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Derrota do MPD em 2020 é vitória para nossa democracia?

Por: Milton Monteiro

De certo que o MPD não terá boas lembranças do ano pandêmico: os aviões sumiram; nenhum centavo da venda foi pago, pelo contrário, precisou-se endividar mais as gerações para sustentar o calote; o avião do Saab chegou, já o do Chega não deu tempo de trazer as suas filantropias, só gerou mais demissões e nomeações de tirar o chapéu.

Mas, em 2020, nem tudo foi ruim na Kabu Verdi di “nos amor, fe i speransa”: a seca acabou, a chuva veio e junto as migalhas externas de toma lá dá cá e até a casa caiu em São Vicente. Então, não esqueçamos esse ano, sem antes refletir: pode o nosso “trintão democrático” ter ganho algum presente do seu pai?

Comecemos com a pergunta mais óbvia:  O MPD saiu vitorioso nas eleições autárquicas de 2020 ou o PAICV transformou-se em lobisomem naquela noite de 25 de outubro? Se a falta de consenso é o que reina no habitat dos lobos, aquela derrota foi rapidamente um consenso. Basta lembrar, por exemplo, do silêncio histórico do astrólogo, que falara em vencer todos as Câmaras; da reação surpresa do “autarca-galo”; do sorriso do pinton e do lobisomem, que tiraram o excesso de confiança, trazendo ameaças reais para a corrida ao pódio deste ano. Ou seja, o MPD, vencendo as eleições, saiu derrotado: não só perante o rival, mas perante quem importa: a democracia cabo-verdiana. Como assim? Vamos por partes. Recordemos:

O MPD venceu as eleições porque, apesar de não manter girando as suas dezoito ventoinhas, continua liderando o ranking com quatorze das vinte e duas Câmaras. Também predou na região norte e até manteve, por um fio, a estraçalhada São Vicente. Por outro lado, saiu derrotado porque a perda de Câmaras tradicionais e importantes veio de surpresa. E não podemos esquecer que o banquete de retomada ao poder acabou de começar e que se estava perante um adversário dividido – o lobisomem. Tudo isso pesa na balança. Como que não aproveitaram? Como é que o desgaste veio tão cedo?

Já o PAICV gostou de 2020 (quanto mais o país acabar nas mãos do MPD melhor para si): degustou alegremente as novas presas, pois quase tinha desaparecido do mapa autárquico, quando ficou com apenas duas pobres Câmaras, mas agora tem oito, inclusive a cereja do bolo: Praia. A seca cessou em 2020, mas a chuva veio com tempestade na Capital para MPD, e não só: São Domingos, Tarrafal, Cidade Velha, etc.

Pegando emprestado as terminologias do economista Michael Porter, diríamos que tivemos também outras forças no mercado, mesmo que simbólicas. Segundo esse professor de estratégia e competitividade da Harvard Business School, a determinação da posição de qualquer empresa em seu respectivo mercado deve considerar cinco forças: rivalidade entre concorrentes; poder de barganha dos fornecedores; poder de barganha dos clientes; ameaça de novos concorrentes; ameaça de novos produtos ou serviços.

Quanto ao grau de competição existente no “mercado político”, viu-se a rivalidade de sempre ser arejada pelos ventos alísios das candidaturas independentes, com ressalvas das “fakes”. A sinalização de ameaça de novos concorrentes e novos produtos é um fato, cedo ou tarde concretizará. Lembremos que os independentes totalizaram 12 candidaturas aprovadas, remetendo-nos à ruptura dos anos 90, que contou com 14 candidaturas, a maior de sempre.

Entre os candidatos independentes tivemos nem que seja um ou dois nomes com potencial e credibilidade política perante a opinião pública, isso foi um ganho. Não se deve explicar o fraco resultado nas urnas olhando apenas para as suas limitações, a própria mentalidade partidária e alienada do cabo-verdiano é uma boa explicação. Os independentes já entram perdendo, tanto pelo preconceito quanto pela robustez da máquina partidária que é de longe imbatível financeiramente. Se por um lado são vistos sem time; por outro, tendem a despertar votos conscientes, isso, por diminuto que seja, foi um ganho. É consenso que as candidaturas independentes traduziram o grito do povo pela mudança, isso foi um ganho. Ou seja, o gigante que mora no povo cabo-verdiano há de acordar novamente, e o grito pela independência interna (exploração dos herdeiros do poder) ecoou nos independentes, eles saíram para dar o aviso, isso foi um ganho.

Então, eis a primeira grande vitória dessa eleição para a nossa democracia: o reflorescimento das candidaturas independentes, enganando-se quem pensa que estamos falando de pódio ou meramente de urna. É indubitável que essa forte retomada de candidaturas independentes traduziu insatisfações, ânsias por mudanças e sinalizou uma participação mais ativa. Viva 13 de janeiro! Nas palavras do professor Daniel Henrique Costa, “a nível da sociedade civil é mais um reflexo da avaliação crítica sobre a governação partidária nos municípios”. Então, foram motivadas pelo partidarismo exacerbado e pela governação insatisfatória: promessas demais, resultados de menos.

Vale destacar a ponderação sábia feita pelo deputado Rui Semedo na noite de eleições, que ao contrário do ministro expiatório, enalteceu a participação dos grupos independentes e reconheceu que eles “atuam num contexto mais difícil, quiseram dar a sua contribuição à democracia porque os grupos independentes organizaram para apresentar as propostas da sociedade. Eu acho que os partidos devem reconhecer isso. Se há necessidade de aparecer tantos grupos de independentes quer dizer que há também na sociedade focos de insatisfação com a atuação e os resultados da governação local dos partidos políticos que precisam ser analisados. Que sirvam de exemplo também para melhorar o nível da nossa democracia que se baseia nos pilares que são os partidos, mas que tenha também essa possibilidade da sociedade de se organizarem e participarem e darem a sua contribuição. Eu acho que é uma atitude corajosa, desprendida, mas sobretudo uma atitude de entrega, de darem à nossa democracia aquilo que ainda precisa ter. Poderá estar nos grupos independentes ainda uma possibilidade de contribuírem para que a nossa democracia se reforce, se consolide, se torne pujante. Mais importante é que os cabo-verdianos participem na formulação das decisões, participem na escolha dos seus representantes, participem na apresentação e organização das propostas. Se os grupos independentes permitem esta participação juntamente com os partidos, ótimo, é uma alternativa também a participação cívica, política”.

A questão é que não é do real interesse nem do MPD e nem do PAICV essa participação cívica, mais ativa e direta do cabo-verdiano na política. Internamente, nos partidos isso não acontece, impera o autoritarismo, então, como podemos esperar algo diferente lá fora? Aqui também não bastam palavras! Por exemplo, quem vai abrir mão dos seus interesses e jogar no lixo o modelo de representação proporcional de lista fechada e propor um sistema de lista aberta ou flexível? Quem, em nome da democracia, quer abrir o parlamento para a “participação cívica”? Onde estão as assinaturas colhidas pelo Amadeu Oliveira? Devem os partidos ser a via sagrada para a participação política? Para eleição de agora, vão derrubar o Artigo 109º da CRCV, valorizando a participação da Diáspora? Duvidamos, mas uma coisa está clara: os predadores estão mais felizes com o eleitorado que têm (passivo e muito partidário) do que com possíveis “Andrezinhos” de São Vicente (não me refiro ainda ao Sokols). Quanto mais “cabo-verdianos galos” nessa disputa cancerígena melhor para o revezamento de poder entre PAICV e MPD.

Felizmente, luz no túnel: São Vicente! Por causa dos palacianos, Baltasar Lopes precisou vivenciar a dura realidade na sua terra e depois conviver com a triste lembrança das milhares de vidas tragadas pela governação exploratória do povo das Ilhas. Entre suas perdas mais cruéis, estava a do queridíssimo nhô Chic’Ana, que também morreu de fome, mas o claridoso não teve coragem de matar o Andrezinho no romance. A razão é que Andrezinho precisava viver eternamente em São Vicente, pois representa a alma de sua gente: “Só Andrezinho se obstinava em S. Vicente, assegurando a continuidade da ‘ideia’, como capitão que agarra ao seu navio, batido por ondas mais negras que o betume da noite e por todos os ventos soprados” (Chiquinho, Edição BNCV, 2018, pág. 175).

São Vicente, como sempre, é o Porton de nôs ilhas para “sintonizar Cabo Verde com o Universo”, com a modernidade (idem, pág. 97). Mais uma vez, em 2020, a Ilha foi no espírito do Andrezinho. Foi o próprio Andrezinho que explicou para o Chiquinho que São Vicente “tem a vantagem de depois se não dizer que trabalhámos sob sugestões vindas do Palácio” (pág. 97). Pois bem, o Brasilin não está aceitando sugestões do Palácio, pelo contrário, está se distanciando do seu modus operandi. Essa foi a segunda derrota do MPD e vitória para a nossa democracia: uma nova dinâmica de poder em Mindelo.

Os claridosos eram democráticos, revolucionários: “nós os novos devemos ser a consciência da nossa terra e desta geração” (pág. 86); “a vontade, que é do que precisamos, forjar-se na luta” (pág. 86); “a gente defende os interesses da terra” (pág. 103); “Chico Zepa subiu na parede do Cutelo e gritou ao povo: Gente, vamos governar a nossa vida, porque os ouvidos de filho-de-parida não nos querem ouvir gritando” (pág. 187).

Nenhum palaciano manda agora em São Vicente, pelo menos, não mais sozinho, agora é mesa de negociações! Essa foi uma vitória que abrilhantou a comemoração dos trinta. A birrinha vergonhosa do pai da democracia face à eleição de mesa demonstra que pouco se aprendeu sobre a democracia nesses trinta anos. Por isso, a terceira derrota do MPD e ganho para a nossa democracia foi o Tribunal Constitucional negar o provimento aos recursos interpostos, consequentemente, sinalizando que as instituições democráticas estão aí, apesar dos pesares.

Com a hegemonia bipartidária que temos, Cabo Verde ainda não saiu por completo da velha República, vivemos ainda resquícios do partido único, só que com outra roupagem, é uma espécie de oligarquia de poder. Temos duas feras digladiando-se literalmente, é liberdade versus democracia na mesma moeda, é uma disputa democrática crônica e insalubre. E pior, é nesse espírito de disputa pelo poder que o cabo-verdiano foi educado a enxergar tudo pelas lentes partidárias, desde o menor até o maior. O primeiro não interessa pela política, daí uma explicação plausível para as altíssimas taxas de abstenção, porque vê Res publica com “Res partido”, já o maior, os engravatados, vê a Res publica com “Res própria”, daí a importância do partido para tirar a casquinha.

No dia que o binômio deixar de ser o centro das atenções atingiremos um novo patamar democrático. Não se pode negar que os grandes passos dados por Cabo Verde até aqui se concentraram, em grande medida, na força política desses dois partidos. Mas, se por um lado, não podem morrer, por outro, eles não devem matar a nossa democracia com concentração de poder, mesmo que isso venha se dando pela via democrática ou com revezamento bonitinho, legal. É imprescindível um maior equilíbrio, onde quem governa não impõe como rei, onde a arrogância não impera; onde eleições não são ganhas a todo custo; onde votos não são comprados aos mil; onde vozes dissonantes e independentes não são combatidas ou penalizadas.

Hoje, a hegemonia bipartidária é um entrave à democracia cabo-verdiana, na medida em que os interesses republicanos são suplantados por interesses partidários. O ápice democrático que já se consolidou é: “como ganhar a próxima eleição?” E se para isso é preciso vender o país, assim será; se é preciso paquerar com o Chega, assim será. É a própria hegemonia bipartidária que tem corrompido o exercício do poder, mas se houvesse uma terceira força, pujante e distante da cultura política já criada, talvez as coisas seriam diferentes.

Que faremos? É um longo caminho! Pelo menos, em 2020, São Vicente nos apontou a sua pequenina luz para o futuro.  Só pagando para ver, resta saber se vamos seguir São Vicente ou manteremos a nossa democracia na prateleira. Se a resposta é “sigamos!”, então, a derrubada do partido único precisa ser consumada de vez e a oligarquia ser amenizada, a exemplo do que São Vicente começou agora a vivenciar.

MPD não gostou de 2020, né? E se fosse com PAICV seria diferente? Problema é deles, nós queremos é que a democracia saia do mundo das ideias, deixa de ser platônico e concretize cada vez mais na mesa das assembleias e na pratu di koitadu. Queremos que o poder não corrompe, que ele seja balanceado, “repartido”, não somos os EUA, o revezamento já deu, tem sido vazio, não satisfaz os anseios democráticos e interesses do país.

Os jovens querem assistir às sessões parlamentares com brio, vendo suas vozes representadas. Querem que os bafos das rixas ultrapassadas sejam renovados por outros ares, de preferência por Andrezinhos, por democratas que não usam a política como meio de ganha pão, mas sim sigam o exemplo do democrata Cabral, quiçá, pai ou avô da nossa democracia: “o poder vem do povo”; “ninguém deve ter medo de perder o poder” (Unidade e Luta, pág. 64).

Derrota do MPD em 2020 é vitória para nossa democracia? Não se trata das peripécias de gato e rato; do cachorro caçando o próprio rabo; do MPD ou do PAICV; de vitória de um ou derrota de outro; se trata do avanço que a democracia cabo-verdiana teve nesta eleição, independente dos resultados doces ou amargos deles! Na nossa jovem democracia, nem sempre as vitórias partidárias têm sido conciliáveis com os interesses democráticos. Nu avansa, demokrasia é ka sô abertura polítika ô eleisãu!

(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 7005, de  28 de Janeiro de 2021)

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