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Diáspora

Cabo-Verdiana, activista e promotora sócio-cultural na Holanda, Any Delgado lamenta: “A sonante voz da Diáspora tem sido intencionalmente abafada”

Nascida em São Vicente (Cabo Verde), viveu em Portugal e assentou arraias na Holanda (a “Terra das Túlipas”!), de onde divulga, o mais que pode, a Cultura das Ilhas e da Diáspora, por esta Aldeia Global fora. “Mulher sem filtros”, mas, irreverente o quanto baste, reclama que a voz dos artistas “precisa ser ouvida”, denuncia a falta de projectos, condena “a ideia de que a Cultura é para as élites académicas, enquanto , o Povo é distraído com festas, festinhas e festivais”, revelando estar “incrédula” – que nem São Tomé! -, com as anunciadas acções para os próximos anos. De sua graça Ana Maria Vaz Delgado – “Any” para amigos de peito -, como é do seu timbre e tradição, não esconde a faca ao borrego: “A sonante voz da Diáspora tem sido intencionalmente abafada”.

A NAÇÃO – O que é isso de Projecto “Orgulho Nacional”?
Ana Maria “Any” Delgado – “Orgulho Nacional” foi criado em 2018, como ferramenta de apoio à Candidatura da  Morna a Património Imaterial da Humanidade. No início, era a única a participar, activamente, mas, desde o início desse ano, o Projecto foi registado e com um conceito definido.  Somos três membros: eu, que escrevo e pesquiso sobre a História e a Cultura de Cabo Verde; Valdemar Gomes, residente em Lisboa (Portugal), que administra as redes sociais e filtra as informações e mensagens dos seguidores; e Cristihan Gutterre, residente nos Estados Unidos da América, responsável pela Imagem e pela parte Comercial. A Sede é aqui, na Holanda.

Continua activo ou já foi desmantelado, atendendo a que foi atingido o objectivo de divulgar e promover a Candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade, pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura)?

O Projecto irá sempre estar activo. A Página foi criada como Plataforma de Apoio à Candidatura da Morna na UNESCO, mas, após a elevação, outros caminhos abriram-se.

 Presentemente, qual é o Vosso foco principal?
Uma das maiores preocupações é a perda de Identidade Cultural nesta nova geração. Ao escrever sobre as nossas raízes e sobre aqueles que marcaram e fizeram História, estamos a promover o interesse e a curiosidade na nossa Cultura. Isso tudo, tendo como base a Música de Cabo Verde, nomeadamente, a Morna.

“Só o reconhecimento do Povo…”

Em concreto, na Sua avaliação, o que a Sociedade Civil e as Autoridades Cabo-Verdianas devem fazer para que a Morna continue no pedestal para onde foi alçado?
É imperativo que haja mais divulgação e promoção da Morna na Comunicação Social. Seria bom que fossem criados organismos que fomentassem estudos científicos, técnicos e artísticos, assim como metodologias de Investigação, para uma eficaz preservação das Mornas que não estão pautadas, ou, ainda,  só existentes na Tradição Oral.

 O Vosso engajamento na empreitada para elevar a Morna a Património Imaterial da Humanidade foi reconhecido?
Não! Nunca houve qualquer reconhecimento, da parte de quaisquer entidades públicas,  sobre a mobilização à causa e os vários eventos que promovemos durante a Candidatura da Morna. O reconhecimento e o respeito veio do Povo cabo-verdiano e…só isso interessa.

 Se fossem começar hoje, fariam o mesmo percurso?
Não mudaria uma única vírgula! O que ganhei a nível de conhecimentos, desde 2018, tem sido gratificante. Aprendi que com o sangue não se brinca! Podemos viver até noutro Planeta, mas, a Cabo-Verdianidade está sempre presente. É aquilo que nos identifica como indivíduos;  é a nossa maior herança.

 Moldagem da realidade

Nesta maré pandémica, como tem sido o vosso trabalho?
Igual…até facilitou a leitura e a escrita diária, na Página. Os eventos pararam, antes do COVID-19. Nem sempre é fácil, fazer omeletes sem ovos…embora eu tenha conseguido fazer alguns.

 Como avalia o papel e a aplicacão das (novas) Tecnologias de Informação e Comunicacionais na acção do “Orgulho Nacional”?
Nas adversidades, enquanto uns choram, outros vendem lenços… O Mundo mudou e foi preciso reinventarmo-nos. As “lives” ajudaram imenso a aguentar a mudança.

Embora não dispondo da mágica bolinha de cristal, como augura que seja a Sociedade Global pós-COVID-19?
Será diferente! Os impactos da Pandemia já se sentem nas nossas vidas, com mudanças que vão para além do isolamento social. Foram transformações que devem moldar a realidade à nossa volta, nos próximos anos: teletrabalho, compras ‘online’, Educação à distância, desemprego, o despertar para as doenças do foro psicológico, entre divesas outras.

“Diáspora precisa ser ouvida!”

Está devidamente integrada na Sociedade Holandesa?
Sim!, estou. Sempre vivi na Europa. Embora os nórdicos sejam menos emotivos e mais práticos, as diferenças sociais não são tão abismais.

Quais os principais constrangimentos por que passam os cabo-verdianos na Holanda?
No caso da Holanda, as duas maiores são: a Língua e o Clima.

Por que elege esses dois?
Na verdade, o caboverdiano é um Povo “camaleão”…ajusta-se e adapta-se ao ambiente ou País onde está. Adapta-se tão bem, que não é preciso muito tempo para integrar-se e destacar-se em qualquer área que esteja.

Tem acompanhado a Actividade Cultural cabo-verdiana (Nas Ilhas e na Diáspora)?
Sim, sempre! A Diáspora tem uma voz sonante que é, intencionalmente, abafada. Essa voz precisa ser ouvida. Estou sempre a par de actividades, artistas, músicos, etc…que vivem por toda a Diáspora e tento divulgar o mais que posso.

 O que está faltando\O que se deve mudar (Na Política Cultura\Porquê e para quê)?
Faltam projectos. Parar com a ideia que a Cultura é para as élites académicas, enquanto , o Povo é distraído com festas, festinhas e festivais. Criar escolas de Música adequadas, criar protocolos com residências artísticas e curadorias nos países cuja Comunidade caboverdiana tenha maior expressão. Falta criar um Museu da Música e do Folclore Cabo-Verdianos… falta tanta coisa, para fazer… Precisamos de uma figura de proa que sinta o povo e que o represente. Vamos ver como correm estes próximos anos. Garantiram-me que vai ser diferente, mas, eu estou como São Tomé – o incrédulo Apóstolo de Jesus Cristo….

“Casmurrice e persistência”

Presentemente, qual a sua efectiva ligação com Cabo Verde?
Uma só…

Qual?
Sou cabo-verdiana. Uma mulher sem filtros e…100% honesta.

 Em concreto, que projectos tem para Cabo Verde?
Tenho vários projectos alinhavados; e irei concretizá-los. Tenho promovido vários artistas cabo-verdianos, residentes no País e na Diáspora. Se eu fosse ficar à espera de apoios, teria desistido há muito tempo. Valha-me a casmurrice e a persistência…

 …e onde entra a Bienal da Arte, que, ao que a  A NAÇÃO sabe, já está em gestação?
Ah!!!, sim. É um Projecto, além da Página do “Orgulho Nacional”,  que já estou a estabelecer parcerias…

 Qual é a motivação?
Aproximar a Diáspora a Cabo Verde, através da Arte. Vou procurar apoios  e patrocinadores para efectivá-la. Cabo Verde é um poço de talentos. Devemos valorizar o que é nosso e lembrarmos que somos: Dez Ilhas, uma Diáspora- Uma só Nação!

 “Any” canta?
Eu nāo canto; eu ENcanto!

Como assim?
Nos concertos que promovo, conduzo a audiência a uma viagem no tempo, dentro do tema. Faço o mesmo que na Página do “Facebook”: explico as letras, o contexto histórico e conto algumas “stórias” e curiosidades, em torno de uma Morna ou sobre o compositor. Eu uso as actuações como exemplo do que estou a explicar.  Por incrível que pareça, ouvem-se as moscas a voarem na sala; o público fica atento ao que explico. Mas, cantar, ainda, só no chuveiro.

“Deus fez-me bonita!”

Como foi “parar” à Holanda?
Deus fez-me bonita, mas esqueceu-se de me fazer rica. Concorri a um emprego cá, fui seleccionada e fiquei a trabalhar. Aqui não dão muita importância à idade, mas sim, à experiência e às competências profissionais.

A modos de remate final e porque a conversa já vai longa, que mensagem deixa aos Patrícios no Arquipélago e espalhados pelas Sete Partidas desta nossa Aldeia Global?
Que ao conhecermos a nossa própria Cultura e protegê-la,  preservamos o que somos, as nossas características, a nossa Identidade,  e a nossa Morabeza para as gerações futuras. “Ca bocês tchá morrê folclóre de nôs terra!” .    

   

“Any” Delgado  – “Uma mulher sem filtros”

Ana Maria “Any”  Delgado,  nasceu em casa dos pais, em Bela Vista (na Sóncent!), em Cabo Verde, pelas māos da sua avó materna.

Filha de Faustino Delgado e Emídia Maria Fonseca, é a última de cinco filhos. “Segundo o meu pai, quatro  problemas e uma solução. Ou seja: quatro raparigas e um rapaz. Os meus pais estavam desesperados por terem só filhos feios…nasci e já nāo quiseram ter mais (os meus irmãos recusam a querer ter essa conversa, enfim…)”, conta “Any” Delgado, meio a brincar.

É da praxe que, às senhoras não se perguntam idades, mas “Any” faz questão de “brandir” que tem “49 anos e nove meses”, que, nāo possui licenciatura universitária, mas que,  “pode ser que, aos 50, seja de vez”.

Entrou no Mundo da Música de Cabo Verde, em 2011, quando trabalhou numa “label” angolana, a  LS Music, “onde subi, por mérito, até à Direcção-Executiva”.

“Orgulhosamente māe de qutro filhos lindos”, nos seus tempos livres, lê, escrevo, ouve “muita música e todos os géneros possíveis”.

Adora “perder” numa boa conversa, “daquelas que nunca falta assunto”, mas fala a sério, a brincar, mas nāo brinca com coisas sérias. “Sou rápida nas piadas!”, admite, realçando que desgosta-lhe fazer perder o tempo dos outros, pelo que respeita para ser respeitada.

“Trato a todos da mesma forma. Sou cordial e, naturalmente, simpática. Mas, o reverso em mim, o meu lado lunar, é gélido, áspero e seco. Há quem diga que tenho mau feitio…’but whatever!’”, remarca, garantindo que é “uma mulher sem filtros…100% honesta”.  

 “Sou uma sportinguista ferrenha!”

Gosta de Futebol, “sou sportinguista ferrenha”.

Detesta novelas, pois, irritam-na, solenemente.

“A minha prioridade na vida sāo os meus filhos e a minha restante Família. Nāo há nada acima deles ou que nāo faça por eles”, revela.

É cabo-verdiana de gema, orgulha-se da herança que traz no sangue, mas…Portugal vive no seu coração.

E justifica: “Cresci em Lisboa, desde que tinha 18 meses. Tenho o sotaque e hábitos  de lisboeta,  típica  ‘alfacinha’.  O bom da Emigração e da Integração é isto: o amor por duas bandeiras: a Pátria-Māe e a de Acolhimento”, garantindo que não “é de vaidades, nāo gosto de tirar fotografias e nāo gosto de holofotes”.

“Any” acredita na Lei do Retorno, pelo que, tento sempre ser positiva e praticar o bem. “Faço tudo na vida com paixāo. Só assim faz sentido. Sou perfeccionista. Sou segura de mim. Sei o que quero, e, principalmente, o que nāo quero. Sou casmurra…nāo sei se é um defeito ou qualidade. Vou atrás dos meus objectivos, e, mesmo que caia seis vezes, à sétima levanto-me, enxugo as lágrimas, levanto a cabeça e vou à luta”, auto-define-se, por entre sorrisos.

Mas não fica por aí: “Nāo espero nada dos outros. Confio nas minhas capacidades de conquistar o meu lugar ao sol. Sou de elogiar e criticar no privado. Nāo gosto de gente ‘armada’. Que acham que o dinheiro, ‘status’ ou poder dá-lhes o direito de humilhar  a outrém. Nāo sou de bajulação”, concluindo com essa tirada lapidar: “Un podê atê ser basofa, ma un ta podê que nha basofaria”. 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 719, de 10 de Junho de 2021

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