Por: Basílio Mosso Ramos
1.Num relatório datado de Agosto de 1867 e endereçado ao Governo da Província de Cabo Verde, o delegado da junta de saúde do Sal, Custódio Duarte, traça um panorama da situação geral da ilha, com particular ênfase para o sector da saúde, concluindo com um alerta para o risco da ocorrência de uma epidemia de febre amarela, com proveniência do Brasil ou da América, países com os quais a ilha mantinha ligação marítima frequente e onde a doença, na altura, era endémica.
Para a referida autoridade de saúde, não só as condições locais eram favoráveis à ocorrência da epidemia, como não haviam meios para lhe fazer face, uma vez que “não há nenhum hospital”, existindo apenas “uma botica do governo, conhecida por ambulância, mas que é resumida e pobre”. Acrescenta ainda que “como o maior número d’habitantes vive de dia a dia á custa do seu trabalho, succede que quando cahem enfermos mais os vence a miséria que a moléstia”. O panorama era deveras desolador.
No que concerne às condições propícias à ocorrência da epidemia na ilha, para além dos factores acima referidos por Custódio Duarte, importa assinalar ainda a falta de “boa água” e de “higiene doméstica e pública”, deficiências apontadas por outra fonte.
Infelizmente, os receios de Custódio Duarte não levaram muito tempo a se confirmarem. Seis anos mais tarde, a 4 de Setembro de 1873, o médico Pedro Nicolau da Camara Santa Rita, que chegara à ilha a 24 de Agosto, substituindo o delegado de saúde, Aleixo Justiniano Sócrates da Costa, face aos sintomas, diagnosticou a doença em dois pacientes – uma menina de 11 anos e um degredado de 26 – e considerou a ilha atingida pela febre amarela, afectando várias pessoas.
Embora, seja a 4 de Setembro que são oficialmente confirmados os primeiros casos de febre amarela, por Pedro Nicolau da Camara Santa Rita, tudo indica que já poderiam existir casos em data anterior à sua chegada à ilha (24 de Agosto), pois foram-lhe relatadas situações de pessoas com febre de carácter grave com o mesmo quadro sintomático, cerca de um mês antes. Entretanto, o então delegado de junta de saúde, Aleixo Justiniano Sócrates da Costa, a quem Santa Rita substituíra, referiu-se apenas a casos de “febres paludosas”. De todo o modo, oficialmente, a epidemia desenvolveu-se durante os meses de Agosto, Setembro e Outubro.
Uma nota da Comissão Municipal, de 21 de Outubro, dirigida às autoridades da Província refere que “já há poucos doentes”, o que pressupõe que nessa data a epidemia aproximava-se do fim, o que é reconfirmado por outro ofício, datado de 19 do mês seguinte, comunicando que “desde o dia 16 de Novembro de 1873 o porto [de Santa Maria] está limpo de febre amarela”, o que significa que o mesmo podia ser aberto à navegação, pelas autoridades provinciais competentes.
Segundo Santa Rita Vieira, “atribuiu-se ao brigue “D. Ana” que veio de Rio de Janeiro, do qual foi desembarcada uma caixa com roupas, que pertenceram a um indivíduo que morreu naquela cidade, mas que se afirmou terem sido desinfectadas”, a responsabilidade pela introdução da epidemia. Ou seja, a epidemia veio do Brasil, como já tinha alertado Custódio Duarte, não obstante as medidas de quarentena a que, desde Janeiro, estavam sujeitos os barcos procedentes dos portos desse país. Aliás, como prossegue a mesma fonte, “de 10 de Julho a 25 de Setembro 25 navios provenientes do Brasil estiveram de quarentena no porto de Santa Maria, como medida de precaução”. Mas, pelos vistos, tais medidas de quarentena não terão sido eficazes, o que não é de se estranhar numa tal época.
2.Após o diagnóstico da epidemia a 4 de Setembro, as autoridades locais comunicaram o facto ao governo provincial, aproveitando um barco que seguia para o Brasil e que, para o efeito, se comprometeu a desviar da rota, tendo a informação chegado à Praia no dia 11 de Setembro.
Dada à gravidade da situação as autoridades provinciais providenciaram a saída da canhoneira Guadiana logo no dia 12, a bordo do qual viajaram “o facultativo (médico) António Augusto Santa Clara, dois enfermeiros, uma ambulância de medicamentos, e utensílios, roupas, dietas e mais objectos necessários para naquela ilha estabelecer uma enfermaria provisória para tratamento dos indigentes”. O barco chegou no dia 13 ao Sal, tendo a equipa médica entrado em acção de imediato.
Diz o médico Pedro da Câmara Santa Rita que antes da chegada do colega Santa Clara, portanto de 24 de Agosto a 12 de Setembro, tratou cerca de 300 doentes, com o registo de 3 óbitos. Como do Livro de Óbitos da Freguesia de N. S. das Dores, não consta nenhum registo no período de 24 a 31 de Agosto, conclui-se que estas 3 vitimas tenham falecido já em Setembro, mais precisamente a 4, 5 e 8. Ou seja, a epidemia começa em Agosto, mas só faz vítimas mortais a partir de Setembro.
O médico Santa Clara, no relatório sobre a epidemia, afirma que de 13 de Setembro a 26 de Outubro, num total de 92 doentes registaram-se 17 óbitos, ou seja uma taxa de mortalidade de 18.4%, que, na altura, se considerou baixa. Durante toda a epidemia a taxa de mortalidade teria sido de 5.1%. De referir que Santa Clara teve dúvidas a respeito do número de doentes avançado pelo colega Camara Santa Rita, achando-o exagerado.
Se em termos de número de doentes poderá haver dúvidas, o mesmo não se passa no que concerne a vítimas mortais. De 24 de Agosto a 26 de Outubro registaram-se 20 óbitos, de acordo com os números citados pelos dois médicos.
Cruzando informações de algumas notas da administração local referentes a vítimas e os registos do Livro de Óbitos de Setembro e Outubro, constata-se que do total dos falecidos, 6 eram europeus, sendo 4 degredados, 1 residente e 1 enfermeiro, em missão contra a epidemia, 4 náufragos (também europeus), 4 naturais da Brava, 1 natural de S. Antão e 5 menores do Sal.
Os números mostram que o europeu, em especial os degredados, foram os mais atingidos mortalmente. Idêntica constatação faz Santa Rita Vieira ao asseverar que “Foi o europeu o elemento da população que maior mortalidade deu – 47.8 por 100; e deste os degredados – 71.4 por 100. Vêm em seguida os naturais da Brava”.
Salta à vista o facto de entre as vítimas mortais não constar qualquer adulto natural do Sal. A explicação parece residir no facto de uma boa parte da população ser oriunda da Boa Vista, onde tiveram contacto com a epidemia em 1845. Provavelmente, imunizadas desde então, teriam sido poupadas na ocorrência da ilha do Sal.
De entre as vítimas mortais, convém destacar, pelas funções que exerciam, António Nunes da Silva, europeu residente, vogal da Comissão Municipal e substituto do Regedor da Paróquia, Francisco de Paula Medina, natural da Brava, 2º Escrivão da Alfândega e Francisco Seixas Pinto (europeu), um dos enfermeiros da equipa de saúde destacada para combater a epidemia.
3. Os 4 náufragos, vítimas da epidemia, estão associados a um violento temporal que ocorreu de 1 para 2 de Outubro e que arrastou para terra “4 barcos de alto bordo”, 3 dos quais – um argentino (Neptuno), um grego (Omónia) e um inglês (Assuero) – encontravam-se fundeados a receber sal, para diferentes destinos. O quarto, recém-adquirido por João José Vera-Cruz, destacado proprietário da ilha, encontrava-se fundeado, praticamente inoperacional, pois sem mastros. De realçar que, em plena epidemia, a tripulação de 3 barcos estrangeiros, num total de 26 efectivos, é forçada a permanecer na ilha, sujeitando-se aos riscos da doença e sobrecarregando os profissionais de saúde.
4. As autoridades locais apreciaram a forma pronta como o Governador Geral da Província, o Conselheiro Alexandre d’Almeida e Albuquerque, respondeu aos seus pedidos para fazer face à epidemia. Para além da canhoneira Guadiana que a 13 de Setembro chegou com profissionais de saúde, medicamentos, roupas e alimentos para o primeiro embate, o Governador providenciou para que, ao longo da crise, outros barcos aportassem à ilha transportando produtos alimentícios para serem distribuídos aos necessitados e vendidos, ao preço de custo, à população em geral. No entendimento dos responsáveis locais, tal gesto do Governador contribuiu para minorar o sofrimento das pessoas e tornar a epidemia menos penosa.
Para expressar o seu apreço em relação ao Governador, a Comissão Municipal do Sal, integrada por António da Silva Gonçalves, administrador interino, e pelos vogais Pedro Tavares da Rocha e Alexandre José Vera-Cruz, na sua reunião de 31 de Dezembro de 1873, aprovou um voto de reconhecimento e gratidão, lavrado em acta, com o argumento de que estava a ser fiel intérprete do sentimento da população e que se tratava de um acto de justiça, a ser publicitado em toda a província, como aliás se veio a concretizar através do Boletim Oficial.
Fontes: O Relatório sobre a Febre Amarela na Ilha do Sal, documentos da Administração do Concelho do Sal, o Livro de Óbitos da Freguesia de N. Sra. das Dores (1857-1873) e a obra de Santa Rita Vieira “A História da Medicina em Cabo Verde”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 677, de 20 de Agosto de 2020