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Política

13 de Janeiro: Democracia, de A a Z

Trinta anos de A a Z, ou de como Cabo Verde foi se moldando à luz de cada letra do abecedário ao longo destas três décadas de democracia. Nem o controverso K fica de fora, e muito menos o Y ou o W. Confira e faça você mesmo o seu ABC…

Abertura
Cabo Verde não ficou imune à onda mundial de mudanças de regimes políticos, com a queda do bloco socialista do leste europeu. Em Setembro de 1990, depois do anúncio da Abertura do regime, a Assembleia Nacional Popular (ANP) revogou o artigo 4º da Constituição, que declarava o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) força política dirigente da sociedade e do Estado, institucionalizando, a partir dessa data, oficialmente, o princípio do pluralismo partidário. A 13 de Janeiro de 1991, o Movimento para a Democracia (MpD), surgido em Março de 1990 e liderado por Carlos Veiga, impingia uma pesada derrota ao PAICV, que havia governado o país nos 15 anos anteriores, agora sob o comando de Pedro Pires. Ao contrário de outros países, africanos e não só, a abertura política neste arquipélago fez-se sem convulsões de grande monta. Trinta anos depois, a aprendizagem segue o seu rumo.

Banca
O advento da democracia causou uma mudança no sistema bancário e financeiro cabo-verdianos. Além do Banco de Cabo Verde (BCV), cuja parte comercial foi transformada Banco Comercial do Atlântico (BCA), surgiram vários outros bancos e instituições financeiras, ficando o BCV com as funções de regulador e supervisor do sistema. Contudo, empresários e outros cidadãos continuam queixar-se que as taxas de juro praticadas pela banca não ajudam a financiar a economia nem investimentos privados. A abertura do sistema trouxe também problemas ligados à lavagem de capital e a negócios obscuros. Virando-se para a economia de mercado, surgiu ainda, o que até então parecia impensável, a Bolsa Valores de Cabo Verde. O volume de negócio nunca foi grande, se compararmos a outras praças financeiras, mas serviu para venda e compra de acções e para a busca de financiamento por parte de empresas como a Electra, através do lançamento de obrigações.

Cultura
A abertura política coincide com o estouro de Cesária Évora nos palcos do mundo e com ela Cabo Verde entrou no mapa cultural do Globo. A morna encantou outros povos e de lá para cá a música e outras expressões assumem um papel de relevo como embaixadoras deste pequeno arquipélago. Uma marcha que culminou com a elevação da morna a Património Mundial. A importância histórica na intercalação dos mundos levaria também a Cidade Velha a Património Mundial. Por ironia, o país que entra no mapa-múndi pela música e por sua história cultural comemora os seus 30 anos de democracia pluralista sob o protesto dos criadores e dos agentes culturais que se dizem esquecidos pelo Estado. Esta quinta-feira, 14, vão mesmo protestar contra essa “negligência”. 

Democracia
Apontada como o exemplo em África, a democracia em Cabo Verde amadurece do ponto vista formal. As instituições do Estado, umas mais do que outras, cumprem o seu papel constitucional; a alternância democrática no poder dá-se de modo regular, a população tem sabido respeitar o resultado das urnas. Mas muitos cientistas políticos apontam que precisamos dar um salto para democracia com maior níveis de participação, onde haja alternativa ao bipartidarismo MpD versus PAICV. O facto é que, se tomarmos como referência as últimas eleições autárquicas, ficamos no mais o mesmo. As candidaturas que se colocaram como alternativa não tiveram expressão eleitoral nem serviram para estagnar a crescente tendência à abstenção. Muitos cabo-verdianos não se revêm nem nos tradicionais nem nos alternativos. Outros questionam o próprio sistema. A democracia entrou num beco de saídas estreitas? A ver vamos. 

Economia
De base estatizante e de subsistência, a economia cabo-verdiana liberalizou-se de forma decidida a partir de 1991. O privado assumiu a importação de bens de consumo, transportes marítimos e rodoviários, assim como outros pilares da economia. A partir dessa altura, o sector de serviços passa a ser o impulsor da economia com enfoque no turismo, que assumiu papel preponderante ao ponto de atrair grandes investimentos sobretudo nas ilhas do Sal e da Boa Vista. A imobiliária e a construção civil tiveram também momentos pujantes, mas a crise de 2008 e, principalmente, a pandemia de 2020 puseram a nu os problemas do modelo económico seguido. Tanto assim é que as taxas de desemprego disparam para níveis superior a 20 por cento da população activa, os índices económicos despencaram. Assim, as promessas políticas de um crescimento a dois dígitos e de taxas de desempregos inferior a 10% não saíram do papel. Agora tente-se encontrar outros caminhos. 

Formação
Factor de mobilidade social e económica, a formação constituiu uma aposta clara dos sucessivos governos de Cabo Verde pós-independência e ganhou fôlego com a massificação do ensino. A chegada aos liceus, antes privilégio de poucos cujos pais conseguiam recursos para os colocar no Mindelo e na Praia, multiplicou-se com a construção de escolas secundárias em todos os concelhos do país. Os níveis de escolaridade dispararam, as taxas de analfabetismos diminuíram e o número de institutos de formação e universidades teve boom. Os números do Ministério de Educação mostram que nos últimos anos mais 12 mil pessoas frequentaram o ensino superior no país. Fora os milhares de estudantes que saem todos os anos para se formar no estrangeiro. Mas, como indica o número de desempregados jovens com formação, há desajustes entre as políticas de formação e as demandas do próprio país e do mercado. Não houve também uma preocupação de se formar com vista a outros mercados, nomeadamente o da CEDEAO.

Género
A igualdade de direitos e equidade de géneros entraram em pauta com força nos últimos 30 anos. Foi depois de 1991, no primeiro executivo de Carlos Veiga, que as mulheres passaram a integrar o Governo (Ondina Ferreira e Helena Semedo). As leis de violência baseada no género e de paridade resultam de lutas travadas para o equilíbrio social. As e os activistas mantêm a chama acesa para cada vez menos o género não seja factor de discriminação ou de injustiça. Uma outra luta é que as mulheres passem a integrar os principais centros de decisão, Parlamento e Governo, mas também câmaras e assembleias municipais. A lei da paridade, aprovada em xxx, tende a tornar-se mais do que letra morta.

Hidrologia
A mobilização de água para a rega e o abastecimento cresceu bastante nos 30 anos. A construção de barragens é a face mais visível de uma política virada para a agricultura que nem sempre segue uma linha coerente.

Imigração
País de emigração por excelência, nas últimas décadas Cabo Verde passou a atrair imigrantes de vários países. Aliás, em Setembro de 2020, o ministro Fernando Elísio Freire garantia que nos últimos anos o ritmo de imigração tem sido muito mais acelerado que o número de cabo-verdianos que saem para noutros países. A estabilidade democrática, a paz social, a abertura do mercado de trabalho e os acordos de mobilidade internacional contribuem para tal inversão do sentido migrante.

Juventude
A juventude constitui a potencial força transformadora de um país onde a maioria da população é jovem. As políticas públicas muitas vezes não lhes facilita o caminho, mas há quem as contorne, fazendo o seu caminho empreendedor que ajuda outros a entrar no mercado de trabalho. Outros reclamam mais oportunidades e espaços para realização dos seus projectos pessoas e servir o país. Talvez não queiram mais ser apenas narrativa dos políticos em tempos de eleição. 

Kriolidadi
O uso letra K é motivo de controvérsia desde que foi introduzido no nosso alfabeto no colóquio do Mindelo, em 1979. Uns defendem que a letra nos aproxima de África, continente a que pertencemos, e a ideia kriolidadi reforça o nosso sentido de pertença. Outros torcem o nariz tanto ao conceito como à letra. De tempos em tempos, a discussão reacende-se, sobretudo quando está em pauta o uso oficial da língua cabo-verdiana.

Liberdade
A democracia conjuga-se com a liberdade. Sendo assim, a Constituição de 1992 tratou de colocar as liberdades e garantias como pilares fundamentais do Estado. O perigo é quando essa liberdade assume valor negativo que desconsidera a diversidade de pensamento e o colectivo, assim como fere o direito à honra e à privacidade de outrem. Nas redes sociais pululam esse sentido negativo e quando assim é a democracia sai a perder.

Mudança
A palavra Mudança foi guião das vitórias e das acções do MpD na década de 1990. Mudar tudo, desde o regime ao mercado. Abriu-se ao comércio externo, aos privados, à concorrência. Em muitos sectores como o de géneros alimentícios e bens de consumo a mudança mostrou-se profunda. A importação de frutas, carnes, enlatados, bebidas, por exemplo, não só dinamizou o comércio mas também ajudou a alterar o regime alimentar dos cabo-verdianos, para o bem e para o mal. Por um lado, enriqueceram a oferta nutricional, por outro fizeram aparecer sinais de obscenidade, que, juntando-se ao sedentarismo, aumentaram doenças cardiovasculares.

Narcotráfico
A abertura das nossas fronteiras, áreas e marítimas, nos anos 90, facilitou o caminho ao submundo do crime. As apreensões  de toneladas de drogas em operações como Voo da Águia, Lancha Voadora e outras no país tornaram visíveis das acções criminosas de organizações mundiais. O narcotráfico, bem como a lavagem de capitais, entrou assim para nossas páginas policiais e pôs o mundo de olho em nós.

ONGs
As Organizações não Governamentais (ONGs) cresceram em número e actividades com a abertura política. Surgiram para desempenhar funções do próprio Estado no apoio a populações vulneráveis onde, por vezes, as ajudas públicas demoravam a chegar. Com andar dos anos, diversificaram-se, organizaram-se  em plataforma, começaram a estabelecer acordos além-fronteiras e vão buscar financiamentos no estrangeiro. Substituíram as organizações de massa do regime anterior e muitas prestam um serviço de grande valia ao país.

Privatizações
A onda de privatizações foi lema do início do percurso democrático. As empresas estatais, que cobriam desde o abastecimento de bens da primeira necessidade ao transporte e a telecomunicação, foram extintas ou passaram para mãos de privados. Umas deram saltos de qualidade incomparáveis. Vide a área de telecomunicações, que se separou dos Correios e com os investimentos feitos levou o país à era das redes com ganhos para economia e sociedade. Outras nem por isso. A privatização da Electra, por exemplo, foi um fiasco. Não se fez os investimentos previstos no caderno de encargo e a consequência foi um caos enérgico.  Os sucessivos cortes de energia tiveram custos elevados não só para o Estado como para as famílias. Quem na Electra, fala na TACV e em outros casos complicados.

Quadros
A década de 1990 reforçou a aposta na formação de quadros dentro e fora do país. Por essa altura, milhares de jovens provenientes de famílias sem recursos ganharam bolsas de estudo e rumaram a países vários para prosseguir os estudos. Ao mesmo tempo incrementou-se o investimento dos institutos de formação superior no país. Nem sempre as opções têm sido as mais correctas e muitas vezes a qualidade de formação não é a desejada. De todo o modo, em termos quantitativos, o salto foi enorme.

Rodovias
Grande investimento fez-se nas infra-estruturas rodoviárias no país sobretudo nos governos de José Maria Neves. Antes o MpD tinha apostado no desencravamento das populações com a abertura de caminho carroçáveis. Nada que se compara ao investimento da estrada que liga Janela ao Porto Novo, no circular da Praia, em São Nicolau, ou Praia-Tarrafal, e nos noutros pontos do território. Foi claramente como sair da Idade Média e entrar nos tempos modernos.

Segurança
A segurança tem sido uma preocupação constante dos sucessivos governos desde 1991. Houve a reorganização e investimento na polícia de segurança pública, surgiu a judiciária e cada vez mais faz-se acordos com outros países no sentido de dar combate aos crimes transnacionais nas nossas águas e no território.A natureza dos crimes mudou e agora o Estado procura investir em tecnologias – câmaras, scanners – para que Cabo Verde tenha os índices de criminalidade controláveis.

Transportes
O sector dos transportes talvez seja o que mais retrocessos e ziguezagues sofreu com a mudança de regime.
Antes o Estado possuia empresas não só para o sector marítimo, que cobria tanto as viagens domésticas como as do longo curso, mas também no aéreo – TACV – e no rodoviário- Transcor.

A marítima foi desmantelada e os privados não tiveram logo a capacidade de preencher as lacunas. No rodoviário, a Transcor só se manteve em São Vicente na mão de privados e o sector aéreo é aquilo que se conhece.
A tentativa de privatização da TACV é uma batata quente na mão que vai passando de Governo para Governo, sem que o problema se resolva realmente.
As populações de ilhas periféricas como São Nicolau continuam a queixar-se das precárias ligações áreas. As linhas marítimas parecem melhores, entretanto.

Urbanização
As mudanças económicas no país e as sucessivas secas forçaram muita gente a deixar o mundo rural rumo à zona urbana. Assim, as cidades já existentes cresceram.

O Estado viu-se obrigado a investir na urbanização para responder aos desafios do êxodo. Surgiram, outrossim, novas cidades por conta da elevação das sedes dos municípios à condição de cidade.
Umas organizaram e expandiram de forma mais ordenada do que outras, mas não se pode negar os investimentos pelo menos ao nível do saneamento. 

Vacinação
Os níveis de vacinação melhoraram, a rede de serviço de saúde aumentou e com isso a taxa de mortalidade infantil, que chegou a ser de mais de 90 por mil, diminui para valores inferiores a 10 por mil. Há muito por fazer e a pandemia expôs as delebilidades do sistema público de saúde, mas as melhorias são incontestáveis.

Workshop
A palavra workshop (como sinónimo de mesa-redonda, atelier, fórum e quejandos) entrou no vocabulário dos cabo-verdianos por conta dos milhares que são realizados por ano em todo o território nacional e que são objectos de notícia.

Gastam-se milhares de contos neste tipo de eventos, onde não faltam os coffee-breaks, recomendações, que nem sempre têm resultados palpáveis.
Por alguma razão, Cabo Verde é conhecido, em certos meios, como o país dos workshops. A covid-19 pôs um grande travão a essa tipo de “conversa furada”, que não leva a nada.

Xenofobia
Com a chegada de cada vez mais imigrantes a Cabo Verde, notam-se sinais de alguma intolerância ou mesmo desprezo a certas comunidades estrangeiras que escolheram este país para residir e trabalhar.

Algo paradoxal para um povo que se considera uma nação global e cuja população encontra-se espalhada pelo mundo em busca daquilo que as ilhas não lhe dão. Era suposto que aqui não deveria caber nenhuma espécie de xenofobia.

Yes, man!
Para não pôr em perigo chorudos salários em institutos públicos, agências reguladoras, empresas do Estado, muitos são aqueles que se submetem ao “Yes, man!” em vez de defender os interesses públicos.

Basta um telefone de um ministro ou de um militante influente na máquina do partido no poder para a ética, o dever e o rigor irem parar à privada. Vida boa, antes de tudo! 

Ziguezague
Cabo Verde tem mantido um ziguezague em relação à Comunidade Económica dos Estados da África Ocicental (CEDEAO).

Os acordos fazem-se, o país participa mais nas instituições da comunidade sub-regional, entretanto por aqui ainda mal se conhece e pouco se explora o potencial  económico, social, cultural dos países que fazem parte da CEDEAO.
O mercado da comunidade poderá ser algo a explorar, mas para isso Cabo Verde tem de dar mais à sub-região.

(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 698, de 14 de Janeiro de 2021)

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