes ao período de tempo de 1970 a 2015, tudo indica que Cabo Verde vive a fase 3 (três) da transição demográfica, configurando-se um quadro de baixo crescimento populacional, mas não de um decréscimo, como resulta do RGPH-2021. Isso, tendo em conta, sobretudo, a TF que, segundo o próprio INE, era de 2,3 filhos/mulher em 2015, ao que acresce o saldo migratório que, em princípio, não terá apresentado oscilações significativas de 2010 a 2020. Salienta-se que para a renovação ou substituição de gerações o número médio de filhos por mulher em idade reprodutiva deve ser de 2,1. A partir do momento em que a TF for menor, a população, normalmente, começa a diminuir.
Assim sendo, só razões de natureza extraordinária, que ainda desconhecemos, poderão explicar a diminuição da população residente em Cabo Verde, entre 2010 e 2021.
No cenário mundial, a transição demográfica é um processo natural e esperado, principalmente por conta do maior acesso às condições de saúde e aumento da qualidade de vida das populações. Entretanto, tal processo também tem as suas consequências.
O principal aspeto decorrente da finalização do processo de transição demográfica é o envelhecimento da população. Com a estabilização das taxas de natalidade e mortalidade, a sociedade entra num processo de envelhecimento natural, pois a esperança de vida aumenta consideravelmente, provocando dificuldades crescentes ao financiamento da segurança social, já que o número de idosos aposentados tende a crescer, por oposição à queda da população economicamente ativa.
Entretanto, até que se atinja esse ponto, uma sociedade passa por um período conhecido como “bônus demográfico”. Trata-se de uma situação que acontece quando há uma diminuição do número de nascimentos, enquanto a população idosa e inativa ainda não é tão grande. Tal significa uma predominância da parcela adulta da sociedade, sendo essa economicamente ativa. O resultado é a maior disponibilização de recursos e investimentos para o país, resultando em mais oportunidades, nomeadamente para empresas e empreendedores.
É no estágio de bônus demográfico que, no meu ponto de vista, Cabo Verde se encontra. Por isso, é fundamental que se aproveite ao máximo essa maior disponibilidade de mão- de-obra, em favor do desenvolvimento do país.
É importante salientar que o envelhecimento de uma população não pode nunca ser visto como um facto isolado ou de pouca importância, na medida em que tem inúmeros reflexos na vida social, influenciando o consumo, a transferência de capital e de propriedades, os impostos, a segurança social, o mercado de trabalho, a saúde e assistência médica, bem como a composição e organização das famílias.
Termino este artigo, dedicando-o ao meu ex. colega de trabalho e grande amigo Osvaldo Lima, falecido recentemente. Guardo do Duval, como também era conhecido, as recordações de um economista com sólidos conhecimentos e de elevado gabarito, para além de um profissional de primeiro plano e sempre disponível. Enquanto ser humano, era um homem bom e com um enorme coração. As minhas sentidas condolências à família enlutada. RIP!
Praia, 30 de agosto de 2021
* Doutor em Economia
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 731, de 02 de Setembro de 2021