Por: Milton J. Monteiro*
Na semana passada, surpreendendo positivamente os cabo-verdianos, em especial, a ala da terceira alternativa ou independentista, Casimiro de Pina veio a público anunciar sua candidatura ao mais alto cargo da nação.
A tônica foi assertiva: “a ideia de concorrer à Presidência da República surgiu a partir da análise do panorama político atual, em que se nota efetivamente uma tentativa inaceitável de partidarização das eleições presidenciais. Ora, isso viola e conspurca até a Constituição porque Presidência da República é um órgão de soberania que deve ser completa e absolutamente suprapartidário”.
Usurpação do poder e clientelismo
Ainda, na entrevista à televisão nacional, ele justificou que há uma tentativa de quase usurpação do poder e sua transformação em algo vitalício. São ministros e primeiros-ministros que precisam chegar ao topo, “parece que só querem fazer isso, não querem largar o poder”. É aquilo que todo cabo-verdiano já percebeu “política como meio de ganhar pão” ou sua profissionalização e carreirização.
No entanto, os cidadãos, mesmo algemados com alienação e devaneio histórico-partidário (75 versus 91), já não estão mais satisfeitos com essa mentalidade e prática. Não é por acaso que o desabafo recente do comandante Pedro Pires veio ao encontro do eco cada vez mais forte do povo:
“Entendo que há muita coisa a mudar no nosso comportamento. Nós instituímos na política, em invés da responsabilização, uma outra coisa, que é o clientelismo. Eu faço política para ter acesso a tal coisa, a tal vantagem.
Portanto, deve haver qualquer mudança na natureza ética da forma como vemos a política e fazemos ela. Se nós fazemos política na intenção de realizar objetivos pessoais, aí sim vamos ter problemas, não vamos resolver os problemas. Temos de fazer política na intenção de servir o país, a sociedade. Vamos ter que fazer política nessa intenção de dar atenção ao interesse comum, porque se nós fazemos numa perspectiva individualista, não dá, temos que ter uma outra perspectiva”.
Distanciamento político e neutralidade partidária
Para os candidatos partidários, Casimiro continuou pontuando que “já não servem, o tempo deles passou, os cabo-verdianos não querem isso”; “eles não conseguem funcionar como árbitros”.
Aqui, cabe aos eleitores, parar e pensar: pode um apadrinhado partidário ser árbitro da República? A pergunta é crucial para as eleições porque a neutralidade partidária na Presidência é imprescindível para o fortalecimento da nossa República. Os fundamentos para isso estão na própria Carta Magna (CRCV) que (1) determina as funções do Presidente, (2) o preserva de incompatibilidades e (3) o qualifica como representante, com personalidade própria. Vejamos:
Primeiro, no seu Artigo 124º, a CRCV assegura que o “Presidente da República é o garante”, ele “vigia e garante o cumprimento da Constituição e dos tratados internacionais”. Sabemos que em último caso, só assegura o cumprimento da Constituição quem tem compromisso de antemão com a Constituição, com a República e não com seus partidos. Numa partida de futebol, por mais que haja boa vontade, o árbitro jamais é um dos jogadores dos times.
Segundo, a Constituição resguarda esse cargo de incompatibilidades, também daqueles que poderia minar, por exemplo, o papel de árbitro: “O Presidente da República não pode, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição, exercer qualquer outro cargo político ou outra função pública e, em nenhum caso, desempenhar quaisquer funções privadas.” (CRCV, Artigo 128º).
Terceiro, considerando a fórmula clássica de checks and balances (freios e contrapesos), a CRCV determina que: “2. Os órgãos de soberania, nas suas relações recíprocas e no exercício de funções, respeitam a separação e a interdependência de poderes, nos termos da Constituição” (CRCV, Artigo 118º). Ora, se a partidarização permear os órgãos de soberania, no seu modo “confluência”, por exemplo, essa fórmula é automaticamente aviltada, a despeito de existir ou não choques entre os poderes.
Em Cabo Verde, não se vê choques, o que é bom, mas tem várias razões. Por exemplo, aqui no Brasil, o aviltamento, devido a partidarização de algumas decisões, principalmente judiciais, acontece por choques. Isso é cada vez mais frequente, os casos recentes e enigmáticos que podemos ilustrar são os que envolveram o lava-jato, com destaque para o ex-presidente Lula, vilão e herói da história. Já no nosso Brasilin o aviltamento é pela confluência.
Autonomia e neutralidade das instituições
Não importa, ambos ameaçam a República. Mais do que no presidencialismo, onde a figura do Chefe de Estado e de Governo se fundem, no semipresidencialismo, nosso caso, o distanciamento político e a neutralidade partidária são imperativos para a preservação dessa fórmula constitucional.
Para testar a confluência, basta responder: até onde vai a separação de poderes? Quão o nosso sistema de governo proporciona isso ou até que ponto o jogo político garante isso? Pode-se dizer que os tribunais e órgãos importantes como a Procuradoria da República têm estado imunes ao câncer de partidarização que vem corroendo a nossa República? Onde começa e termina o Executivo e o Legislativo? Quem é quem? Quem legisla para quem? Pode-se defender dretu os direitos e a casta ao mesmo tempo?
É possível ser árbitro devendo favores eleitorais ao partido que elege? Podem até dizer que sim, afinal, não estamos vivendo uma ditadura, mas, Cabo Verde não avançará além do que já galgou enquanto essas confluências danosas não forem ceifadas.
Os órgãos de soberania precisam de um maior distanciamento partidário nas suas atuações. Na prática, isso significa não permitir o uso e abuso do Estado para atender interesses que não sejam republicanos.
Para isso, autonomia e neutralidade das instituições, bem como do seu quadro técnico, são fundamentais. E como conseguir tudo isso? Precisamos de uma terceira força política, credível e pungente, que equilibre o poder e lute para isso, a hegemonia bipartidária já provou que não importa com neutralidades e autonomias.
É latente o padecimento resultante do estado confortável de achar que o maior resultado político é digladiar-se pelo poder, arregimentar a massa para lutas partidárias e comemorar o troféu eleitoral.
Precisamos urgentemente de educação cidadã e política em Cabo Verde, a começar pelos políticos. Precisamos falar mais da nossa Constituição, melhor, tê-la como base em tudo no governo da polis. Caso contrário, ressuscitaremos uma espécie de estalinismo – L’état, c’est moi, “o Estado sou eu”, que a nossa moda seria “o partido é a República” ou “o governo, somos nós, a casta”.
A constante sobreposição de espaços e de atores é clara, e isso deve-se primeiramente à partidarização, que impregnou nas relações públicas, com consequências delirantes no privado (é pai contra filho, mulher contra marido; vizinho contra vizinho, PAICV contra MPD, Porto contra Benfica).
Partidarização, a pior praga
Daí a urgência de despartidarizar não só as eleições presidenciais, mas toda a teia tecida há décadas para que um ou outro partido perpetuem no poder. A pior praga que contaminou Cabo Verde pós-partido único foi a partidarização.
Todas essas mazelas, que precisam de podas urgentes, devem também em grande medida a cristalização da hegemonia bipartidária, que caminha pari passu com o partidarismo. Há uma dialética nesses dois fenômenos.
Hoje, nos meandros do jogo do poder, a lógica da República e da democracia foi invertida em medidas preocupantes. Não é a República, com as suas instituições, e o povo que têm que servir os partidos ou os políticos, são estes que devem servir aqueles. Perdemos o legado bem cedo:
Em 1975, nós saímos de uma oligarquia de poder, onde tínhamos atores como colonos, morgados, pequena burguesia, para começarmos a jornada que fizemos até aqui. Percebe-se que politicamente, Cabo Verde literalmente nasce com partido, apesar dos pesares, mas, partido não era uma ferramenta de escalada ao poder, antes, um instrumento da revolução, ou seja, de devolução de poder ao povo.
Por isso que não podemos confundir PAICV com PAIGC, o primeiro é um partido, o segundo é maior, é um legado suprapartidário. A despeito da base ideológica e contexto histórico peculiar, Cabral concebia e bem “partido” como “instrumento que o nosso povo criou para a conquista da sua liberdade e para a construção do seu progresso” (Unidade e Luta, pág. 65).
E hoje, que tipo de instrumento os partidos se transformaram? Com a abertura política, os partidos logo perderam de vista a função essencialmente democrática e nacionalista. Passaram a ser antes um meio de oportunidades e de ascensão, pior ainda, de divisão. Foi cedo demais o finka pé do Príncipe de Maquiavel em Cabo Verde. É na unidade e luta que nascemos, é da exploração do “partido colonial” que saímos.
Os deslizes mostram que com o desvirtuamento de percurso, consequentemente, com a cultura política reinante, os partidos do arco do poder transformaram-se em monstros hobbesianos que rompem barreiras inclusive democráticas e constitucionais para atingirem seus interesses, não poucas vezes, partidarizando cargos públicos, negociando favores, mandando, desmandando, punindo vozes dissonantes com a máquina pública, e pior, conseguem, pela confluência, benesses dos órgãos de soberania, completamente livres e que deveriam impor-lhes limites constitucionais.
Sendo assim, por que despartidarizar a República de Cabo Verde, além da Presidência?
Primeiro, despartidarizar não se trata de esvaziamento ou eliminação de partidos, estes sem os quais Cabo Verde não existiria. Pelo contrário, são vitais para democracia.
Mas, já disse e repito “se por um lado, PAICV e MPD não podem morrer, por outro, eles não devem matar a nossa democracia, o que vem acontecendo com a concentração de poder, mesmo que isso se dê pela via da alternância legal”.
Segundo, despartidarizar não é um slogan de campanha, como aconteceu em 2016.
Portanto, despartidarizar é a fluência democrática e não a confluência oligárquica. É o floreio e empowerment do povo, quem os partidos devem representar e servir. É desconstruir o compromisso do poder pelo poder. É tratamento igualitário, a despeito da bandeira política. E por fim, despartidarizar é “separação e a interdependência de poderes”, uma atuação equilibrada de todos os órgãos de soberania, não o poderio de MPD e PAICV. Então, por que despartidarizar?
*Cabo-verdiano e professor universitário, radicado no Brasil (cvmilton@hotmail.com)
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 721, de 24 de Agosto de 2021