Outrora actividade praticada por mulheres, na cidade da Praia, a venda de peixe pelos bairros tem atraído cada vez mais jovens do sexo masculino. Alcides Freire, que se encontra no ramo há mais de 25 anos, tem sido um inspirador para os iniciantes com a sua história de “escolha certa”, na hora de enfrentar o desemprego.
Todos os dias, bem antes das 7 horas, as peixeiras chegam ao cais da Praia para se abastecerem. De seguida, saem de banheira à cabeça, de bairro em bairro, atrás do “pão para os filhos”.
A esperança é que por volta das 15 horas, o mais tardar, consigam vender tudo, a tempo de regressarem a casa para a lida doméstica, cuidar dos filhos e pensar no dia de amanhã que não será tão diferente do de hoje.
Se há algum tempo esta actividade era caracterizada como sendo um domínio de mulheres, hoje em dia, as coisas já não são como no passado.
Homens passam a vender peixe
A cada novo dia há homens, das mais diversas idades, a vender peixe, em pregão pelos bairros da capital. É a forma que encontraram para driblar o desemprego e não só.
É o caso de Admilson de Pina, peixeiro há oito anos, depois de algum tempo desempregado.
“Estava desempregado, sem nada para fazer, e tinha deixado a vida de ‘traquinices’.
Com receio de regressar àquela vida, decidi vender peixe, uma forma de ocupar o tempo livre e conseguir algum dinheiro para as minhas necessidades no final do dia”, conta ao A NAÇÃO.
Admilson diz que no início viveu na pele alguma discriminação por parte das pessoas que não confiavam em jovens como ele, achando que eram “thugs” disfarçados de peixeiros.
“Eu ouvia muito isso e por vezes sentia-me mal. Mas não deixei-me abalar porque sabia qual era a minha intenção”, acrescenta.
Hoje, como realça, o quadro é outro, diferente para melhor: “As pessoas passaram a entender a nossa situação e a vida tem sido mais fácil. Temos conseguido mais clientes, pessoas que nos incentivam nesta escolha, uma nova oportunidade para a nossa vida”.
Superação
Para Admilson, que deambula pelos bairros da Fazenda, Achadinha, Craveiro Lopes, entre outros, na venda de atum, estar de banheira à cabeça não é motivo de vergonha, mas de orgulho, já que se trata de um trabalho tão digno como outro qualquer.
“Vergonha é roubar, é matar, é ir para a cadeia…”, desabafa, pois, sem o 12º ano de escolaridade, que não conseguiu completar, tinha poucas chances de sobreviver.
“O importante é estar a fazer alguma coisa ao invés de estarmos sentados em casa ou na rua correndo o risco de cometer crimes”.
“O pior é estar sem alternativas”
Emanuel Ribeiro é um outro caso, de quem encontrou na venda de peixe, de banheira à cabeça, uma forma de sobreviver.
“Fiz algumas formações profissionais e mesmo assim não consegui nenhum emprego.
Sem alternativas, e sentindo-me vulnerável, tentado a entrar em maus caminhos, decidi aceitar o conselho e o convite de um amigo que já tinha estado nesta área e decidi ser mais um jovem que procura a vida no Cais da Praia”, conta o jovem natural de Ponta d’Água, peixeiro há dois anos.
Hoje, Emanuel diz que o seu melhor amigo tem sido a sua banheira e o seu balde que lhe permitiu uma vida melhor do que antes.
“É um desafio e estou a aprender a cada dia que não importa o curso ou área de formação, o importante é estar a fazer alguma coisa que nos dê rendimentos”, diz o jovem reforçando que “o pior é estar sem alternativas”.
Incentivo dos “veteranos”
Admilson e Emanuel são apenas exemplos de muitos jovens da Praia, e não só, formados ou não, e que por falta de outras opções, escolheram a venda de peixe como forma de encarar o desemprego e o futuro.
Nesta escolha ambos referem que contaram com o incentivo dos “veteranos”, homens e mulheres que os receberam de braços abertos, sentimento que procuram partilhar com os mais novos.
“Aos novos, que chegam no princípio cheios de vergonha, recebemos-lhes de bom coração, porque acreditamos que estamos a lutar pela mesma causa.
Se for para estarem a roubar ou a praticar outros crimes, que venham para o cais e trabalhem licitamente porque o mar é grande e acolhedor, de certeza, que não faltará sustento para todos nós”, disse ao A NAÇÃO uma das peixeiras do cais da Praia, conhecida por Dulce.
Peixeiro Alcides Freire: “Sinto-me realizado com o que faço”
Alcides Freire é natural de Mato Afonso, interior do concelho de São Domingos, e há 25 anos que vai ao Cais da Praia comprar peixe para revender.
“Quando resolvi ser peixeiro, éramos apenas quatro homens, entre centenas de mulheres no cais”, relembra, sem esquecer também das discriminações sofridas.
“Os rapazes, sobretudo da minha zona, faziam chacota da minha escolha. Na altura, eu ganhava a vida como agricultor e recebia 2 mil escudos por dia. Quando comecei a vender peixe, a convite do meu irmão mais velho, vi que o lucro era maior e não pensei duas vezes”, recorda Alcides, garantindo que nunca se arrependeu da escolha.
“Com a venda de peixe, consegui criar os meus filhos, e posso dizer que passei de coitado para aquele que tem uma vida estável.
Hoje sou chefe de família, tenho casa própria e três viaturas, todas adquiridas com dinheiro da venda de peixe”, acrescenta.
Inspiração para os mais jovens
Pelas suas conquistas, este veterano diz que não consegue ver-se noutra actividade que não esta. “Sinto-me realizado com o que faço”, afirma, orgulhoso, até porque considera que tem servido de modelo a vários jovens iniciantes.
“Há três anos que temos registado cada vez mais jovens à procura desta actividade.
Quando chegam, dou-lhes todo o ‘moral’, isto é, para pegarem com afinco, que banheira de peixe à cabeça não é crime, pelo contrário, devemos sentir-nos orgulhosos de ao fim de cada dia levar para casa o fruto do nosso trabalho”, salienta.
“Os mais jovens entram no carro comigo e ajudam-me a vender nas voltas que dou.
No final do dia, levam dinheiro e peixe para casa. Isto desde que comecei a vender no carro.
Os com mais idade recebem dos pescadores, armadores e peixeiras produtos para revenderem e tirarem o seu lucro”, conta.
“O lucro chega a ser melhor do que se pensa”
Alcides diz que, por vezes, o lucro chega a ser melhor do que se pensa.
“Se um peixeiro conseguir fazer duas voltas, leva para casa muito mais do que 800 ou mil escudos de ganho, valor este que os trabalhadores da construção civil ganham por dia. Isto sem contar que trabalham menos, já que terminam, quase sempre, antes das 15 horas, e sobra ainda tempo para descansar e fazer outras coisas”, explica.
Para este cabo-verdiano, o mar tem sido a solução para muitas famílias vulneráveis, pelo que a tendência é haver cada vez mais jovens “peixeiros” que, aos poucos, vão tomando coragem para enfrentar a vida, com decisões certas, como a que tomou há 25 anos e nunca se arrependeu.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 726, de 29 de Julho de 2021