O riquíssimo e vasto espólio da Foto Melo poderá ganhar vida e ser dado a conhecer ao mundo. Um património de um valor histórico incalculável, retratado em cerca de 100 mil chapas ou negativos, que estão num processo de investigação, graças à antropóloga e fotógrafa portuguesa Liliana Rocha, que está a fazer uma tese de doutoramento sobre a família e a Foto Melo. Basta dizer que um dos irmãos Mello – José Henriques – está identificado como o primeiro fotógrafo de guerra português.
Em Cabo Verde, sobretudo na zona de Barlavento, raro é o lar que não tenha no seu álbum familiar fotografias tiradas pela Foto Melo.
A isso juntam-se instantâneos vários sobre o dia-a-dia de São Vicente e Santo Antão. Cenas como baptizados, casamentos, carnaval, desporto, chegadas de reis, ministros e governadores.
Pioneiro da fotografia nestas ilhas, uma parte importante da história deste arquipélago ficou registada pelas lentes e pelo olhar das sucessivas gerações de fotógrafos da família Melo.
Imagine agora que poderia ser possível, um dia, comtemplar e pesquisar sobre a história do Mindelo antigo, e a própria história da fotografia em Cabo Verde, através de um acervo fotográfico vasto e riquíssimo, de chapas e negativos, que permaneceram durante vários anos guardados na antiga casa Foto Melo, no Alto de Miramar, no Mindelo.
Primeira casa de um fotógrafo cabo-verdiano
Esse espólio pode estar, agora, em vias de ser recuperado, preservado e trabalhado para dar a conhecer aos cabo-verdianos e ao mundo uma ampla narrativa, não só sobre o desenvolvimento da sociedade mindelense, mas também de várias outras ilhas, que se esconde por detrás de cerca de 100 mil chapas que se estimam existirem, em cerca de 100 anos de história que deram vida à casa Foto Melo.
Segundo se sabe, a Foto Melo foi fundada em 1890 (fechou em 1992), por João Henriques de Melo (1871-1944), em Cabo Verde, mas não é certo ainda se a primeira casa terá nascido em São Vicente ou Santiago.
“Segundo a minha investigação, a Foto Melo foi fundada na cidade da Praia e, por volta de 1912, transferida para São Vicente. E acredito que durante algum tempo terá mesmo funcionado nas duas ilhas”.
Foto Melo foi a primeira casa de fotografia de um fotografo cabo-verdiano a ser edificada no arquipélago. Uma referência nacional que perdurou ao longo dos tempos e da história.
Mas, segundo a investigadora, na Ilha do Monte Cara, antes da Foto Melo, houve pelo menos uma outra casa de um fotógrafo belga, Maximilien Baumont.
Com negócios em Santiago e em São Vicente, a Foto Melo deixou, em ambas as ilhas, uma geração de fotógrafos, o mais conhecido acabou por ser Djessa Melo. Por isso, na história da fotografia em Cabo Verde, os Melos têm um lugar de realce.
Destino
Meio que por acaso do destino, a Foto Melo acabou por cruzar caminho com a fotógrafa portuguesa Liliana Rocha, uma amante de espólios fotográficos antigos.
“A primeira vez que vim a Cabo Verde, em 2016, visitei a livraria Nho Djunga, pois, na altura era a única referência de um fotógrafo cabo-verdiano que eu tinha, em Cabo Verde, e comecei à procura do espólio e fotografias de João Cleofas Martins, como ele se chamava, mas toda a gente me falava da Foto Melo. Diziam que do Nho Djunga havia pouca coisa preservada, mas que na Foto Melo havia um arquivo inteiro por explorar”.
E continua: “Então, depois regressei a Portugal, e como percebi que, relativamente à história da fotografia em Cabo Verde existia um longo caminho a percorrer, submeti um projecto de doutoramento na Universidade de Lisboa, que está a ser apoiado pela Fundação Para a Ciência e Tecnologia e consegui financiamento”, explicou Liliana em entrevista ao A NAÇÃO.
Estudo da fotografia em Cabo Verde
A tese de doutoramento, intitulada “Clichés identitários em Mindelo: estudo antropológico sobre fotografia em Cabo Verde a partir da Foto Melo (1890-1992)” debruça-se sobre o estudo da história da fotografia neste arquipélago, uma matéria que, segundo diz a nossa entrevistada, “se encontra ainda inexplorada”, centrando-se naquela que foi, outrora, a casa de fotografia mais importante de Cabo Verde.
“Com base no vasto arquivo da Foto Melo e nos retratos que foram feitos no estúdio do Alto de Miramar, na cidade do Mindelo, pretendo debruçar-me sobre questões que envolvem a representatividade e a complexa identidade cabo-verdiana”, revela.
Liliana Rocha está assim a estudar a história da fotografia em Cabo Verde, a partir do arquivo da Foto Melo.
“E, juntamente com a minha tese, surge a vontade de recuperar o estúdio da Foto Melo, que ainda é um sonho que eu espero que venha a tornar-se realidade. Com a recuperação do estúdio que ainda existe no Alto Miramar, recuperar também o arquivo, o espólio, e torná-lo acessível às pessoas”.
A vontade de recuperar o espólio da Foto Melo era de há muito um sonho antigo da família. Jorge Melo, actual guardião do arquivo e neto de Djindjon (João Henriques de Melo, fundador da Foto Melo) e sobrinho do conhecido Papim, Eduardo Trigo de Melo, o último proprietário do estúdio, explicou ao A NAÇÃO que há a tentativa de começar a recuperar o espólio, mas quanto há musealização não há para já nenhum projecto concreto.
“Estamos a ver se reedificamos a Foto Melo, noutros moldes, naturalmente, sem ser casa fotográfica, mas um museu, algo dedicado à fotografia e à família Mello. Estamos a trabalhar no levantamento do espólio, porque o espaço já foi assaltado duas vezes, misturaram as chapas.
Por isso há que tentar, primeiro, recuperar, guardar e conservar e, depois, dar um passo maior que é expor isso e pôr à disposição das pessoas”, conta Jorge Melo, sobrinho de Papim, garantindo que há negativos desde “1800 e troca o passo” até o momento da morte do Papim, em 1999, que foi já o último fotógrafo da família Melo.
Primeiras pesquisas
A Foto Melo, realça Liliana Rocha, teve dois fotógrafos principais, João Henriques de Melo (fundador) que em Cabo Verde era conhecido como Djindjon de Melo, e, depois, passou então para Eduardo Trigo de Melo, “Papim”, o filho que deu continuidade à Foto Melo.
“Mas todos os filhos do Djindjon de Melo chegaram a trabalhar na Foto Melo. Ele teve nove filhos homens e todos chegaram a trabalhar na Foto Melo, à excepção de Manuel Lima de Melo (que morre com um ano de idade).
Tendo como base a recolha de elementos para a sua tese, Liliana Rocha já está a analisar e a fazer a limpeza e digitalização de algumas fotografias, um projecto que espera que venha a ter continuidade.
“O projecto não pode morrer aqui e ficar simplesmente nas prateleiras de uma biblioteca. Tem todo o sentido dar continuidade ao que começámos a fazer e recuperar o estúdio e tentar torná-lo acessível às pessoas, também”, defende.
Riqueza fotográfica
O trabalho da tese está no reinício, depois de ter sido interrompido pela pandemia, mas Liliana Rocha já começa a ter ideia da riqueza fotográfica do espólio que encontrou.
“Estive cá o ano passado para tentar fazer esse trabalho e, precisamente na altura em que acontece a pandemia, fui repatriada para Portugal, e só estive cá um mês e duas semanas. Voltei no dia 1 de Fevereiro e estou ainda nesta nova etapa mas para já dá para perceber que existem imensas fotografias do Mindelo antigo, do Porto, vistas do Mindelo das primeiras décadas do séc. XX.”
Aliás, como realça, a actividade da Foto Melo na ilha de São Vicente começa ligada à vida do Porto Grande do Mindelo, cujo crescimento foi bastante impulsionado pelos ingleses.
“A fotografar os barcos que chegavam ao Porto, a fotografar os marinheiros e a vender as fotografias aos marinheiros, portanto, existem muitos retratos de pessoas que passam pela ilha, mas também reportagens de algumas figuras importantes que chegavam ao Porto do Mindelo”, revela.
Contudo, a investigadora também adianta que a grande maioria do espólio contém reportagens e retratos das pessoas que viviam e vivem no Mindelo.
“Temos retratos desde o início do século XX até à década de 90, sejam retratos de família ou fotografias tipo passe, as carinhas para o Bilhete de Identidade e Passaporte e, ainda, imensas reportagens, como, por exemplo, dos bailes de Carnaval no Grémio, no Castilho, no Consulado ou no Éden Park. E ainda reportagens sociais como casamentos, comunhões e funerais.”
Vandalismo
Em termos de equipamentos fotográficos antigos, “infelizmente”, já não há nada no espólio e estima-se que a maior parte tenha sido roubada.
“Temos ainda duas luzes de estúdio, mas máquinas fotográficas já não existe nada”.
Segundo conta Jorge Melo, já tinha sido feito um trabalho de pré-selecção do material existente, mas a Foto Mello foi assaltada e os ladrões, pensando que havia alguma coisa de útil nas caixas, vandalizaram e acabaram por misturar “centenas e centenas de caixas, com milhares de chapas”.
“Misturaram inclusive a data dos eventos que já estavam todos separados. Então vai ser um trabalho de muito tempo. Não é um trabalho que se faz em meia dúzia de meses, nem num ano sequer. Mas, o trabalho que estamos a fazer agora, fundamentalmente, é de conservação desse material”.
Agora, com a tese de Liliana em curso, e dado que para se proceder à investigação é necessário um pré-trabalho de organização e limpeza do material fotográfico, este “sonho” começa a ganhar forma. Uma forma que todos esperam que se venha a concretizar dada a sua relevância patrimonial e cultural para a história de Cabo Verde.
Primeiro fotógrafo de guerra português
José Henriques de Mello, irmão de Djindjon, fundador da Foto Melo, em Cabo Verde é apontado como o primeiro fotógrafo de guerra português, título que dá nome inclusive a um livro de Alexandre Ramires e Mário Matos e Lemos.
Ambos eram filhos de pai português e mãe da ilha de Santiago. José Henriques, ao que consta, acabou por emigrar de Portugal para os Estados Unidos da América, onde terá falecido.
A sinopse da obra relata que o livro serviu precisamente para dar a conhecer o nome e a obra do primeiro fotógrafo de guerra português, José Henriques de Mello, que, na então Província da Guiné, efectuou algumas dezenas de fotografias da campanha 1908, que contou com uma força expedicionária enviada pelo governo português e chefiada pelo governador, 1.º tenente João de Oliveira Muzanty. Campanha essa que fez um século em 2008, ano em que o título foi lançado pela Editora da Universidade de Coimbra.
Mas a história dos irmãos Melo não se confina, pois, apenas às ilhas de Cabo Verde nem a Portugal. “Eles (João e José Melo) tinham a sociedade Melo & Irmãos e chegaram a trabalhar juntos. Existem alguns anúncios na imprensa portuguesa da Foto Melo em que fazem precisamente publicidade às fotografias de Cabo Verde e da Guiné. Essas fotografias que eram vendidas da Guiné, são, no entanto, todas do tempo de João Henriques de Melo, o fundador da Foto Melo.”
Isto porque, segundo aquela investigadora, Papim, que dá continuidade ao estúdio em São Vicente, nunca trabalhou na Guiné.
“E é possível que João de Melo tenha estado ainda em Benguela, Angola. Encontrei algumas fotografias assinadas que sugerem tal, mas tudo isto são coisas que requerem muita investigação. Tenho algumas pistas, agora é pegar no novelo e desenrolar a ver onde vai dar”, conta a investigadora Liliana Rocha.
Património único no mundo que deve ser preservado
Liliana Rocha mostra-se expectante com as suas pesquisas relativas aos acervo da Foto Melo, em São Vicente, porquanto, como reforça, “não existe praticamente nada sobre a história da fotografia em Cabo Verde”, mas também porque, como argumenta, este arquivo não é “só um caso único para Cabo Verde”, “é um caso raro no mundo e, por isso, escolhi a Foto Melo como objecto da minha pesquisa”.
“Foi um acaso”, diz, explicando que foi numa viagem de férias, que realmente descobriu que existia um espólio da Foto Mello. Mas, conforme elucidou, à medida que o tempo passa, “vou apercebendo-me o quão realmente especial é este arquivo, o quão único é no mundo. Estamos a falar de fotografias com mais de 100 anos e estamos a falar de um arquivo que permaneceu intocável. As portas foram fechadas porque o Papim morreu. As fotografias e os negativos ficaram intactos dentro de quatro paredes. É uma coisa muito rara”.
Segundo diz aquela investigadora, a maior parte das fotografias (não todas, porque também há fotografias degradadas devido à “humidade, condições atmosféricas e dejectos dos animais”), cerca de 70%, estão em “muito boas condições”.
Um acervo e um património que deve e merece ser preservado e dado a conhecer, ainda por cima numa ilha, São Vicente, onde o hábito de fotografar e se deixar fotografar começou bastante cedo.
“Temos 100 anos de história de fotografia, 100 anos de história da evolução da sociedade mindelense, mas não só, porque também há fotografias de outras ilhas, Fogo, Santo Antão, Santiago, São Nicolau, ou seja, há aqui uma história da fotografia e um património que pertencem a Cabo Verde e não unicamente a Mindelo”, conclui.
(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 707, de 18 de Março de 2021)