Por: Arsénio Fermino de Pina*
Quando conto aos meus filhos factos da minha infância dessa época, fartam-se de rir e perguntam-me, a troçar, se não estaria a confundir com o tempo da Primeira Guerra Mundial, de 1914/18, porque lhes custa a acreditar.
É algo disso que irei relatar aos leitores mais jovens, como contributo à história das ilhas crioulas nessa época colonial. Fixo-me em S. Nicolau, onde a minha família chegou, pela segunda vez, por volta dos fins de 1943, ilha que padecia das mesmas carências de outras, exceptuando S. Vicente e Santiago, que já beneficiavam de alguns benefícios do progresso.
Chegámos, pois, a S. Nicolau, em 1943, partimos da ilha para S. Vicente, em 1948, e para Moçambique, via Lisboa, em 1950.
São Nicolau: entre 1943 e 1948
Nessa época, em S. Nicolau, entre 1943 e 1948, não havia carros, nem camiões, motas ou bicicletas, sendo o transporte feito em cavalos, mulas, burros ou a pé.
Na ilha havia um médico e um enfermeiro na Vila para toda a ilha, ausência de farmácia privada, e os medicamentos eram, na grande maioria, produzidos e adquiridos na Botica do Estado – equivalente a delegacia de saúde ou centro de saúde -, à base de xarope, poções, pomada, tintura de iodo e mercurocromo, quinino, sulfatiazol, aspirina, essência de chenopódio e óleo de rícino (para as lombrigas), pomada à base de enxofre e óleo de rícino (para a tinha) e pouco mais.
Não havia vacinas nem anestesia local; os ferimentos eram suturados a sangue frio e os dentes extraídos sem anestesia, dado que os habitantes das ilhas não mereciam esses progressos da ciência médica.
Análises e radiografias somente em S. Vicente ou Santiago, bem como ligaduras gessadas, contentando-se os ilhéus com talas feitas com caules de carrapate (sisal). Morria-se na paz do Senhor de febre cerebral (meningite) e dor de barriga ruim (apendicite). As crianças que sobreviviam a tamanhas carências eram realmente as mais robustas, resistentes, bem alimentadas e com imunidade natural, isso fora das épocas de fome, em que a mortandade era tremenda, por incúria total do poder colonial.
A famosa Pulguinha
Havia um parasita chamado pulguinha, ou matacanha, um tipo de pulga (Tunga penetrans) que penetrava entre os dedos e aí punha ovos, estendendo-se depois pelos pés, havendo pessoas com os pés deformados devido a isso.
Entre nós, à noite, antes de ir para a cama, havia um cerimonial de lava-pés em que uma das empregadas da casa nos vasculhava os pés à cata de pulguinhas, que eram retiradas com agulha. Como era sabe quel cocirinha de pulguinha!
A pulguinha desapareceu das ilhas quando se utilizou o DDT pelo Serviço das Endemias no combate ao paludismo, visto não ter adquirido resistência ao DDT. Havia uma canção referente à pulguinha que dizia: Oh pulguinha donde bô bem? Nha mãe ê Saninclau e nha pai ê Santanton!
Em vez de pão, comia-se cuscuz, e somente quando um dos filhos do administrador de concelho montou uma padaria é que se passou a consumir pão na Vila.
A batata frita ainda era desconhecida, invenção dos belgas, razão por que ficaram com a alcunha de des frites; também não me lembro de ter comido bacalhau e muito menos gelados ou yogurte, até porque o frigorífico, mesmo a petróleo, era um luxo em S. Vicente e Praia.
O leite em pó ainda não tinha chegado à ilha, e se uma mãe secasse o leite e não houvesse outra mãe amiga que a substituísse na amamentação do rebento, teria de se socorrer de leite de burra, que tinha fama de ser o mais parecido com o de mulher. Cozinhava-se à base de lenha, por não se ter vulgarizado o uso do gás, que ainda nem existia em Cabo Verde.
Havia dois aparelhos de rádio, um do meu pai e outro do professor Pera Macias. Cinema, somente em S. Vicente, bem como água encanada e electricidade; mesmo em S. Vicente e Praia, a água canalizada existia em certos bairros habitados por gente considerada ilustre, do Governo.
Não havia telefone
O telefone não existia e as comunicações urgentes eram feitas telegraficamente dos Correios. A maior parte das pessoas andava descalça, e nós mesmos usávamos sandálias somente aos domingos para ir à missa.
Fiz a terceira classe com o professor Gominho Almeida, depois de ter perdido um ano no Pera Macias que encarregava os alunos da quarta classe a ensinar as crianças que chegavam à escola sem saber ler; como exigiam lanche de nós e eu não ia na cantiga, fui ficando para trás, ainda analfabeto. Foi a partir daí, como conto no livro ULI-ME LI!, que comecei a desconfiar dos poderes divinos. O professor Gominho, com o seu método de ensino de mais ou menos palmatoadas, varadas e puxões de orelha levava qualquer aluno até à 4ªclasse, se, entrementes, não mudasse de ilha ou se não falecesse.
Os padres da ilha (Leite, Miguel e Pires e o irmão Matias) sabiam levar-vos à certa, engodando-nos com lanches na sua residência no ex Seminário, onde aprendíamos a rezar e nos preparavam para a comunhão. Se não tivesse partido para S. Vicente teria, seguramente, feito a minha 1ª comunhão e singrado outro caminho que não o de livre-pensador.
Eu era uma criança temerária, mesmo arrojada, embora obediente dos pais. Vivia feliz na grande propriedade familiar, Tantchon, assim chamada pelo grande tanque, onde a maioria da miudagem da Vila aprendia a nadar como se fosse uma piscina municipal.
A horta, o coqueiro, a fisga e caça da galinha do mato
A horta tinha inúmeras árvores de fruta (mangueiras de várias espécies, papaeiras, bananeiras de todos os tipos, coqueiros, figueiras, cibes, palmeira, noneira, mamoeiros, fruta-pão, atas, etc.) e trepava nas mais difíceis. Uma vez trepei a um coqueiro a que ninguém subia, na Maiamona, uma propriedade do cónego Correia, por sinal meu padrinho. O coqueiro era altíssimo, e comigo lá encima, desprendeu-se um ramo que tinha facilitado a minha subida. Fui atirando os cocos para a malta que estava em baixo e quando quis descer vi-me à nora por falta do tal ramo.
Não havia hipótese de escada para me ir buscar e em S. Nicolau não havia bombeiros com o sistema de amparar as pessoas que saltavam de certa altura. Fui lá ficando às voltas e o tempo ia correndo. Como já ia anoitecendo, eu cheio de medo e a choramingar, a malta cá em baixo sem poder valer-me, tive de me aventurar, agarrando e dependurando-me de um cacho de cocos, e, com os pés a procurar o tronco, até o tocar e ir deslisando por aí abaixo. Quando cheguei ao chão, fui recebido com palmas pela minha proeza, mas isso serviu-me de lição para não repetir façanha do género.
Uma das minhas habilidades era o uso da fisga (forquilha). Tinha uma pontaria impressionante a ponto de apanhar pombos do beiral do telhado apontando para o bico, que atordoava sem matar. O meu companheiro nessas e noutras peripécias era o Chiquinho Pélico. O moço tinha, nessa época, um apetite devorador. Como estava mais adiantado do que eu na escola, tirava-me as dúvidas, mas exigindo compensação, em mangas ou bananas, talisca, farinha de pau (de mandioca), que eu obtinha da despensa, à guarda de uma das velhotas da casa, Ti Lota, que conseguíamos levar à certa, como conto em ULI-ME LI!. Havia gente que protestava contra a nossa matança de pardais: Arsinim ma quel fidje de Pelque ês ta cabâ qu´pardal dês terra.
Íamos muitas vezes juntos caçar galinha do mato (galinha da Guiné) aos quatro cantos da ilha, algumas vezes com o irmão mais velho Lutcha. Ajudava-os a preparar a pólvora (mistura de clorato de potássio com enxofre e carvão vegetal, tudo medido em balança de precisão que o pai possuia), os bagos de chumbo e o fulminante. Tínhamos um cuidado particular com os cartuchos, que deveriam servir várias vezes por não os haver à venda em S. Nicolau. O Chiquinho, quando fazia fogo era para matar galinha. O Lutcha falhava mais por atirar para o ar, com galinha a voar. Quando as galinhas estavam bravias, fazíamos-lhes esperas nas dormideiras (árvores).
Não obstante todas as carências, como a população das ilhas desconhecia outras situações por falta de fontes de informação, como as dos dias actuais, vivia-se relativamente de modo feliz, conformada com o que existia. Afinal, tudo na vida é relativo, mesmo a felicidade.
Parede, Julho de 2020
*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)
[Escrevo segundo o acordo ortográfico antigo]
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 673, de 23 de Julho de 2020