Por: Ricardino Neves
A recente nomeação de Óscar Santos para Governador do Banco de Cabo Verde suscitou um mar de reacções , na sua maior parte de desagrado .
Não faltaram os defensores da indicação defendendo-a como normal , apresentando os seus argumentos .
Lendo e ouvindo os argumentos duns e doutros fica no ar a grande questão do que se pode ou se deve entender como normal no acesso a cargos/funções de importância para a Nação .
Temos de fazer uma viagem pela nossa história mais recente para avaliar como aconteceram as coisas e como chegamos aos actuais modos de designação dos cargos.
O período colonial está repleto de episódios autoritários característicos dum poder ditatorial . Isso não obsta que se reconheça algum princípio orientador daquilo que se pode definir como carreira na função pública com normas que ordinariamente se respeitavam .
As excepções eram isso mesmo excepções, num universo de normalidade e essas excepções podem ser atribuídas a desvios da natureza própria do regime, não sendo também alheios as questões devidas à natureza humana sempre presentes .
Com o advento da independência e com a assunção do poder pelo PAIGC ele cedo se viu confrontado com a necessidade de continuação do Estado enquanto organização .
Começou por dar continuidade à maioria das normas e regras da anterior administração e cedo teve que preencher as chefias que surgiram devido ao vazio motivado pelo ida de muitos quadros da Administração Colonial para Portugal .
E aí começou a designação de pessoas para desempenho de funções de chefia , sem que muitas preenchessem os requisitos de qualificação desejáveis mas que as circunstâncias acabaram por impor .
E nessas nomeações de circunstância começam também a aparecer o sinal nocivo de militantes que arvoravam essa condição para justificar e, nalguns casos ,até mesmo forçar o acesso a esses lugares de chefia .
Começou aí a tomar corpo a ideia de acesso a chefia como retribuição para a condição de militante de organização partidária.
Enquanto perdurou o regime monopartidário em Cabo Verde não poucas nomeações para cargos importantes do aparelho do Estado e das Empresas Públicas que entretanto surgiram foram sendo objecto de questionamento.
Esses questionamentos, mais ou menos públicos e dentro daquilo que o regime político vigente permitia, expressavam o sentimento progressivo da sociedade cabo-verdiana para uma desejável cultura de mérito.
E é proclamando a mudança , mudança essa num sentido de quase pura tecnocracia, que o MPD surge na disputa politica em 1990 e ganha as eleições em 1991 .
Mas essas esperanças de mudança no sentido de dar lugar ao mérito muito cedo se desvaneceram com as primeiras nomeações do novo poder eleito .
A isso não eram alheios a influência da base dos militantes e apoiantes do MPD pressionando a direcção do Partido para o acesso a lugares ambicionados no aparelho do Estado e das Empresas Publicas .
A chegada da democracia multipartidária veio assim quase que institucionalizar a prática do acesso a lugares de chefia com base na pertença e grau de militância na estrutura partidária .
E isso contrariando a progressiva reivindicação pela sociedade cabo-verdiana duma cultura de mérito.
Na transição do poder colonial a substituição de chefias se deveu a um vazio existente que precisava ser preenchido . Os então detentores de chefias foram-se embora e levaram com eles a nostalgia dum tempo que se foi.
Em 1991 a situação foi outra . Tratou-se duma substituição de uns por outros, na maior parte das vezes pela simples e única razão de estes serem apoiantes ou próximos dos novos detentores do poder.
E essa mudança ditou de forma profunda um modo de agir para a indicação de pessoas para o desempenho de funções de chefia em Cabo Verde.
Esse modo de actuar teve como consequência evidente o desagrado e o ressentimento daqueles que em 1991 desempenhavam funções e que seriam na maior parte militantes e (ou) simpatizantes do PAICV .
E criou-se assim uma cultura de que ganhando o poder é tempo de substituir pura e simplesmente as chefias ,a todos os níveis ,de alto a baixo.
Quando o PAICV retoma o Poder em 2001 e perante uma certa hesitação do novo Poder surgiram vozes dentro do Partido reivindicando alto e bom som que “agora é a nossa vez”.
E em 2016 o MPD, uma vez no Poder ,retoma a mesma saga, varrendo os detentores nos diferentes escalões para aí colocar os seus .
Com essa prática os Partidos , que representam uma parte minoritária da sociedade, fazem o Estado e toda uma Nação refém da sua lógica .
E desfazem a legítima aspiração de qualquer quadro da Administração Publica ou do Sector Empresarial do Estado de pretender fazer carreira e assim naturalmente poder aceder, por mérito, a lugares de chefia na respectiva estrutura administrativa ou empresarial pública.
Ao contrário ,privilegia-se a condição da disponibilidade dum cartão de militante ou a manifestação de vária forma da condição de simpatizante como elemento chave para aceder a esses lugares de chefia.
Mesmo dentro dos Partidos essa prática de acesso a lugares de topo, com elevado grau de intransparência tem provocado não poucas situações de tensão e até rupturas no seu próprio seio.
Concluindo as reflexões acima referidas os Partidos preferem adoptar mecanismos de acesso ou de designação de forma subjectiva, opacas, longe de normas e regras transparentes e que se apliquem a todos os que legitimamente aspiram exercer esses cargos .
Talvez por isso que não existe uma clara definição do que é aquilo que é função de carreira e aquilo que é função política, preferindo-se que não haja regras claras para que a capacidade de manobra e de manipulação dos detentores do Poder sejam tão amplas quanto possível .
Façamos uma breve reflexão sobre a recente nomeação de Óscar Santos para Governador do Banco Central.
Apresenta-se como factor de relevo que Óscar Santos é quadro do Banco central . Da biografia “oficial” não se indica desde quando , uma omissão que suscita interrogações .
Ele desligou-se do BCV desde 2008 para abraçar a carreira autárquica na Câmara da Praia, primeiro como vereador e depois como Presidente .
E refere-se que foi Director de dois projectos que lhe absorveram tempo fora do Banco que também não se indica. Terá passado fora do Banco pelo menos uns 15 anos, os últimos 12 na Câmara.
Nessa situação se pode questionar se está em melhores condições que os altos quadros que nesse mesmo tempo se dedicaram de corpo e alma na actividade do Banco, adquirindo conhecimentos e competências que Óscar Santos não teve.
Como vereador das Finanças e Comércio da Câmara da Praia, Óscar Santos tem um papel importante na montagem financeira do projecto “Mercado de Coco” .
Como Presidente da Câmara depois, tem um claro papel na incapacidade de levar adiante esse projecto no sentido da sua conclusão.
Tal desempenho não valoriza o seu currículo e o desqualifica para chefia de uma importante instituição como é o Banco Central dum País.
Tendo sido derrotado nas eleições, é-lhe estendido o tapete vermelho para o lugar de Governador. Quase que se poderia dizer, sem saber ler nem escrever. Mas não pela cartilha particular do Partido no poder .
Para este, o lugar de Governador do BCV é visto, antes de tudo, como lugar para membro do partido.
Não há lugar para os quadros que, com brio, dedicam a sua actividade profissional no desempenho de funções no BCV. Os quadros da casa empenhados , se tanto, terão lugares ao lado do Governador escolhido pelo Partido .
E isto transmite um sinal arrasador a todos os que neste País ainda se dedicam à causa pública e ao bom desempenho das instituições onde trabalham.
Também transmite uma mensagem sublime a todos os cidadãos destas ilhas e da diáspora (e que são a maioria ) de que os Partidos parecem preocupar-se mais com os seus militantes e simpatizantes e pouco se importam com aqueles que votaram neles, para bem governar o País.
Mais do que não deixar ninguém para trás a preocupação é colocar à frente os filhos queridos do Poder.
E assim se comportando, se posicionam como FILHOS DUM DEUS MAIOR ,acima de tudo e de todos .
Até quando mudarem, por imposição ou evolução interna, ou até a sociedade cabo-verdiana se levantar para dizer BASTA.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 699, de 21 de Janeiro de 2021