O advogado e deputado Amadeu Oliveira, que protagonizou no passado fim-de semana, a fuga do seu cliente Arlindo Teixeira para França, diz que agiu consciente de todos os riscos que corria. Além de jurídicos, o caso comporta vários aspectos políticos. Tirando a UCID, nenhum outro partido parece alinhar com ele. A Assembleia Nacional decide hoje o que fazer com Oliveira.
A Comissão Permanente da Assembleia Nacional, sob a presidência de Austelino Correia e da qual fazem parte os três partidos com assento parlamentar (MpD, PAICV e UCID), vai apreciar esta quinta-feira, 01, que decisão tomar em relação ao episódio protagonizado por Amadeu Oliveira, enquanto eleito pela lista da UCID, por São Vicente.
Levantamento da imunidade parlamentar
“Soubemos da sua ausência do país através da Comunicação Social e estamos a analisar a situação”, disse Austelino Correia, fazendo saber que, além desse caso, aquele órgão irá decidir outras pendências ligadas à Justiça.
Uma delas visa, precisamente, o levantamento da imunidade parlamentar do eleito da UCID para prosseguir com o seu julgamento num caso em que acusa juízes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de vários crimes.
No caso pendente de Amadeu Oliveira, que é membro pela UCID da Comissão Permanente da AN, Austelino Correia deixou a entender que o Parlamento vai colaborar com a Justiça, caso for solicitada.
Alegada violação do Estatuto dos Deputados
Tendo, alegadamente, cometido um crime, ao ajudar Arlindo Teixeira a fugir do país, Amadeu Oliveira terá violado o Estatuto dos Deputados que, no seu artigo 22º, estabelece que é dever do deputado desempenhar o cargo para o qual foi designado nos termos regimentais e contribuir para a dignificação, eficácia e prestígio do Parlamento.
Conforme uma fonte parlamentar, “é evidente” que o episódio em causa, protagonizado por Oliveira, “não contribui para o prestígio do Parlamento e nem pela sua dignificação”.
Pelo contrário, “sendo deputado, mesmo tendo agido como advogado, ele cometeu um crime”, o que “significa que desprestigiou a Assembleia Nacional, facto que pode levar as pessoas a dizerem que o Parlamento tem criminosos no seu seio”.
Sendo deputado, Amadeu Oliveira pode igualmente ser acusado, enquanto membro de um órgão de soberania (Parlamento) de interferir ou impedir a realização da Justiça. “É o próprio Amadeu a confessar o que fez”, sublinha.
Deputados não podem ausentar sem prévio conhecimento à AN
Por outro lado, a alínea “h” do mesmo artigo diz claramente que são deveres dos deputados não se ausentar do território nacional sem dar prévio conhecimento à AN.
Poderá ser, precisamente, aqui, neste ponto, que o Parlamento poderá agir em relação ao visado. Mas, mesmo assim, é de se esperar para ver.
É que, segundo a mesma fonte, ao contrário de outros parlamentos, que têm normas próprias na Constituição ou no Regimento, que permitem sancionar deputados por via disciplinar, expressamente, “em Cabo Verde isto não existe”.
Quando muito, admite, “o que a Assembleia Nacional pode fazer é criticar esse procedimento de Amadeu Oliveira e apontar-lhe responsabilidade, porquanto ele não pode, como deputado, colaborar com crime e defraudar a Justiça”.
Para a mesma fonte, tal quadro demonstra, na prática, os limites do actual quadro normativo para disciplinar deputados, sem prejuízo dos seus direitos constitucionais.
“Os deputados têm direito a inviolabilidades e a imunidades, é certo; mas este talvez seja o momento de o Parlamento analisar se é possível, mesmo no quadro constitucional existente, estabelecer algumas normas em relação à disciplina dos deputados”.
Deputados-advogados
Aliás, o episódio Amadeu Oliveira possui várias outras vertentes e nuances. Uma das quais a faculdade de os deputados- advogados poderem exercer actividade privada que, muitas vezes, no exercício da função privada, acaba por colidir com a actividade política.
Dá-se até casos de deputados- advogados assumirem ou patrocinarem causas contra o próprio Estado, que juraram defender, o que para muitos configura-se como um exemplo de falta de ética que reina na nossa vida parlamentar.
No caso presente, o que já se pergunta é onde termina o Amadeu Oliveira advogado de Arlindo Teixeira, que diz ter viajado sem usar qualquer prerrogativa de parlamentar, e onde começa o Amadeu deputado, eleito pela UCID, por São Vicente.
Oliveira e Teixeira deixaram Cabo Verde na madrugada de sábado, 24 de Junho, rumo a Lisboa, de avião e chegaram à França na madrugada de segunda-feira. Como conta Amadeu, os dois foram abordados pela polícia, no hotel, e submetidos a um demorado interrogatório. Esclarecida, a própria polícia francesa conduziu os dois à estação de comboio, de onde seguiram até Mosele, residência de Arlindo Teixeira.
Leitura jurídica
Ordem de Advogados fala em “crime grave”
O bastonário da Ordem dos Advogados (OACV), Hernâni Soares, afirmou, em declarações à RCV, que a fuga de Arlindo Teixeira para França, na companhia do seu advogado Amadeu Oliveira, é “incompreensível” por se tratar de uma pessoa que estava em prisão domiciliária e por isso privada de sair do país.
Aquele responsável considera que há muito por explicar sobre este episódio, começando por questionar como é que uma pessoa em prisão domiciliária conseguiu sair do país num voo da TAP, visto que tinha que passar pelo check-in, que mostraria logo a impossibilidade do mesmo em sair do país, por estar impedido.
Teixeira e Oliveira, na óptica do presidente da OACV, cometeram um “crime grave”. Por seu lado, o criminalista João Santos, também em declarações à RCV, considera que se Oliveira terá pensado e ajudado a fuga de Arlindo Teixeira, “ele terá praticado um crime de auxílio à evasão, previsto e punido no nosso Código Penal”.
Na perspectiva desse analista, Amadeu Oliveira será cúmplice de Arlindo Teixeira, o que tornará difícil o seu regresso sem consequências pessoais, mesmo sendo deputado e titular de imunidade parlamentar.
“Estamos perante comportamentos que violam, de forma ostensiva, uma decisão judicial”, assegura.
“Hoje em dia, ninguém consegue fugir à justiça, esteja onde estiver”, avisou, por seu turno, o procurador-geral da República, José Luís Landim, salientando que Cabo Verde tem uma lei de cooperação internacional avançada, dando com isso a entender que o Estado poderá perseguir Arlindo Teixeira, mesmo no seu país de acolhimento, França.
Leitura política de uma evasão: UCID mantém confiança em Amadeu
Mesmo perante o episódio de alegado auxílio na fuga de Arlindo Teixeira, a UCID mantém confiança no seu deputado Amadeu Oliveira.
O líder do partido, António Monteiro, considera que Oliveira “agiu como advogado e não como deputado nacional e muito menos como representante da UCID”.
Monteiro também esclareceu que a UCID “não tem nenhuma responsabilidade” nas atitudes profissionais de Amadeu Oliveira, que, sendo advogado, “tem o dever de sigilo profissional junto do seu constituinte”.
Ainda no campo político, o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva disse esperar que “as responsabilidades sejam apuradas e que se determine exactamente, porque é que isto aconteceu e que os responsáveis sejam devidamente sancionados”.
Curiosamente, até ao fecho desta edição, apenas o PAICV não se tinha pronunciado sobre o caso Amadeu-Arlindo.
Um caso que se arrasta
O caso Arlindo Teixeira remonta a 31 de Julho de 2015 quando esse emigrante em França, de férias em Santo Antão, foi preso e acusado de assassínio de um outro cidadão, durante uma briga na via pública.
Depois, em 2016, o mesmo foi condenado a 11 anos cadeia, continuando, porém, em prisão preventiva a aguardar o desfecho do recurso ao Tribunal Constitucional.
Acórdão do Tribunal Constitucional
Desde então, volta e meia, o caso aparece na comunicação social por empenho do seu advogado, Amadeu Oliveira, para quem o processo está eivado de falcatruas cometidas pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Entre outros factos, Oliveira acusa o STJ de não cumprir o acórdão do Tribunal Constitucional, nº8/2018, que, alegadamente, manda soltar o seu cliente, ao reconhecer que o mesmo agiu em legítima defesa ao defender-se do seu atacante na referida briga em Santo Antão.
Note-se que neste processo, também por decisão do Tribunal Constitucional, o STJ foi obrigado a repetir o julgamento por este ter decorrido sem assistência do público e do advogado de defesa de Teixeira, Amadeu Oliveira.
Repetição do julgamento e prisão domiciliária
O STJ repetiu o julgamento, estabelecendo a pena de nove anos, pena esta que só pode ser executada depois da decisão do Tribunal Constitucional sobre o pedido de amparo. E é aqui que entra a prisão domiciliária ordenada pelo STJ a partir de 16 de Junho de 2021.
Sob anonimato, uma fonte ligada ao processo lamenta que nesta celeuma apenas se fale de Arlindo Teixeira, esquecendo-se a vítima do homicídio, de 31 de julho de 2015, que terá deixado órfãos, em Santo Antão.
“Além disso, há toda uma manipulação por parte do Amadeu, que se aproveita da cobertura mediática, com um discurso populista, para desferir os seus ataques à Justiça, impunemente até aqui”. “Infelizmente”, prossegue o nosso interlocutor, “até hoje, mesmo diante de todo o barulho, o Tribunal Constitucional não se dignou a esclarecer a opinião pública da leitura abusiva e enviesada que o Amadeu faz do acórdão nº 18/2018.
Esse acórdão reporta-se a uma das fases preliminares do processo, em que esse tribunal admite que poderá ter havido a legitima defesa do arguido Arlindo Teixeira”.
Diante disso, segundo a mesma fonte, o que TC fez, na altura, foi decretar uma medida de coacção mais adequada ao caso de Teixeira. “Ao contrário daquilo que diz o Amadeu, o Tribunal Constitucional não ordenou que o arguido Teixeira fosse colocado em liberdade, é por isso que ele estava em prisão domiciliar, até à fuga dele. Aliás, a fuga veio provar que, afinal, havia uma forte possibilidade de o mesmo ser retirado do país, para se furtar à justiça”.
Por isso, para acabar com a confusão, o interlocutor deste jornal entende que, “na linha daquilo que disse o procurador-geral da República, no sentido de cada uma das instituições visadas assumir as suas responsabilidades, cabe ao Tribunal Constitucional esclarecer também o que se passa”.
Entretanto, ao que tudo indica, quer o caso Arlindo Teixeira, quer o de Amadeu Oliveira, que responde na justiça por crimes de injúria, calúnia e difamação contra juízes do STJ, deverá fazer correr muito mais tinta.
Amadeu de Oliveira
“Agi na defesa da Constituição e para salvar a vida de um cidadão injustamente condenado pelo Supremo”
Igual a si próprio, Amadeu Oliveira recusa ter violado a Constituição e o Estado de direito ao retirar do país o seu cliente Arlindo Teixeira, em prisão domiciliária, em São Vicente, no passado fim-de-semana. Oliveira, que recusa também o epíteto de fujão para si e para o seu cliente, conta estar de volta ao país ainda esta semana para responder pelos seus actos, salientando que não usou passaporte diplomático, sala VIP e nem qualquer outra prerrogativa enquanto deputado nacional.
Terça-feira, por volta das 20 horas de Cabo Verde, Amadeu de Oliveira entregava, como faz questão de realçar, Arlindo Teixeira aos seus familiares, em Moselle, França, depois de várias horas de um duro interrogatório feito pela Polícia desse país, em Paris.
Para ele, tratava-se do cumprimento de uma promessa, feita anos atrás, ao pai do seu cliente falecido, entretanto. Como contou ao A NAÇÃO, no fim do interrogatório, foram os próprios agentes da polícia a conduzir os dois cabo-verdianos à estação de comboio, metendo-os num TGV (comboio de alta velocidade) rumo a Famek, Moselle, região fronteira com o Luxemburgo, onde Teixeira reside e tem a família, que não via desde 2015, quando, de férias em Santo Antão, foi preso e condenado por um homicídio que diz ter sido em legitima defesa.
Como alega Oliveira, “vendo que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) não quer acatar uma decisão superior do Tribunal Constitucional, que ordena a soltura de Arlindo Teixeira, através do acordão Nº 8/2018, então, eu também não vou acatar decisão fraudulenta desse maldito e criminoso Supremo Tribunal”, assumiu ao A NAÇÃO, de forma enfâtica.
Passaporte ordinário
Nesta operação de fuga, com escala em Lisboa, seguida de viagem de carro para França, via Espanha, Amadeu Oliveira garante que viajou com passaporte ordinário, deitando por terra uma parte das especulações de que teria usado o passaporte diplomático, por ser deputado nacional.
“Eu nunca iria tirar proveito indevido do passaporte diplomático. Foi precisamente por isso que recusei tomar esse tipo de documento. Mas também não usei a sala VIP. Nunca invoquei a qualidade de deputado”, garante.
Como diz, foi o desespero e o receio de que Arlindo Teixeira se fosse suicidar, ao fim de
todos estes anos de desgaste físico e emocional, que o levou a montar a evasão, nos termos já conhecidos do público.
Para ele, e como tem vindo a acusar, o STJ montou uma “fraude processual” contra aquele emigrante, decretado a sua prisão domiciliária, “desobedecendo o Acordão do Tribunal Constitucional Nº 8/2018 que mandou libertar Arlindo por ter ficado provado razões para crer que ele terá agido ao abrigo do seu Direito Fundamental de auto-defesa nos termos dos Artigos 18 e 19 da Constituição”.
Diante disso”, admite, “se o Supremo não quer acatar as decisões do Tribunal Constitucional, eu também não vou acatar as decisões do Supremo, em nome da defesa do nosso Estado de Direito Democrático”.
Recurso a ex-fuzileiros
E sobre o recurso a ex-fuzileiros para retirar Arlindo de Cabo Verde, Oliveira esclarece, a propósito, que não “contratou” ninguém para esse efeito.
“Todos iriam colaborar, de forma gratuita, por se identificarem com esta causa, que não é só minha ou do meu cliente”, sublinha.
“Neste momento tenho dezenas de cabo-verdianos em França e Luxemburgo a enviar-me todo o tipo de apoio, desde casa para ficar, carro com condutor, hotel, férias… editores a quererem publicar livros e tudo, mas eu não estou contratando ninguém nem estou a pagar tais apoios.
Sequer vou dormir em casa dos familiares de Arlindo Teixeira. Vou dormir sozinho numa pensão rasca, mas longe e sossegado”.
Protegido pela Constituição
Apesar de tudo, Amadeu Oliveira recusa que tenha violado a Constituição da República ou mesmo o estatuto de deputado, enquanto eleito pela UCID.
“Eu não violei a Constituição. Pelo contrário, estou defendendo a Constituição como jurei fazer. Diante da situação em que o meu cliente se encontrava, diante dos problemas da justiça, como cidadão e como deputado, dei o corpo ao manifesto por uma melhor justiça em Cabo Verde”.
“Mas a Constituição dá cobertura à fuga do Arlindo?”, quisemos saber. “Sim, dá!”, foi a sua resposta. “Agi ao abrigo da Constituição, dos artigos 18 e 19, em conjugação com o Nº3 do Artigo 261º do Código Processo Penal, que estatui que nenhuma medida de coacção pessoal pode ser aplicada quando um Tribunal, como o Constitucional, declara que há razões para acreditar que o Arlindo agiu ao abrigo de uma causa de exclusão de ilicitude ou de exclusão de culpa, como é o caso de legítima defesa ou de auto-defesa”, sublinha. “É só ler. Não é preciso ser jurista”.
Arlindo regressa em Outubro
Amadeu Oliveira garante, entretanto, que Arlindo Teixeira vai regressar a Cabo Verde, logo assim que se sentir recuperado dos “problemas físicos e psicológicos” de que padece, ao fim de todos estes anos de desgaste.
“Ele vai ficar internado um ou dois meses, mas depois regressa. Este processo tem de ir até ao fim.
Ele deve regressar em Outubro”. Amadeu Oliveira reitera, outrossim, que está nesta luta por uma “boa justiça” e que o problema não é só ele ou o seu cliente.
“A justiça em Cabo Verde não é célere nem competente, como está não serve a ninguém, é uma justiça caduca e pouco séria. Entendo que sim, que deve haver consequências em relação ao meu acto, mas não é meter Amadeu Oliveira na cadeia, e pronto, é que os problemas da justiça se resolvam”, conclui.
Por: Daniel Almeida e José Vicente Lopes
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 722, de 01 de Julho de 2021