PUB

Convidados

Cidade Velha – Património Mundial (um alerta)

 

Por: Carlos de Carvalho

Nos últimos tempos, tenho evitado abordar publicamente qualquer assunto relacionado com o nosso Património Cultural, para não perturbar. Evito fazê-lo sobretudo por questões de ética profissional e porque entendo que sendo matéria de fórum técnico deve haver espaço para discussões técnicas em fórum próprio, no âmbito da instituição responsável pelo Património Nacional, da qual faço parte.

Mas, na ausência desse “espaço interno”, na ausência também de uma publicação científica da especialidade, resolvi arriscar, utilizando este palco, o jornal A NAÇÃO, a ver se o que deve ser corrigido muda. Entendo que continuar calado é compactuar com a ligeireza e o amadorismo no que se refere à gestão do nosso Património Cultural Nacional, motivo pelo qual, aqui venho, para este ALERTA.

Temos assistido nos últimos tempos a (re)inaugurações de bens patrimoniais por todo o país, regra geral, de carácter religioso: Igrejas, capelas, ermidas, etc.. Facto de felicitar e louvar.

Ouvimos igualmente promessas de obras e mais obras. Na maioria, reabilitação do património religioso que é o que mais prevalece entre nós.

Aquando da reinauguração da reabilitação de mais um bem patrimonial, entre novas obras anunciadas, ouvimos … estupefactos … que se irá reconstruir a Sé Catedral da Cidade Velha.

Quando ouvi esta efusiva declaração, perante o entusiasmo das autoridades políticas e religiosas presentes, pensei:

– Meu Deus, o que estou ouvindo!!?? Vamos reconstruir a Sé Catedral!!??

Estavam presentes no acto inaugural, entre os inúmeros fiéis entusiastas:

1. O Cardeal, D. Arlindo, que muito estimo e que, ao que parece, solicitou a obra, e vários outros ilustres clérigos;

2. O Sr. 1° Ministro que, quiçá apanhado de surpresa pela ousada proposta, levado na conversa e no entusiasmo do momento, foi na onda;

3. O Sr. Ministro responsável pela área (que repescou a ideia). Se Sua Excelência sempre se empolga todo quando fala de … pela 1ª vez; sempre a 1ª vez em tudo, sem mandar primeiro os “assessores” consultar/estudar os arquivos das instituições de seu Ministério; pior…sem ser pertinente e discretamente alertado por “quens de direito” que, obrigatoriamente, devem saber mais, ou pelo menos igual, que o Ministro, e dizer-lhe que: “Sr. Ministro não é a 1ª vez”.

4. Os responsáveis da instituição responsável pelo património nacional e pela reconstrução prevista da Sé que deviam/devem ser sempre os 1ºs a aconselhar moderação nos entusiasmos dos governantes.

É que o responsável máximo duma instituição qualquer, ou qualquer assessor de um governante, devendo ser em princípio competente tecnicamente, portanto, tem a obrigação de saber tanto ou mais que o seu Chefe e ser o seu 1° conselheiro em temáticas de sua responsabilidade.

Sobre a reconstrução da Catedral, o defunto Bispo D. Paulino havia pensado “retornar” a Sede do Bispado à sua origem, a Cidade da Ribeira Grande de Santiago. Creio que a proposta da reconstrução da Sé vai na mesma linha.

Mas, dizia, ouvimos, estupefactos, que se irá reconstruir a Sé Catedral.

Fiquei com a pele eriçada, de medo. Com medo e preocupado porque ao que parece a ideia é mesmo para valer… para avançar… sem uma prévia abordagem técnica do assunto entre os responsáveis e os técnicos da instituição responsável pelo nosso Património.

Na verdade, não é a primeira vez que se levanta a hipótese de reconstruir a Catedral.

Luís Benavente, quiçá o arquitecto que mais interveio na Cidade, já aventara essa hipótese. Houvera tempo… o teria feito.

Hoje, estaríamos perante un fait accompli, como no caso da Fortaleza, FELIZMENTE!!

Ninguém, na altura (estamos a falar da década de 60/70), teria argumentos fundamentados para desaprovar sua intervenção!! Benavente foi, na sua época, o mais renomado expert português no que se refere à temática da reabilitação do património.

Seguiram-se, num passado mais recente, outras propostas (Bento d’Almeida, por exemplo), menos ousadas, porém interessantes.

Não avançaram, porque discutidas seriamente e, por via de dúvidas, não avançaram.

Agora, hoje!, Cidade Velha – Património Mundial!!!

Dá que pensar!!

Mas, o Ministro decidiu … parece estar decidido!! Ninguém contesta… ninguém aconselha calma … moderação… ponderação.

E são assim várias as intervenções que são decididas sem uma discussão técnica séria nas instâncias próprias.

O Ministro decide…acabou!! É só cumprir!!

RETORNO AO PASSADO

Fiquei preocupado porque não foi fácil tirar a Cidade das ruínas e levá-la ao estatuto de Património Mundial (PM). Foram décadas de muita dedicação de muita gente; muito dinheiro investido, sobretudo de países amigos no âmbito da Cooperação Internacional; décadas de muita incompreensão e brigas; de muitas restrições, infelizmente, impostas aos moradores.

Tudo com um único objectivo, que a nossa Cidade seja PM.

Há muito não vou/ia à Cidade com olhos de ver… só para não me contrariar.

Hoje

Assim, quando há dias fui obrigado a lá ir, atónito e mais preocupado fiquei.

Preocupado porque quem vai, hoje, à Cidade, com olhos de quem entende um pouco das coisas, a decepção é enorme. O caos urbanístico em que se transformou é assustador. Basta ver o, hoje, novo e maior bairro da cidade, designado não despropositadamente de Sucupira, de nome próprio Sto. António, localizado à esquerda de quem desce a cidade para entender. Um caos autêntico. Esse novo bairro está dentro do perímetro classificado PM, portanto carecendo igualmente de atenção especial, como todo o resto do Centro Histórico classificado PM.

Hoje, só se dá conta que estamos na Cidade PM, quando abeiramos das ruínas da sua grandiosa Catedral … que se irá reconstruir!

Aliás, nada nos anuncia e faz prever que estamos entrando num Sítio-PM.

Uma proliferação de construções, desorganizadas e desajeitadas em tudo quanto é sítio, até mesmo junto a um de seus mais emblemáticos monumentos, a Sé.

Em 2019, completaram-se dez anos de inscrição do Centro Histórico na lista do Património Mundial e nem se deu por isso. Nada de significante para assinalar tão importante momento!!.

Fortaleza Real de S. Filipe (FRSF)

Nesta minha última ida à Cidade, passei pela Fortaleza. O choque foi no mínimo violento. Deparamos com uma intervenção, a construção de um passadiço no interior da Fortaleza, para conforto de deficientes que visitarem o monumento e a cidade, passadiço que, diz-se, breve será “inaugurado”.

A ideia em si é óptima. Ninguém no seu perfeito tino desaprovaria tão nobre propósito.

Porém, a concepção, a execução do projecto, entregue a alguém ou a uma empresa, é simplesmente de bradar aos céus, tamanho o amadorismo com que decidimos como intervir num Sítio Património Mundial e num monumento Património Nacional. Apesar das chamadas de atenção de próprios técnicos da instituição para se tentar corrigir o erro original, ele (passadiço), com “remendos” introduzidos sobre o joelho, estará pronto e será breve inaugurado, seguramente com pompa e circunstância, para constar.

Nenhuma discussão técnica séria antecipou a realização do projecto. Aliás, dos técnicos, parece ninguém sabe quem é seu autor. Uma intervenção sem pés, nem cabeça…para eventualmente alguém corrigir no futuro!!

E…em restauro/reabilitação de património construído, erro cometido…difícil se corrige. É do b+a=ba da gestão do património!! Melhor deixar como está … à uma não bem pensada intervenção.

O visual da cidade no seu todo é, hoje, simplesmente aterrador. Recomendo qualquer cidadão a uma tranquila visita, com olhos de ver, ao nosso berço para se perceber do seu estado actual.

Em tempos, comentei com alguns colegas que se a UNESCO enviar um expert que conheceu a Cidade em 2009, altura de sua inscrição como PM, e que venha, hoje, em 2020, com olhos de ver, corremos o risco de PANHA GRANDI MAU. Seguramente, não escaparíamos a uma tremenda reprimenda por não estarmos a gerir nosso Sítio-maior com seriedade, com tecnicidade, com o mínimo de expertise condizentes com o estatuto de PM que ostenta.

Pós-obtenção de estatuto de PM, não se conhece um Plano-quadro, com cabeça, tronco e membros; com metas, objectivos, prioridades, etc., pensado seriamente e discutido tecnicamente com profundidade…e as coisas são feitas quase que de forma avulsa/atabalhoada. De referir que o Plano de Gestão da Cidade apresentado ao CPM cobria o período de 2008-2012.

Felizmente, o Centro do Património Mundial (CPM) não se preocupa muito em “vistoriar” regularmente os Sítios classificados. Dificulta a inscrição /classificação. Mas, classificando, raras vezes, melhor, salvo raras excepções, o CPM recomenda a “desinscrição” de um Sítio ou de um Bem classificado. Sendo rigorosos, temo que teríamos nosso único Sítio em grande risco.

Património Nacional

Mas não é só a nossa Cidade-PM que não está sendo bem preservada. São quase todos os nossos Centros Históricos que basofamente declaramos recentemente Património Nacional, sem a consequente tomada de medidas preventivas para a sua protecção. É a Património-mania sobre a qual escrevi faz algum tempo. Classificamos e deixamos tudo ao sabor dos responsáveis locais sem orientações técnicas claras e, claro está, é o que estamos vendo, hoje.

Vejam, por exemplo, a nossa Cidade-capital. Ela consta da nossa Lista Indicativa de 2004 (actualizada em 2015) e recomendada sua protecção com vista a uma eventual candidatura futura. Mas, mesmo na nos barba cara, nós responsáveis pelo património, fazem-se intervenções de bradar aos céus!! Duvido que alguém, hoje, pense ou se lembre que o Centro Histórico da Cidade da Praia integra a Lista Indicativa que entregamos à UNESCO.

Medo é que da nossa Lista Indicativa nenhum dos Bens ou Sítios venham a merecer sequer uma simples djobedura por parte de nossos colegas do Centro do Património Mundial, tão mal estamos gerindo o único Sítio que muito nos custou classificar, e muito duvidosas são, do ponto de vista técnico, as intervenções nos outros Sítios constantes da Lista Indicativa.

Para terminar, ainda sobre a nossa Catedral.

Lembro aos colegas, responsáveis pelo Património Cultural Nacional, que existe um excelente projecto para a Catedral e toda a área envolvente, com uma extraordinária maqueta do monumento, da autoria do conhecidíssimo arquitecto Álvaro Siza Vieira.

É só questão de saber como fazer funcionar os canais para termos acesso ao projecto.

E … o alerta

E…finalmente…aconselho muita cautela… muita ponderação… muita discussão técnica antes de se avançar com qualquer projecto em relação a um dos mais emblemáticos monumentos de nossa histórica Cidade, a Catedral; muita cautela…muita ponderação…muita discussão técnica em relação a qualquer intervenção nesse Sítio Histórico classificado Património Mundial e igualmente em relação a qualquer dos Bens inscritos na Lista Indicativa entregue à UNESCO.

Para o bem do nosso Património Nacional!!

Fica o ALERTA.

Voltarei.

Setembro 2020.

*Historiador-Arqueólogo

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 682, de 24 de Setembro de 2020

PUB

PUB

PUB

To Top