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Colunistas

“Ditos de alguns que mais me prouveram”

 

 

Por: Arsénio Fermino de Pina*

O Coronavirus não nos dá folga e até nos vai presenteando com uma nova mutação para nos atingir mais fácil e rapidamente, incluindo as crianças, embora se presuma com malignidade igual, sendo nossa esperança as vacinas já disponíveis que se espera venham a pôr cobro à sua expansão. Por ora, a defesa mais eficaz é o respeito das recomendações da Direcção Geral de Saúde e da OMS, o que nos obriga também a um recolhimento caseiro com saídas mínimas à rua e afastamento de ajuntamentos. Para quem aprecia ler, a alternativa é evidente, leituras novas e recapitulações de livros já lidos e guardados. É o que tenho feito, deparando-se-me descobertas até em revisões de releitura de livros e dos meus canhenhos. Iremos falar-vos de política e pouco mais, de braço dado com comentadores políticos e escritores: Pacheco Pereira, historiador que já vai no V livro sobre a História do PCP, Fátima Bonifácio, historiadora, António Barreto, sociólogo e ex-ministro da Agricultura no pós 25 de Abril, José Mendes Gil, filósofo, Isabel do Carmo, médica que se formou no mesmo ano que eu, pertenceu às Brigadas Revolucionárias, lutadora anti regime Salazarista e que somente em 1970 é que conseguiu fazer o doutoramento e ser, posteriormente, professora universitária na Faculdade de Medicina, e alguns outros cuja identidade assinalo.

Têm aí as fontes onde fui buscar esses ditos. Quem conhecer os intelectuais de peso dessas fontes identificará os seus escritos, quem os desconhecer terá o benefício de descobertas edificantes. Irei proceder, como o grande cronista Fernão Lopes escreveu numa das suas crónicas: “É minha intenção curtamente falar, não por próprias palavras achadas, mas reunir em breve molho os ditos de alguns que mais me prouveram”. Algumas tiradas são mesmo minhas.

Para quem não me conhece devo informar que possuo os ideais e os valores da esquerda não extremista, em particular o respeito do outro e a procura obstinada do interesse geral.

Vejamos, então, o que seleccionei.

# Hoje, as regiões europeias e os poderes regionais eleitos na Dinamarca e Suécia, Suiça e no Canadá, quatro países desenvolvidos descentralizados no mundo, são agentes políticos ouvidos, respeitados, considerados e sempre presentes na agenda dos governos desses países. A estrutura centralizada, há muito em vigor, não tem resultado; apenas beneficia os grupos de interesse e as burocracias acantonadas na capital, sem a participação das regiões enquanto agentes de desenvolvimento. A cegueira centralista não consegue ver que a descentralização e a regionalização são, nos nossos dias, um imperativo de equidade democrática e de desenvolvimento integrado – acrescento eu, que deveríamos implementar em Cabo Verde.

# A desintegração das sociedades plurais do Levante – nome por que o Médio Oriente era conhecido – causou uma degradação moral irreparável que afecta actualmente todas as sociedades humanas e desencadeia, no nosso mundo, barbaridades impensáveis – lapidações, decapitações, crucificações, linchamentos, tudo filmado e divulgado para exibir. Antes, a nação árabe era respeitada, tinha um projecto, ainda não corria perigo nem caíra no ódio de si próprio. Quem é que acredita hoje que o judeu Maimonide escreveu “O Guia dos Perplexos” em árabe? Foi a partir do Levante que as trevas começaram a espalhar-se pelo mundo. A crise principal ocorreu quando os países produtores de petróleo (OPEP) impuseram um embargo com subida do preço do barril para protestar contra o auxílio dos Estados Unidos ao Governo de Israel durante a guerra com o Egipto e Síria em 1973.

Brezinski, conselheiro na Casa Branca, polaco, pediu aos seus aliados – sunitas, egípcios e pakistaneses – que enviassem aos mujahedines no Afeganistão dinheiro, armas e voluntários dispostos a lutar contra os comunistas ateus, como nos relata o escritor Amin Maalouf.

# Num mundo tão interdependente como o nosso – e se dúvidas houvesse sobre a nossa paróquia global, bastaria pensar no trágico exemplo do Covid-19, que mostra bem como um surto num remoto recanto do globo se pode transformar, subitamente, numa pandemia – devemos reforçar a cooperação e a solidariedade mundiais, ou será a espécie humana que estará em risco de perecer.

# O que se chama apocalipse, e, pela primeira vez na História, anunciado pela racionalidade científica, e não pelas seitas milenaristas, proféticas e religiosas, anuncia a possibilidade do fim da espécie humana. Temos que mudar radicalmente o nosso comportamento, dando prioridade absoluta ao interesse da comunidade em vez do interesse pessoal e de uma facção.

# Paul Valéry, um poeta francês conservador, dizia que a política era a arte de fazer que as pessoas não se intrometessem naquilo que lhes dizia respeito. Uma revolução é exactamente o contrário, um extraordinário momento em que as pessoas decidem tomar a vida nas suas mãos: onde e como vão trabalhar, quem aceitam como dirigentes, onde vão viver, em que escola os seus filhos estudarão … Milhões de pessoas vivendo do seu trabalho, durante anos e décadas, aceitam que tudo seja decidido por outros, e, de um momento para o outro, passam, através da revolução, a decidir por elas próprias. Um parto difícil, mas belo, que muito raramente se realiza. (Raquel Varela). Não me lembro de nenhuma revolução que se tenha realizado integralmente, a não ser no início … para animar a malta ou enganar papalvos.

# Tudo que é belo na vida exige paixão, afectos positivos, como dizia Espinosa.

# Há um recuo da cultura de humanidades e de democracia nos últimos tempos. Esse sistema de valores não nos protege em absoluto contra a barbárie, mas ajuda. Não é por acaso que todos os antidemocratas se manifestam contra essa tradição iluminista que foi historicamente muito importante nos debates e decisões na independência dos Estados Unidos, e preferem falar das perversões do jacobinismo. Esta cultura de humanidades é uma cultura, implica conhecimentos, saber, referências, capacidade para viver experiências indirectas, também é livresca porque implica ler livros e não pensar que uma dúzia de simples competências num computador ou num telemóvel a substitui. Um exemplo típico do que é uma resposta bárbara foi a de Millian Astray, legionário mutilado da Guerra Civil Espanhola, que dizia que sempre que ouvia falar de cultura puxava da pistola.

# A democracia é, segundo a definição clássica, o governo do povo pelo povo. Esta definição, tomada à letra, à semelhança do que faz muita gente da Bíblia e do Alcorão, que levou à Inquisição e ao Extremismo Islâmico, conduziu à sangrenta ditadura da II República Francesa (1792-94). Nasceu depois a democracia representativa, ou seja, um sistema político em que escolhemos quem nos representa. Teoricamente, claro. Na prática e na realidade, de um modo geral não nos revemos em quem elegemos, na sua maioria ilustres desconhecidos acerca de quem nada sabemos. […] Em todos os países, os eleitores sabem que estão a votar em partidos, não em indivíduos. Quer dizer, todas as democracias representativas, em menor ou maior grau, degeneram em partidocracias, o reino das responsabilidades impalpáveis e difusas. O Estado neoliberal que se lhe seguiu mais tarde após a ruína do comunismo, e nos vem iludindo nos últimos trinta anos, tem sido incapaz para proteger os cidadãos, reconfigurando-se para entregar essa protecção ao sector privado, de que são expressão o desinvestimento no SNS, a privatização da saúde sob a forma das problemáticas parcerias público-privadas, da educação, da segurança social e de outros serviços e instituições.

# Em Portugal, o seu Estado de direito pode facilmente ser posto em causa face aos atrasos da justiça, especialmente em casos de corrupção, à prática impune de violação do segredo de justiça, à desigualdade de tratamento pelo sistema judicial dos pobres e das mulheres, ao primado do Estado em qualquer processo entre cidadãos e a Administração Pública.

# É preciso desconfiar da inteligência quando atropela o caracter, fere a autenticidade ou desmonta a coerência.

# Por último cito a colega Isabel do Carmo, que nos recorda os limites da social-democracia, atribuindo, de entre os comentadores políticos, a José Pacheco Pereira, a virtude de fazer análise marxista das classes. Diz ela que a esquerda não extremista pode ter esperança. Apesar de tantas derrotas, se olhar para trás, as grandes conquistas para a Humanidade, que hoje são assumidas pela maioria como suas, fazem parte dos movimentos e partidos que lhe pertenceram historicamente. Desde que a esquerda se chama esquerda, portanto, desde a Revolução Francesa, que foi ela que as obteve: que cada ser humano seja cidadão e não um súbdito, com direitos iguais para todos; que se tenha obtido o fim da escravatura; que tenha saído vitoriosa a luta pelo sufrágio das mulheres; que se chegasse à jornada de oito horas, nas weekends, às férias pagas, às caixas de reforma, ao fim do trabalho infantil, aos serviços estatais de saúde e educação. Que haja igualdade de género e origem geográfica, pelo menos na lei; que haja liberdade de escolha sexual. Estas são as vitórias que caracterizam a esquerda, são o seu curriculo, e não os slogans, as frases feitas e as liturgias. Muita direita dirá que também está de acordo e que isto é adquirido. Pois … Agora. Todavia, são fruto de muitas batalhas, donde se deduz que a esquerda, com mais ou menos derrota, tem de ir prosseguindo a sua luta, por vezes passo a passo.

Parede, Janeiro de 2021                                                                  

*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)

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