A morosidade processual nos casos de Violência Baseada no Género (VBG) tem condicionado a vida das vítimas. Mais de dois mil processos encontram-se pendentes nos tribunais, contrariando a lei, limitando a vida de vítimas e congestionando recursos de instituições que trabalham com a problemática, nomeadamente o ICIEG que vê-se obrigada a arcar com o agravamento dos custos dessa morosidade, principalmente no que tange ao funcionamento das casas de abrigo.
A chamada lei da VBG prevê que casos de violência do tipo sejam resolvidos com urgência e prioridade. Contudo, na prática, não é o que tem estado a acontecer nos casos entregues aos tribunais. Mais de dois mil processos aguardam por sentença, o que condiciona a vida das vítimas.
Vicenta Fernandes, presidente da Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Género (ACLCVBG), entende que a lei, de dez anos, não está a ser cumprida e nem os prazos respeitados pelos tribunais e, em consequência, cita retrocessos nesta luta.
“Esta morosidade desmotiva a vítima e desencoraja mais pessoas a denunciarem os casos de violência. A demora motiva as pessoas a não acreditarem no funcionamento da justiça no país.
Temos casos pendentes nos tribunais de 2014, ainda”, refere a presidente da ACLCVBG, citando a Auditoria Participativa sobre os 10 anos da lei da VBG que aponta para algumas dificuldades da lei.
Aumento “não oficial” de VBG
Isto, num momento em que se regista, segundo Vicenta Fernandes, um aumento “não oficial” de casos de VBG de vítimas que ao invés de procurar as autoridades procuram as associações, por não acreditarem na justiça.
“Sentimos um aumento de casos de VBG de vítimas que procuram a associação, mas muitas vezes não querem denunciar. Elas solicitam apoio psicológico e orientação e nós, dentro das nossas possibilidades, fazemos de tudo para ajudar”, avança ao A NAÇÃO.
É neste sentido que a ACLCVBG, enquanto sociedade civil e actores no terreno no trabalho com as vítimas, reivindica uma resposta mais célere às vítimas e mais recursos para as ONGs que trabalham a temática.
ICIEG pede mais juízes especializados em VBG
Por sua vez, Rosana Almeida, presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG), entende que a lei da VBG é “excelente”, mas reconhece não ser suficiente.
“Há alguns passos que não estão a ser dados, como poderíamos estar a dar. Temos também uma sociedade civil que cada vez exige de nós aquilo que está estipulado na lei. Desde logo, a celeridade no atendimento”, entende.
O ICIEG, segundo a sua presidente, tem solicitado o aumento de juízes especializados em VBG, dado a insuficiência de profissionais especializados, o que têm servido de desculpas dos tribunais nos casos de morosidade, alegando falta de pessoal para dar seguimento nos processos.
A solicitação d o ICIEG, junto do Ministério da Justiça, é de unir num único processo também a separação de bens, parentalidade e que se decida “rapidamente” as pendências existentes, para que a família possa seguir em frente, sem pendências judiciais e nem “vidas suspensas”.
Ministra Joana Rosa promete soluções
A ministra da Justiça, Joana Rosa, avança, entretanto, que estará em contacto com os Conselhos Superiores para discutir a necessidade de medidas legislativas que possam “resolver” algumas situações sobre a criação de juízes especializados ou desdobramento de mais juízes que possam trabalhar e dar vazão aos casos pendentes.
Para já, segundo Joana Rosa, trabalha-se na reorganização e implementação do Fundo de Apoio às Vítimas, já aprovado no regulamento do Cofre de Justiça, no sentido de satisfazer as exigências das vítimas, da sociedade e do próprio ICIEG no apoio às vítimas de VBG e de outros crimes.
Morosidade agrava custos nas casas de abrigo
As consequências da morosidade processual nos casos de VBG são sentidas também pelas instituições de apoio às vítimas.
No caso do ICIEG, as casas de abrigo, que a instituição mantém em três ilhas do país, ressentem da demora na resolução de casos.
Criada para casos m ais g raves em que há ameaças à integridade física, intimidações e risco de morte, as “casas de apoio” servem, temporariamente, de proteção à vítima até que as autoridades façam a acareação do caso.
Entretanto, a morosidade da justiça, por vezes, prolonga a estadia nas casas.
“Nós, quando a colhemos estas mulheres, tendo em conta a dificuldade que temos em mantê-las com os familiares por muito tempo nas casas de abrigo por implicar gastos, significa que os tribunais, as procuradorias devem ser céleres nas respostas para resolvermos os problemas das vítimas e para que possamos abrir as portas para outras eventuais vítimas”, enfatiza Rosana Almeida.
Para além do atendimento psicológico e social, as casas de abrigo proporcionam segurança, transporte e alimentação às vítimas e aos familiares, uma logística que segundo Adalberto Varela, coordenador da VBG no ICIEG é “enorme” para uma “instituição com poucos recursos”.
“O ICIEG tem tentado fazer a sua parte de acordo com a lei e dar o acolhimento necessário para as vítimas, mas para isso temos estado a procurar parceiros e conseguido respostas positivas, não em todas as ilhas, mas em alguns espaços de acolhimentos”, faz saber Adalberto Varela.
Este responsável avança, entretanto, que as casas de abrigo estão com um “número baixo” de famílias, o que significa que “não há aumento” de casos graves de Violência Baseada no Género.
Os dados oficiais apontam para uma queda de 90% na taxa de feminicídio, muito devido às políticas de proteção à vítima, sendo que hoje, em Cabo Verde uma em cada 10 mulheres é vítima de VBG. Dados do III inquérito Demográfico e de Saúde Reprodutiva mostram que 48.8% dos agressores são ex-maridos ou ex-companheiros.
Em todo o país, as vítimas de VBG são atendidas por técnicos que segundo Adalberto Varela dão resposta às necessidades das vítimas em relação ao atendimento psicológico, jurídico e social.
Trabalhar masculinidades no combate à VBG
Se a Violência Baseada no Género é hoje um problema social gritante no mundo, muito se deve à cultura machista, como defende o presidente da Associação de homens contra a VBG – Laço Branco, Paulino Moniz.
Este responsável entende ser necessário desconstruir o modelo de homem que a sociedade criou e ajudar cada rapaz e homem a entender a violência de género, no sentido de mudar atitudes e comportamentos na construção de “novas formas de masculinidades”.
“A sociedade criou a ideia de que ‘homem que é homem’ deve beber, ter muitas mulheres, não chorar, o que faz aumentar a violência de género”, entende Paulino Moniz.
Assim, segundo Moniz, a partir do momento que o homem trabalhar a sua masculinidade e entender as vertentes da violência de género, será um passo para a diminuição da VBG e encarar questões como a paternidade e outras que envolvem o género.
O apelo é para a educação de meninos e rapazes no sentido de terem uma masculinidade que não coloque em causa os direitos de outras pessoas.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 727, de 05 de Agosto de 2021