Por: Nataniel Vicente Barbosa e Silva
“Djonsa Bi” conta na primeira pessoa a sua experiência de guerra nas matas de Angola como combatente nas fileiras das tropas portuguesas (1971 a 1974) contra as forças do exército angolano. Uma guerra controversa, mal preparada, desmotivada e condenada por vários sectores da sociedade civil, nomeadamente: igreja católica, movimentos estudantis associações sindicais etc. Um conflito que deixara milhares de vidas ceifadas, algumas das quais em plena flor de idade e muitos sonhos por realizar. Reservamos essa história para mais a frente neste trabalho.
Quem é «Djonsa Bi»
João Vaz Amarante, ou “Djonsa Bi” como é popularmente conhecido na cidade de Mangui /Tarrafal onde nasceu a 05 de Janeiro de 1950. O 5º filho de um modesto casal: Eugénio Vaz Miranda e de Águeda Vaz Amarante. Dos 4 irmãos, apenas um se encontra vivo, o mais novo de todos.
Infância
“Djonsa d,Alda” como era então conhecido, passou toda a sua infância em Ponta Lagoa, lugar onde nasceu. Aos 7 anos de idade conheceu os banquinhos da escola de Mangui estudando 1ª classe com a professora D.ª Alice, natural de São Vicente. No ano seguinte estuda a 2ª, com o professor, Paulino, também da ilha de São Vicente e 3ª classe volta de novo a ter como professora a Sr.ª Dnª Alice, concluindo a 4ª classe, com o Sr. Tunas. Sublinha: « Studaba mas ki 4ª classe na kel tenpu ka era pa tudu mininu. »
Fase da adolescência
Ora, a fase da adolescência não foi diferente a dos outros colegas do seu tempo onde o principal entretenimento era jogos de bola meias, como era designado.
Juventude
Confessa: Nha juventude foi muderadu. Mas, N tinha txeus pikenas, N ba pa tropa na Portugal, fazi sirvisu militar. Dipoz N ba finda na Angola, na guerra.
Primeira experiência de trabalho
“Mi N kumesa trabadja sedu, ku 13 anus di idade. Ku 15 dja N kumesa ta ganha algun trokinhu na peska. “
Serviço militar
Ora, o serviço militar era obrigatório, um destino que dificilmente podia um mancebo escapar na altura. Assim, aos 21 anos de idade, foi chamado à tropa. Fazer o serviço militar nessa época era sinónimo de fazer guerra: A tristemente célebre “guerra colonial” que poucos rapazes dessa idade conseguiram escapar. Uma guerra obrigatória contra os próprios irmãos de sangue. Quem partia, deixava em casa choros e lamentos porque realmente era uma partida com pouca hipótese de regresso.
Quem tivera o triste destino de partir para essa guerra e que tivera a bendita sorte de regressar à casa com vida só trazia fardas no corpo e traumas na alma. Muitos destes vivem hoje em condições extremamente difíceis e, com algumas sequelas psicológicas. Os mais ambiciosos conseguiram refazer a sua vida. Não são poucos na verdade os cabo-verdianos que foram forçados a pegar em armas deixando pai e mãe em desespero vendo os seus filhos partirem para uma missão de enorme risco. Há poucos anos as autoridades portuguesas falaram sobre a eventualidade de virem a ser contemplados com alguma pensão de sobrevivência, mas, tal promessa não passou de letra morta uma vez que jamais falaram sobre o assunto. Hoje, infelizmente, com o cenário da pandemia que assola o mundo torna-se ainda cada vez mais distante a concretização desse compromisso e somos tentados a citar o pensador Dante Alighieri
–” Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança”.
Ora, dando fé ao adágio popular: “a esperança é a ultima a morrer.” Nessa expectativa, muitos alimentam ainda a esperança que poderão um dia virem a ser compensados.
Embarque para Portugal
Vamos então viajar no tempo com o “Djonsa d,Alda”.
“Nos nu baba suma galinha na buru pé maradu kabesa pa baxu” Ironiza o entrevistado.
Em companhia de outros colegas de Barlavento e Sotavento embarca então para Portugal no paquete “Niassa. Segue nessa primeira leva cerca de 1 800 mancebos Após10 dias de viagem, em 20 de Abril de 1971, o “Niassa” ancora no porto de Cascais-Portugal. Uma parte destes em que ele próprio estava incluido segue para Viana do Castelo onde permanece por um período de 5 meses e 5 dias em instrução.
Embarque para Angola
Chega o dia decisivo: 17 de Novembro de 1971 o já então, soldado nº 801/836/71: João Vaz Amarante e mais colegas de viagem deixam Portugal e rumam para província de Angola, no paquete “Vera Cruz.” Desta feita, já não como galinha de pés amarrados, como dissera anteriormente, mas, consciente de que iam (ele e colegas) para uma missão extremamente difícil. Aquartelados num lugar chamado “Chima-Congo”, próximo da fronteira com Brazzaville, num mato, não muito longe da cidade. Esboça um sorriso tímido, conta: «Primeru dia di matu tudu e stranhu, bu ta odja bitxus di tudu spesi, mas ez ta odjau ez ta kori”. Adianta que nunca tiveram dias assim tão complicados como antes da sua partida imaginava, mas, que, entretanto, os perigos espreitava-os a cada instante. Destaca: As vezis inimigus ta disfarsaba a pontu di ben kumi ku nos na meza na kuartel, ta kumi ta bebi so bu ta ben da konta dipoz». Coisas da guerra.
Um acidente de carro sobre uma ponte
Ora, o que mais marcou o “ Donsa d,Alda” nessa guerra foi o que ele conta: “nu staba nun onimogu(carro militar) xeiu di tropas na travesa un ponti di ripenti karu dispista ba kai dentu riu. Acrescenta: “viatura era konduzidu pa Gil mekaniku. (Gil mecânico, pessoa conhecida da nossa praça) sublinha: mi kol nu luta djuntu na matu di Angola, el era kondutor di tropa.” “N ta lenbra inda di uns 5 rapaziz di kadjeta ( Calheta São Migue), Salvador, konxedu na tropa pa Salvador “giganti adamastor” pur kauza di si tamanhu (2 metros di altura). Kelotu, era Salvador Furtado, ki era barberu na tropa, un individu mutu gentil, senpri ki ben Tarrafal ta ben djoben na kaza. Kelotu e Salvador piskador di Benexa. Kezotus dos: um txomaba Toto, kelotu: Mimozu. (Colegas de arma).
Fim do tempo do serviço militar
Após 28 meses do serviço militar nas matas de Angola, viaja em companhia de outros colegas num avião civil Boeing 207 rumo a Portugal. Recorda: “foi: “24 di Abril di 1974 nun dia di seu (céu) nubladu dipoz di 8 oras di viagi nu txiga Portugal” .Entretanto, permanece ele e os colegas em Lisboa cerca de 6 dias em “comes & bebes”.
De Portugal a Cabo Verde
Chega o dia que tanto sonhava; No mesmo avião viaja toda a rapaziada (colegas de arma). Aterra o aparelho no Aeroporto Internacional do Sal por volta do meio-dia. No dia seguinte viajam então para a Cidade da Praia.
Chegada a casa
Naturalmente não há alegria maior para um pai ou uma mãe receber um filho são e salvo depois de tormenta de uma guerra. A ausência de 2 anos e tal parecia uma eternidade. “Djonsa d,Alda” regressa finalmente a casa, para alegria de “Nha Alda” (mãe) À sua espera estava toda família e vizinhança. Conta: “Era 10 ora di noti kantu N txiga kaza.”
Entrega de fardas
Oito dias depois foi fazer a entrega de fardas no “Quartel Jaime Mota” na Praia.
Nova vida em Cabo Verde
Passado algum tempo encontra o primeiro trabalho como capataz num serviço de extracção de areia para calcetamento. O salário embora insignificante, mas dava para ajudar os pais na manutenção da casa.
Casamento
Casamento como se sabe, é o sonho natural de qualquer jovem. Assim aos 25 anos de idade, isto é, um ano depois do seu regresso da tropa realiza um dos seus velhos sonhos: Casamento. Avança: “ N tinha txeus pikenas kantu N ben di tropa, mas, djan tinha kunprimisu di kazamentu antis di N ba tropa ku kel ki N ben kaza kol.”
A cerimónia aconteceu, pois, em 15 de Novembro de 1975, na Igreja Matriz de Santo Amaro Abade. Ele, então na casa dos 25 como já referimos, e ela, na casa dos 22, juntos, trabalharam e constituíram família: 6 filhos. Infelizmente, 3 dos quais faleceram de tenra idade.
« Djonsa Bi» ingressa na Polícia
Djonsa passa a ser conhecido depois de casamento por “Djonsa Bi” (Bi, nominho da mulher). Preenchidos os requisitos que na altura eram exigidos, vai à Praia para uma formação de 3 meses. Findo a escola da polícia, foi destacado para São Vicente. Recorda: “Foi 20 di Janeru di 1978 kuandu N kumesa trabadja. Destaca: “Vida difícil na São Vicente, kustus di vida mutu ilevadu leban manda buska família”. (Mulher e filhos). Trabalha, entretanto, nessa ilha 5 anos e 4 meses. Pede a sua desligação da policia, por motivos referidos, regressa com família toda à sua ilha e trabalha na pesca.
Morte do pai
O pai que já passava algum tempo acamado viria então a falecer em 1979.
Vida depois da polícia A vida de Djonsa depois da policia foi toda ela devotada ao mar. Profissão que só abandonou por razões de saúde aos 52 anos de idade. «Mi N ta piskaba mudjer ta bendeba pexi. O mais curioso: “Mudjer ta kunprababa pexi na mi e ta bendeba 3 ou 4 bez mas caru na Praia”.
Morte da mãe
Ora, em Setembro de 1986 viria falecer a mãe, isto e, 7 anos depois do marido.
Morte da esposa
A morte da mulher, aos 60 anos de idade, em 13.08.2013 depois de 38 anos de casados foi sem dúvida uma separação que o tem causado um certo vazio na vida. Acentua: “Desdi ez data mi N ka konsigui organiza nha vida.”
Djonsa Bi vive hoje com os filhos em sua casa própria, com alguns problemas de saúde, mas, vai esperando pelos dias melhores. Agradecimentos ao meu amigo de infância. Votos de muita saúde.
Tarrafal, 16 de Abril de 2021
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 720, de 17 de Junho de 2021