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Retorno de bens culturais: A problemática

Por: Carlos Carvalho

A temática do retorno de bens culturais entra na agenda politico-cultural africana ainda na década de sessenta, no pós-primeiras independências. Ganhou dimensão nos anos oitenta, altura em que o senegalês, Amadou Maktar Mbow (AMM) desempenhava as funções de Director-Geral da UNESCO, o 1° africano a ocupar esse importante cargo.

Em homenagem ao centenário deste ilustre africano que se comemora este ano, os nossos vizinhos do Senegal organizaram uma zoom-conf., como a COVID hoje impõe, sobre o tema. Participaram nela experts senegaleses e de outros países num extraordinário momento de reflexão.

A temática, que Maktar Mbow carregou com empenho nos anos 80, continua actual, sendo objecto de discussão entre as autoridades de países ex-colonizadores e ex-colonizados. Estes a exigirem a devolução de seus bens, aqueles apresentando vários argumentos, sobretudo técnicos, para tentar justificar a não devolução.

Há alguns anos, Directores de grandes museus do Ocidente (França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Rússia, Itália, etc.), como resultado duma reflexão sobre o tema, chegaram a elaborar um documento em que declaram que os Bens retirados do continente e que se encontram nesses museus devem ser considerados propriedades desses países, atiçando, assim, mais acha à fogueira.

Efectivamente, ao longo de séculos, potências colonizadoras retiraram dos espaços colonizados um sem número de bens culturais, na grande maioria objectos de culto religioso, valorizando seus museus, tornando-os ricas reservas de memórias de povos de diferentes origens.

Os Louvre, British Museum, Hermitage, Museu de Berlim, Prado, entre muitos outros, estão repletos de autênticas obras de arte retiradas de suas ex-colónias. O último exemplo destes Museus foi aberto em França, o Museu de Quai de Branly, ou Presidente Jacques Chirac, seu mentor.

Apesar da questão dizer respeito aos países africanos no geral, a abordagem da mesma é diferenciada. Alguns países francófonos (Benin) e anglófonos (Nigéria) vêm assumindo a liderança deste processo.

O Benin assume notoriamente a dianteira, tendo até o actual Presidente francês, Emanuel Macron, já assumido a devolução de parte dos bens “subtraídos à força” que se encontram nos museus franceses. Aliás, Macron encarregou mesmo dois experts (Benedict Savoy e Felwine Sarr) que lhe apresentassem um estudo sobre o tema que lhe poderá orientar na tomada de decisões em relação à matéria. 

No que se refere ao retorno dos bens do Benin, o Museu de Quai Branly foi o incumbido de desencadear e levar a cabo o processo.

Emmanuel Kasarherou, Presidente desse Museu, anunciou, no dia 4 do corrente, que 26 obras de arte retiradas do Palácio Real do Rei Gbehanzin, no séc. XIX, serão devolvidas ainda este ano a esse país africano.

Os PALOP e a problemática

Entre os palopianos, ao que parece, esta problemática não entra na agenda política cultural, nem no imediato, nem para os próximos tempos. Estes, julgo, têm outra prioridade e, penso, acham que não convém buscar mais uma sarna pa cossa…atitude infelizmente incompreensível!! Incompreensível porque é de todos sabido que nos Museus e noutras instituições portuguesas se encontra uma razoável quantidade de peças retiradas de quase todos os PALOP.

Seria de todo interessante que, ao menos, numa das reuniões dos Ministros da Cultura que se faz, sem nenhuma consequência prática, algum Ministro palopiano ousado e perspicaz se lembre de, pelo menos, trazer a questão para a ordem do dia…já não seria mau!!

Mas, para tal, é preciso antes ter-se a consciência da problemática e abrir-se o debate em foro próprio, interno, com as competências técnicas que existem nos respectivos países, para se saber o que representa e em que consiste esses bens retirados e passíveis de retorno, mas, principalmente, investigar onde se encontram e o estado de sua conservação. Este passo importante pressupõe obviamente ter ciência e consciência da situação.

É isto que, ao que me parece, falta aos palopianos. 

O (Não) Estado da arte em Cabo Verde    

O território das ilhas, habitado a partir do XV, foi alvo, ao longo de séculos, de inúmeros assaltos de piratas e corsários de “potências”/coroas estrangeiras. Desses assaltos, a história registou vários momentos em que a sua ilha principal, Santiago, onde se situava a sua única cidade e capital, Ribeira Grande, foi praticamente destruída e despojada de seus bens móveis, pessoais/familiares e públicos. Os espaços continental e marinho foram testemunhos desses “espoliamentos”. O estado em que se encontrava e encontra a cidade e alguns de seus monumentos, ou o que resta deles, é disso testemunho.

Fontes históricas, nalguns casos, nos dão conta desses assaltos, mas, infelizmente, não se conhece dados concretos sobre o que foi levado nesses saques. Certo é que, no fundo de nossos mares, jazem bens patrimoniais resultantes dalguns desses assaltos.

É de todos conhecido o mito do sino da Sé Catedral que, supostamente, se encontra no fundo dos mares da cidade, sino esse guardado/protegido por um enorme polvo que não deixa ninguém dele se aproximar. Entre mito e realidade, é normal que o sino tenha efectivamente sido retirado num dos assaltos e levado. Pode bem não se encontrar no fundo do mar, mas num museu ou num lugar qualquer que a ciência ainda não desvendara e, provavelmente, nunca desvendará.

Alguns dados para reflexão

I. No último assalto perpetrado pelo francês Jacques Cassard, a cidade foi quase que completamente destruída. Calcula-se que do assalto, a cidade perdeu bens calculados em vários milhões de libras. Ninguém sabe o que foi levado, para onde foi levado, onde se encontra. Provavelmente que esses bens estejam nalgum museu em França ou numa colecção privada qualquer de um descendente longínquo desse pirata. 

II. António Carreira em “Panaria Guineense-Caboverdiana” (1967) nos dá conta de mais de cinquenta panos, alguns confeccionados ainda no séc. XIX, nas diferentes localidades de nossas ilhas. Esses panos seguramente se encontram, hoje, no Museu de Etnologia de Lisboa.

António Carreira não informa na sua obra como foram adquiridas essas peças, mas estamos quase certos de que elas constituíam parte do espólio do Museu da Praia, criado no período colonial, na segunda metade do séc. XIX, entretanto desmantelado ainda na 1ª metade do séc. XX.

Essas autênticas obras de arte seguramente dariam mais brilho ao nosso minúsculo Museu Etnográfico ou permitiriam criar um Museu exclusivamente dedicado à Panaria Nacional.

III. Na 1ª metade do século XX, o governo colonial assinou um Contrato com uma empresa para pesquisas nos mares de Santiago, Cidade Velha, e da Boavista.

É óbvio que desse Contrato alguns objectos de valor foram encontrados e retirados. Nesse tipo de Contrato, o “Contratado” procura sempre encontrar rapidamente as melhores peças, objectos que facilmente dão retorno financeiro.

Se encontrados, como tudo leva a crer, desconhece-se o destino que esses bens, património do povo cabo-verdiano e da humanidade, tiveram.

Só para ilustrar. No Museu de Arqueologia encontra-se um canhão que foi encontrado, circunstancialmente, nas imediações desse Museu. Segundo informações recolhidas junto de um mergulhador, que provavelmente teria trabalhado com a empresa acima citada, mergulhadores retiravam objectos de bronze e outros metais que utilizavam para uso caseiro e outros, como se de coisas sem valor se tratasse.

Aliás, ontem, como hoje, é do conhecimento de todos que os nossos mares são regularmente “visitados” por “caçadores” que deles retiram impunemente objectos cujo destino nunca se saberá.

IV. Na segunda metade do século passado, aquando das comemorações do V Centenário das “Descobertas”, o arquitecto Luís Benavente mandara para restauro na Metrópole várias peças num total de nove toneladas (ver Luís Benavente – arquitecto. Pg. 79). Dentre essas peças várias eram objectos sacros.

Nesse processo de reabilitação da Cidade, o Pelourinho, por exemplo, foi integralmente desmontado, levado para restauro na Metrópole. Depois do restauro, foi enviado de volta e lá se encontra, constituindo, hoje, o ex-libris da Praça Central da nossa Cidade-Património Mundial.

Porém, estou certo de que os vários objectos de arte sacra que foram levados, nessa mesma altura, com o mesmo objectivo, não foram devolvidos.

V. Muito recentemente (anos noventa), na decorrência da Guerra Civil ocorrida na Guiné-Bissau, quase todo o espólio histórico-documental do Partido da independência foi retirado do país e entregue à guarda de uma Fundação do país colonizador. Essa atitude foi nobre, pois, corria-se o risco de desaparecerem ou de serem destruídos. Segundo informações chegadas a nós, a Fundação deixou de existir. Impõe-se, hoje e imperativamente, o retorno desse espólio. O não retorno desse imenso e de inestimável valor, fonte da história de nossa luta de libertação constituiria um dano irreparável para os dois países, a Guiné e Cabo Verde.

VI. Igualmente, recentemente, o Museu de Arqueologia da Praia foi assaltado. Dentre os objectos roubados, contava um crucifixo de ouro, encrustado com pedras preciosas. Até hoje, não se sabe o paradeiro dos objectos roubados.

Pior. Provavelmente, nunca mais se saberá o destino que esses objectos tiveram.

Foram só alguns dados para nossa reflexão.

Para terminar.

A problemática do Retorno de Bens Culturais é, portanto, igualmente actual para o nosso país e para os palopianos.

Mas, teríamos que ter a atitude que o Presidente do Museu de Quai Branly teve m relação ao Governo do Benin, dizendo: «Je suis frappé par l’ambition et le sérieux du Bénin dans cette affaire» (traduzido à letra) : “Estou profundamente tocado e admirado pela ambição e seriedade do Benin neste negócio”, leia-se, nesta temática. (Fonte: RFI. 04/04/2021).

É esta a postura que espero/espera-se dos palopianos.

Tenho dito.

Abril 2021.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 713, de 29 de Abril de 2021

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