Por: Aidê Carvalho
Um passeio a pé com destino a uma aldeia quase “fantasma”, Lagoa, no município de Tarrafal de Santiago. Outrora foi vibrante e cheia de vida! Mas, agora, as duas comunidades que compõem a aldeia (Lagoa e Achada Lagoa) estão desertas e desoladas… ou simplesmente esquecidas no tempo. Isso, apesar de estarem situadas entre algumas das sete maravilhas da ilha de Santiago (mesmo no sopé do Parque Natural de Serra Malagueta e a 10 quilómetros da baía do Tarrafal – uma das mais paradisíacas de Cabo Verde).
Encantos que atraem turistas, curiosos e antigos moradores
Mas, Lagoa também tem os seus encantos que atraem turistas, curiosos ou antigos moradores que, de quando em vez, tentam matar as saudades.
Do alto da Serra de Malagueta (que possui ponto mais elevado com 1. 064 m de altitude) o percurso pode ser feito por dois caminhos. A opção fica por conta das pernas de cada um, mas nenhuma trajetória é um conto de fadas.
Na realidade é mais de uma hora a descer e, à medida que a distância se encurtava, a ribeira parece engolir os visitantes dentro das suas majestosas encostas basálticas. O sol, timidamente, espreita entre a névoa que abraça os visitantes e leva-os a descobrir o paraíso entre as ruínas.
A meio do percurso, pode-se encontrar escarpas rochosas que hospedam várias e raras plantas endémicas de grande valor natural, muitas das quais utilizadas na medicina tradicional. Numa das curvas, avista-se a Ribeira de Principal, pertencente ao município de S. Miguel e de onde é natural o bispo D. Teodoro.
Aqui mandam a natureza e a fé humana. Na localidade de Lagoa há pequenas nascentes que constituem uma benção para as poucas pessoas que, “teimosamente”, permanecem na aldeia quase desabitada devido ao seu encravamento.
Fuga dos habitantes e despovoamento
A ausência de acessos, falta de emprego, água potável (corrente), e de outras condições básicas, levaram os moradores a refugiarem-se para as localidades mais próximas, por onde passa uma estrada que as liguem ao mundo.
A maioria refugiou-se na Serra de Malagueta, zona mais próxima, e que serve de fronteira entre os concelhos do Tarrafal, São Miguel e Santa Catarina.
Muitos, principalmente jovens, deslocaram-se para Chão Bom, cidade do Mangue, (Tarrafal), capital do país (Praia) ou emigraram para Europa, com destaque para França. Todos foram atrás e uma vida melhor. Lagoa e Achada Lagoa assistiram à fuga dos seus habitantes há algumas décadas.
Devido ao despovoamento, nos últimos anos, o jardim infantil e escola básica foram desativados.
Atualmente, as famílias dos dois povoados contam-se pelos dedos das mãos. Em termos de número de pessoas, são 26 em Lagoa e 16 em Achada Lagoa, totalizando 42 “almas”, que não pretendem deixar para trás os seus animais e as suas terras. Segundo contam, a região possui terra fértil, propícia para a prática agrícola e dá pasto com fartura, principalmente quando chove.
“Muitos gostam de visitar aqui, mas ninguém quer viver cá”, conta um morador que olha para o despovoamento com alguma melancolia.
E prossegue o desabafo: “É um lugar muito agradável. Gostaríamos de ter mais vizinhos, mas não nos importamos de estar sozinhos. São João Baptista passou muito tempo no deserto e eu também vou sobreviver. Mas se construírem uma estrada seria muito bom para o escoamento de produtos e outras necessidades”.
Silêncio sepulcral entre as ruínas
Em Lagoa e Achada Lagoa as casas desabitadas continuam a ter vida própria com alguns turistas e aventureiros a percorrerem as ruas das habitações fechadas ou em ruínas, tendo como companhia um silêncio sepulcral.
É que nesta aldeia, quase deserta, há muitos encantos para descobrir. Debaixo de cada amontoado de pedras e telhas vermelhas das casas em ruínas estão guardadas muitas histórias que alimentam o imaginário de quem por lá passa.
Num lugar marcado pelo esquecimento, árvores seculares ainda dão frutos, ainda há água na nascente e as casas típicas e dispersas, conservam entre os seus pardieiros as memórias de um povo.
Lagoa possui grandes potencialidades a nível da agricultura, criação de gado e turismo rural. Por isso, alguns amantes deste “paraíso escondido” recomendam a construção de uma estrada de acesso, restauração de habitações e outros investimentos para atrair turistas nacionais e estrangeiros que pretendam disfrutar da tranquilidade e da beleza paisagística desta região. Consideram que o desenvolvimento da aldeia passa, também, pela restauração da histórica capela de Lagoa.
Festa no “deserto” com a chama da fé
Na aldeia praticamente deserta a chama da fé continua acesa. Prova disso são centenas de pessoas que se deslocam todos os anos (percorrendo alguns quilómetros a pé), para a celebração da festa de São João Baptista, padroeiro das comunidades de Lagoa e Achada Lagoa, no município de Tarrafal de Santiago.
No dia 24 de Junho, a região regressa ao passado. O quase vazio enche de gente e vida. Foguetes, sinos da igreja, rufar os tambores, “txabeta” e toques do pilão anunciam festa rija. Nos últimos anos, há motivos de júbilo. É que a pequena aldeia ganhou dois sacerdotes: Pe. Francisco Tavares (ordenado em 2015) e Pe. José Cabral (em 2020). Fidjus di Lagoa que celebram a festa de S. João Baptista com muito orgulho e muita devoção.
Este ano coube ao vigário na Paróquia de Santo Amaro Abade a responsailidade de presidir a missa em homenagem ao padroeiro da comunidade de Lagoa.
Após o alimento espiritual, o estômago reclama, mas uma mesa farta aguarda os visitantes para o almoço. Os pratos tradicionais, como feijão pedra, xerém, couve, massa com galinha, guisado de carnes têm presença garantida.
Por um lado, há quem pense tirar a barriga da “miséria” ou recuperar a energia depois da longa caminhada feita, até Lagoa e, por outro, há quem não tencione comer muito, (contrariando o seu apetite) ciente de uma jornada ainda mais dura pela frente. É que subir é sempre mais difícil e gasta-se mais tempo (cerca de 1h30 minutos).
Apesar de uma pequena melhoria nos caminhos vicinais, por parte da atual equipa da Câmara Municipal do Tarrafal de Santiago, as dificuldades de acesso são muitas. Os cânticos de louvores entoados pelos escuteiros e as anedotas engraçadas não impediram o cansaço e as dores nas pernas, mas suavizaram o sofrimento. Pelo menos são vozes de alguns que, conformados com a situação, até tiveram o fôlego para recordar o refrão de uma música muito popular: “Nada na vida ka fasil….”
Segundo as passagens bíblicas, o próprio João Baptista no desempenho da sua missão no deserto enfrentou a dureza e o sofrimento. E, alicerçados no exemplo do profeta, os visitantes, após o almoço-convívio, respeitando as normas e regras sanitárias, demostraram coragem ao desbravar as montanhas e vencer os obstáculos.
No final, todos consideraram que valeu a pena o esforço. Prometem voltar no ano que vem e não deixar a aldeia cair no esquecimento.
Nesta região onde o desenvolvimento teima em não passar, os seus ex-moradores não pretendem voltar para fixar residência. Mas, as poucas pessoas que resistem em abandonar o seu berço, se recusam a deixar que Lagoa se transforme numa aldeia totalmente fantasma.
(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 723, de 08 de Junho de 2021)