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Diáspora

Emigrante, activista social, professora e antiga jornalista da RAI-1: “Lou”  de Jesus vive entre Itália e Cabo Verde

Foi rosto de um dos programas mais badalados, populares e bem conhecidos da RAI-1 (Radiotelevisão Italiana): “Nonsolonero“ (Não só preto). À semelhança de várias outras “menininhas” de São Nicolau, Maria de Lourdes Jesus – “Lou” para os mais chegados – cedo deixou a sua “Ilha de Chiquinho”, escalando Lisboa (Portugal), antes de aportar Roma (na Itália), nos ano 70 do século passado. Presentemente, reparte os dias do ano entre Itália e Cabo Verde, onde gostaria de passar a maior do tempo da sua reforma.

Quando “Lou”chegou à “Cidade Eterna”, aliás, Roma, quase que inexistiam comunidades de origem africana. As existentes eram oriundas da Somália, Etiópia e Eritreia, reconhecidas como refugiados.

Por via disso, “Lou”e as restantes patrícias frequentava, o Movimento Tra-noi, ponto de encontro nos dois dias livres da semana: quinta-feira e domingo.

“Cada uma vivia  no seio da comunidade, que protegia os próprios elementos e como forma de defesa exterior, exercitava um forte controlo social sobre o comportamento de cada uma”, conta, realçando que, na altura, “excepto  em alguns casos, não sofremos o racismo e nem sequer tínhamos a noção do que era o racismo e como se manifestava“.

As comunidades presentes (constituídas na maioria por mulheres) na Itália, eram tão silenciosas nos anos 70, que “foram definidas como mulheres invisíveis“.

E lembra: “Era essa a visão que a sociedade italiana dos anos 70 tinha em relação aos imigrantes. Ninguém incomodava ninguém. A sociedade italiana estava muito ocupada nesse período de luta pelos direitos sociais, como divórcio, interrupção voluntária de gravidez, direito sindical, paridade de género. Essa luta tornou-se também a nossa. Luta por uma sociedade de direitos, aberta, mais democrática e mais civil“, recorda, remarcando que,  “anos depois, através das associações cabo-verdianas, uma parte da nossa comunidade encontrava-se nas reuniões e nas manifestações, com a mesma categoria de pessoas a reivindicar os direitos, a favor dos imigrantes“.

Itália de hoje

 A situação começou a mudar no fim dos anos 80, com episódios de intolerância e racismo, no começo dos anos 90. 

“Os imigrantes começaram a aumentar-se em número, a organizarem em associações, a reivindicarem os direitos sindicais, a tomarem posição política, a participarem nas manifestações, a exigirem um tratamento de paridade com os trabalhadores italianos e a cidadania, a organizarem encontros nas escolas, a publicarem livros e a exigirem espaço mediático“, conta “Lou”, acrescentando que os imigrantes –  e a comunidade cabo-verdiana,  em particular -, aproveitaram-se da nova Lei da Imigração (“Legge Martelli – 1989“), para fazerem a reunificação familiar.

A percepção desse extraordinário fenómeno social provocou na sociedade italiana reacções várias: a maioria concorda e luta com os imigrantes para uma política de integração como única alternativa possível para combater a xenofobia e o racismo, em fase crescente na Itália e na Europa, mercê dos partidos de direita e de extrema direita, que instrumentalizam o fenómeno migratório, classificando os imigrantes como responsáveis pela crise que o País está atravessando.

Discrição

Quando “Lou”  chega a Roma, já havia um grupo significativo de cabo-verdianas, sobretudo de São Nicolau, que era a “tábua de salvação“ para os recém-chegados.  

No caso de apoio material, a comunidade resolve o problema (ainda hoje), de forma muito inteligente e é capaz de ser muito discreta para não desagradar a pessoa. 

”Os cabo-verdianos sempre souberam desenrascar-se, seja a nível individual, quer a nível comunitário, de forma extraordinária”, remarca “Lou”, frisando que constituiu uma rede resistente de relações, que soube transmitir informações, e, indiretamente, preparou os seus elementos a uma futura inserção na sociedade italiana.

Porém, na avaliação da antiga jornalista da RAI-1, o nível da inserção depende, também, da força e da consciência que se tem da identidade cultural. 

”A primeira geração tem essa consciência e goza de todas as condições para uma inserção desejada e merecida na sociedade italiana. Mas o obstáculo principal é que vivemos num País com um Governo instável, sem uma política séria, que facilite uma inserção digna aos imigrantes e que a nossa comunidade reivindica há anos, através das associações e, agora, através dos filhos dos cabo-verdianos”, avalia.

Bolsa “Willy Monteiro”

Recentemente, a comunidade cabo-verdiana na Itália foi abalada pelo brutal assassinato do jovem Wilson Duarte Monteiro, de ascendência são-nicolauense.

Depois desse “bárbaro assassinato“, a Direcção da Associação Tabankaonlus decidiu atribuir à Bolsa de Estudo – que já existia -, o nome de Willy, para honrar a sua memória.

Criada em Julho de 2004, Tabankaonlus é formada por amigos cabo-verdianos – da primeira e segunda gerações -, que vivem há muitos anos na Itália, assim como,  de amigos e profissionais italianos, que “amam as ilhas de Cabo Verde“.


A colectividade pretende contribuir para o desenvolvimento integrado das ilhas e para a difusão da Cultura de Cabo Verde na Itália. Já realizou projectos nas ilhas de Santiago, São Nicolau, Angola e Guiné-Bissau

Em 2017, assinou um Protocolo de Parceria com a Câmara Municipal da Ribeira Brava (em São Nicolau), onde atribui uma bolsa de estudo ao melhor aluno ou aluna do liceu, cujos pais não dispõem de condições para sustentar um curso universitário ou profissional.

Já foram contemplados três jovens, nas áreas de Educação Física, Direito e Educação Artística.

Neste ano lectivo de 2020/2021, foram distinguidos um jovem de Carvoeiro, estudante de Medicina, na cidade de Bragança (Portugal); e uma jovem de Água das Patas, formanda em Análise Química.

 “Nonsolonero“ 

“Lou” foi rosto do Programa “Nonsolonero“ (“Não só Preto“), por mais de dez anos, emitido aos domingos, logo depois do Telejornal das 13H30.

“O objectivo era, sobretudo, dar informação capaz de contrariar a imagem negativa e estereotipada que boa parte dos italianos tinham dos imigrantes. Teve um grande sucesso, mas, em 1994, quando entrou o Primeiro-Ministro, Silvio Berlusconi”, lembra, renmarcando que, como é o director que ”decide a vida ou a morte das rúbricas do Telejornal”, este “não estava interessado no programa”.

Apresentou, também, o Programa Radiofónico “Africa Afrique” – também na RAI -, que se ocupava, exclusivamente, de dar uma imagem positiva e fortemente cultural do continente africano.

“Foi um programa que me deu muita satisfação. Adorei apresentar o Continente, através dos grandes nomes da música africana”, destaca.

”Permesso di Soggiorno” (Autorização de permanência) foi um outro programa, onde trabalhou até 2009. ”Decidi parar porque, as condições mudaram: mudança contínua do horário, limitações e censura travaram a minha capacidade criativa. Foi por isso que decidi concluir a minha experiência profissional com a RAI”, reporta “Lou”, lembrando que colaborou com várias revistas italianas, sempre sobre o tema da Imigração.

Quando chegou à RAI, em 1988, Cabo Verde ainda era designado, na Estação,  por “Colónia Portuguesa“, malgrado estar independente havia 15 anos.

 “Fui eu mesma a pedir que fosse actualizado. Sabiam muito pouco de Cabo Verde e da nossa Imigração“, relaça, lembrando que foi entrevistada por quase todos os jornais e revistas italianas e até pela “National Geographic“, uma vez que, nessa época, era uma grande novidade para os espectadores, que estavam habituados a ver África e os africanos, “somente através de casos de fome, doenças, ditadores, massacres ou bailarinas“.

 Tempo pandémico

A primeira fase de covid-19 foi uma tragédia para a Itália.

“Foi uma fase dramática, que deixou a população, e, sobretudo, os familiares das vítimas, a sofrerem por ver o pai e avô a sair da própria casa para o hospital e nunca mais voltar. Nem sequer,  no momento mais doloroso, o  da sepultura, tiveram a oportunidade de os ver para o último adeus. Estamos na segunda fase e a viver  a mesma tragédia. É tudo muito triste e angustiante“, narra “Lou”.

Quanto aos cabo-verdianos, a activista social e antiga jornalista confia muito no respeito que a comunidade sempre manteve, em geral, perante a Lei e a Cultura desse País europeu. 

 Certamente – prossegue “Lou” -, vamos continuar, nesta segunda fase de covid-19, “a comunicar-nos entre nós, através da rede social, partilhando novas experiências que antes não eram possíveis“.

E revela: “Como eu, muitas outras pessoas da comunidade, criaram uma Página no Facebook, onde enviavam fotos, vídeos com dança, receitas, jogos com as crianças, contos e desenhos. Certamente, desta vez, a comunidade estará melhor preparada, para enfrentar o segundo confinamento geral, que está quase a chegar“.

Nova vida

  Um dos grandes projectos de “Lou” foi a aquisição de “uma casa bela e grande, como deveria ser“, no seu São Nicolau-natal,  com a intenção de viver com o seu marido, na reforma, entre Cabo Verde e Itália.

Só que, depois de um período no Arquipelago, ela ficou “magoada e desilidulida“ com alguns problemas com que se deparou.

“A falta de responsabilidade e o respeito pela ética profissional, que representam a maturidade atingida numa sociedade, são muito reduzidos e nem sempre os representantes de instituições dão o bom exemplo. Outro aspecto que me chocou, foi a delinquência e a dificuldade das instituições em combatê-la. Desiludiu-me o nível de escolaridade bastante alta dos alunos, mas, com uma preparação muito fraca do ponto de vista do pensamento crítico e da atitude de muitos deles perante o futuro“, revela ao  A NAÇÃO.

De todo o modo, a sua casa está lá, à sua espera, “na esperança de que não venha, novamente, a ser assaltada“.

E conta que ja foram duas vezes: na primeira, estava em São Nicolau, mesmo em casa, enquanto que, na segunda, estava em Itália.

“A insegurança é, também,  mais um problema para mim. É algo que não consegui ainda superar“, vinca, acrescentando que, presentemente, vive em Roma,  com o marido, elaborando alguns projectos de cooperação entre Cabo Verde e Itália, que, aliás, é uma área que gostaria de continuar a empenhar-se, embora seja muito difícil neste período pandémico.

Enriquecer os fundamentos da História

  “Lou“ defende que os jovens, filhos de cabo-verdianos, deveriam apoderar-se da herança da primeira geração, para enriquecerem e reforçarem os fundamentos da História, no contexto italiano.

“Estão em condições de individualizarem e analisarem os perversos mecanismos, que impedem e bloqueiam o avançar dos filhos dos imigrantes na sociedade italiana e na Europa. Detêm os instrumentos culturais suficientes para compreenderem o funcionamento desses mecanismos e utilizá-los a seu favor“, sustenta, remarcando que a primeira geração goza de uma  grande vantagem, uma vez que são, quase todos, cidadãos italianos, dominam a língua, conhecem bem essa Cultura e, sobretudo, não são e nem se sentem imigrantes.

Aos mais novos, “Lou”desafia-lhes a não deixar que os outros decidam o futuro deles.      

Viagem triangular: De Cabo Verde à Italia…. com escala em Portugal 

O destino da Emigração de Maria de Lourdes “Lou”Jesus começou por Lisboa (Portugal), com a tenra idade de 12 anos.

No ano de 1968,  uma senhora pertencente às grandes famílias de São Nicolau, chegara à então Vila da Ribeira Brava à procura duma “menininha” trabalhadora e educada. Alguém informara-lhe que a mãe de Lou”, a Senhora Camilita, tinha uma filha com esse perfil.

Com a mãe e (sem pensar na idade e nas consequências), decidiu-se pela sua ida a Lisboa, a fim de trabalhar como doméstica, no seio de uma família de quatro pessoas.

“Foram três anos de humilhação, que terminaram, graças à minha irmã mais velha, Maria Sílvia, já emigrante na Itália e, depois de seis meses,  fez-me também chegar a Roma, a exercer o mesmo trabalho“, revela “Lou, ao A NAÇAO.

Chega a Roma a 7 de Maio de 1971, aos 15 anos. Foi trabalhar numa família constituída por um casal, já com idade avançada, mas, “de espírito jovem“. Adaptou-se bem a esta nova família e o relacionamento foi de longe melhor do que aquele com a família lisboeta. O “único problema era a saudade, muita saudade“, de Cabo Verde.

Teve conhecimento da existência da (então) Escola Portuguesa em Roma, uma emanação do Ministério da Educação do Governo Português, que ministrava os cursos Primário e Secundário (Liceu).

Muitas das alunas dessa Escola já pertenciam “a um grupo politicamente muito activo“, que falava de Amílcar Cabral e trocava informações sobre a Luta de Libertação e da urgência de “criarmos uma associação de cabo-verdianos“ em Itália.

“Tive a felicidade de participar no pioneirismo associativo cabo-verdiano em Itália. Foi através do encontro com esse grupo dinâmico de cabo-verdianas na Escola Portuguesa de Roma, que tomei consciência da importância da Educação como ferramenta fundamental da nossa integração e da nossa libertação, saindo da inocência e da alienação que, de certa forma, nos caracterizava“, destaca.

 Terminado o Liceu, inscreve-se na Universidade Salesiana, no Curso de Pedagogia e Comunicação Cultural.  Durante oito anos, foi professora de Alfabetização de Adultos e de Matemática.

“As alunas eram todas cabo-verdianas. Apliquei o método de Paulo Freire para a Alfabetização e adaptei os manuais de alfabetização utilizados em Cabo-Verde; e com bons resultados“, salienta, garantindo que uma das maiores emoções da sua vida,  como professora, foi a de acompanhar, passo-a –passo, “as alunas, pessoas adultas,  a aprender a ler e a escrever, até atingirem a sua autonomia“.

 Em 1988, numa das suas aulas,  recebe a visita de Massimo Ghirelli, o idealizador do Programa Nonsolonero, da RAI, que foi filmar o curso. Alguns dias depois, contacta-lhe a propor-lhe a sua participação no programa que estava preparando sobre a Imigração em Itália: “Nonsolonero“ (“Não só Preto“). 

(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 690, de 19 de Novembro de 2020) 

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