Deixou Figueira das Naus, em Santa Catarina (de Santiago) aos cinco anos, na companhia da mãe, rumo a Portugal onde o pai já era emigrante. Menina de fibra, sonhadora e de convicções fortes, foi alfabetizadora, animadora radiofónica, membro-fundadora de diversas associações cabo-verdianas – em Portugal e na França, onde está desde 1992 -, Isabel Borges Voltine trabalha numa multinacional de testes e medidas ópticas. É deputada à Assembleia Nacional de Cabo Verde.
A Pandemia de COVID-19 – na avaliação de Isabel Borges Voltine – teve “um estrondoso impacto” na comunidade cabo-verdiana em França e está sendo “um verdadeiro pesadelo para todos”.
De um momento para o outro, tiveram de fazer face à paralisia total daquele “frenético” País, que é a França.
“Além das vítimas mortais da doença no seio da comunidade, saliento, também, a repercussão na saúde física e psicológica dos nossos emigrantes.
Os nossos conterrâneos que viviam em situação de fragilidade social, viram as suas condições de vida ainda mais degradadas”, conta ao A NAÇÃO, notando que os mais atingidos foram os emigrantes não-legalizados, os trabalhadores temporários e os sem contratos, assim como, os que tiram a subsistência do Comércio Informal.
Ainda ela, isso se deveu à falta de conhecimento dos seus direitos, e/ou, como vivem no isolamento, não souberam beneficiar de programas existentes para apoiar e mitigar a situação.
Voltine salienta que, “nesta triste sina da emigração”, os emigrantes sofrem por eles mesmos (nos países de acolhimento) e pelos seus, devido à angústia e a ansiedade de não se saber como a Pátria-Mãe e os familiares farão face à Crise.
“A isto, chamo a dupla pena da emigração!”, remarca.
Pessoalmente, como Eleita mas, também, como presidente da Associação Cultura e Lazer PASSARINHA, uma Colectividade que obra para a promoção da Cultura Cabo-Verdiana em França e para fomentar a boa integração da comunidade, desde o anúncio pelas autoridades francesas do confinamento total, começou a reunir e a comunicar diversas informações administrativas à nossa aos patrícios.
“Fui, ainda, solicitada por familiares de emigrantes que se encontravam retidos em Cabo Verde, em busca de informação de repatriamento dos seus membros, bem como cabo-verdianos retidos em França, almejando retorno”, revela, acrescentando que muitos deles, “angustiados, precisavam, unicamente, de reconforto e de uma orelha atenta”.
A entrevistada do A NAÇÃO parabeniza “a comunidade em geral, pela forte solidariedade que demonstrou nas diferentes acções em prol de diversas localidades e ilhas de Cabo Verde.
Pós-Crise…
Voltine revela ser “extremamente difícil” traçar, hoje, um prognóstico de avaliação desta Pandemia e das suas consequências.
“Estamos a navegar à deriva. Prersentemente, nenhuma bússola permite augurar qualquer desfecho. O que se desenha para a sociedade francesa – no seu todo! – é que após esta Crise Sanitária, seguir-se-ão crises Económica e Social, onde as vítimas pré-definidas estão nas camadas mais frágeis da sociedade e na classe média inferior”, prognostica, frisando que uma futura segunda vaga da paira no horizonte.
Atendendo a que grande parte da comunidade está inserida “na classe média inferior”, prevêem-se momentos sombrios.
“Mas, ciente da capacidade de resistência do nosso povo, também auguro um boa resiliência”, salienta.
França é um País com um elevado grau de qualificação e reconhecido Programa e Política de Acompanhamento Social e Profissional.
“Assim sendo, o primeiro acto para que os nossos emigrantes tirem melhor proveito das oportunidades disponibilizadas pelo Governo francês é de se informarem. O facto de serem conhecedores do leque de programas existentes é o maior trunfo. Para tal, devem aproximar-se dos diferentes serviços ou através de consultas à Internet, das diversas plataformas existentes”, defende.
A Comunidade deve-se – prossegue Voltine – desinibir, ousar e pedir explicações e conselhos junto das instituições e profissionais para, realmente, tirar o melhor partido destes programas que se dirigem a todos e são financiadas com o erário público, o que subentende, também, a contribuição da própria Comunidade Emigrada.
ADN do associativismo
Entre a vida associativa e Borges Voltine existe uma longa história, que, talvez, esteja ligada ao seu ADN.
Aos cinco anos chega a Portugal, na companhia da mãe, para se juntarem ao pai, que já lá estava mesmo antes do seu nascimento.
“Instalados na Amadora, localidade com grande número de comunidades emigrada, desde cedo vi meus pais auxiliando os conterrâneos. Quer seja na redacção ou na leitura de cartas para muitos, ou mesmo, na organização de documentos para a regularização ou pedido de Nacionalidade portuguesa”, lembra.
Muito cedo foi, também, mobilizada para “a nobre missão”. Mais tarde, com 16 anos, em companhia de outros jovens moradores, criaram a primeira Associação Cabo-Verdiana do bairro: “As Estrelas Criolas”.
Desenvolveram cursos de Alfabetização, para combater o iletrismo existente. “Organizamos cursos de Corte e Costura para o empoderamento feminino. Foram criadas ateliês infantis para a ocupação de tempos livres das crianças do bairro, a par de um grupo de Dança, para transmitir a Cultura e Tradição Cabo-Verdiana às segundas gerações”, relata, observado que, tendo, desde sempre, esse estado de espírito, “é muito naturalmente que o conservei”.
Hoje, em França, é membro de “variadíssimas associações caboverdianas – e não-só! -, que promovem accções em favor das crianças, das mulheres, da educação, em prol da boa integração, de trocas culturais, da cidadania, entre outras. Ela garante que, enquanto houver causas que “mereçam serem defendidas e valorizadas e que estejam de acordo com a minha visão”, lá estará presente, para ser porta-voz.
Voltine nota que “valeu muito a pena” a sua dedicação à causa, descrevendo várias situações de auxílio aos conterrâneos, justificando: “Em verdade, a felicidade alheia me deixa feliz!”.
Heterogeneidade
Em termos de integração, a comunidade cabo-verdiana não se encontra num nível homogéneo.
“Somos uma pequena comunidade, no seio da multitude das comunidades emigradas, neste País tão cosmopolita que é a França”, avança,apontando a existência de, pelo menos, três vagas de emigração de cabo-verdianos para a França, a saber: a dos anos 50-60;seguida da dos anos pós-Independência, e, muito recentemente, da inter-europeia, na sequência da Crise Económica dos países da Europa do Sul (Portugal e Espanha).
“Sem contar com as chegadas constantes, por razões familiares ou outras”, ajunta, relevando que “a França é um País muito vasto, com bastantes diferenças regionais”, com grande repercussão na vida das comunidades emigradas.
Muitos dos compatriotas trabalham na Construção Civil e no serviço a terceiros, a saber: limpeza, apoio a crianças ou idosos, havendo vários que gerem as suas próprias empresas e comércios.
“Nos primórdios da minha chegada, éramos chamados de ‘portugueses negros, mas com o esforço da Comunidade e o surgimento da ‘Diva Cesária Évora’, entre outros, somos, agora, conhecidos e reconhecidos como sendo oriundos do ‘Petit-Pays’ – le Cap-Vert”, salienta.
No entendimento de Borges, são três os pilares para se iniciar um processo de integração positivo: documentação, emprego e habitação.
“O processo de regulização junto das autoridades francesas pode ser, ou não, longo e penoso. Isso em função das condições de chegada de cada indivíduo”, frisa, vincando que outro constrangimento de grande importância para é o não-domínio da Língua Francesa, que é um obstáculo para o usufruto dos plenos direitos e um travão para o desenvolvimento de muitos projectos e sonhos.
“Sentimento indescritível”
Isabel seguiu, de perto, de perto a mudança de Primeiro-Ministro e a composição do novo Governo, que irá governar nos quase dois anos que restam ao Presidente Macron.
“O sentimento é indescritível.
A alegria é comparável, em todos os pontos, àquela que ressenti aquando da vitória de Barack Obama, em 2008.
Com a vantagem de que, desta vez, o protagonista é uma conterrânea, pessoa que conheço pessoalmente e com a qual me sinto completamente identificada e representada”, revela ao A NAÇÃO.
Borges acrescenta que a nomeação para “tão nobre e grande cargo, é um honra para cada um de nós cabo-verdianos, de França e do Mundo”.
Ainda ela, “o cargo soa muito bem” E justifica: “Madame Élisabeth Moreno, Ministre Déléguée Chargée de l’Égalité Femmes-Hommes, la Diversité et l’Égalité des Chances de la République Française. Ou sej: Ministra Delegada Responsável pela Igualdade de Género, Diversidade e Igualdade de Oportunidades da República Francesa”, realçando que “o título toma todo o seu sentido, na pessoa de Elisabeth Moreno, e, através dela, “exemplo para cada um de nós, para os descendentes da nossa Emigração e, doravante, poderemos apresentar exemplos tangíveis aos nossos filhos e dizer: ‘Sim, é possível!“.
Borges está convicta de que Elisabeth, “Madame la Ministre Moreno, vai deixar um marco indelével”.
Conciliação do tempo
Entre as suas responsabilidades profissionais, associativas, políticas e familiares, Borges não garante que todas as manhãs sejam fáceis para ela.
“Por vezes, durmo muito poucas horas para, terminar um dossiê, finalizar um projecto ou mesmo passar a ferro.
Mas, na verdade, a minha maior aliada é a minha família, que compreende que eu, assim sou, aceita e apoia o meu compromisso”, explicita.
Mulher feliz,”por todas as graças que a vida” lhe concedeu, é mãe de menina e de menino, como, aliás, sempre desejou.
“Meus filhos são a maior dádiva em minha vida. Tenho um família linda e unida da qual sou grata”, avança, avisando que “muito resta ainda a fazer”, e que não pretendo parar no meio do caminho.
“Abraço de solidariedade”
A modos de remate final, estando em período de Pandemia de COVID-19, Borges-Voltine manda “um abraço de solidariedade, a cada cabo-verdiano” nas dez ilhas e na Diáspora.
“Este abraço carregado de energia positiva, de confiança e de esperança de que juntos iremos ultrapassar esta calamidade”, manifesta.
E prossegue: “Somos os herdeiros do ilustre e imortal Amílcar Cabral, homem visionário, engenheiro e arquitecto da nossa Independência, aquele que nos fez acreditar que dias melhores viriam, mesmo quando o Mundo inteiro duvidou e decretou insucesso para a Nação”.
De acordo com a interlocutora do A NAÇÃO, os cabo-verdianos souberam, enraizados “nas forças dos vulcões que constituem o nosso solo, nos encher de vitalidade e jorrar um espírito construtivo com a qual edificamos o nosso País”.
E conclui: “Somos hoje um pequeno e minúsculo País, que em muitos planisfério nem consta, mas enorme Nação, que, na força dos seus filhos se fez existir, conhecer e reconhecer.
Nós somos a essência mesma do termo: Resiliência!”.
Uma cabo-verdiana multifacetada
Zenaida Isabel Furtado dos Reis Borges Voltine, 49 anos, nasceu em Figueira das Naus, no Concelho de Santa Catarina (no interior da ilha de Santiago. Aos cinco anos emigrou para Portugal, onde fez a sua escolaridade, tendo concluído, na Eurogest, o Curso de Técnica Especializada em Organização e Gestão de Unidades Industriais.
Entre 1989 e 1992 foi professora de Alfabetização, membro-fundador da Associação Cabo-Verdiana da Reboleira, criadora do Grupo de Dança Tradicional “Estrelas Criolas” e co-animadora de um Programa Radiofónico, para a Comunidade Cabo-Verdiana, na Rádio Antena 1.
Em 1992 emigra para França.
Nos primeiros anos, exerce diversas actividades profissionais, mas retoma os estudos e forma-se em Gestão de Empresas.
De 2000 a 2010 foi responsável do Serviço a Clientes, de uma multinacional, no domínio dos instrumentos científicos. Desde 2011 que é directora-administrativa nesta líder mundial de testes e medidas ópticas.
É, também, membro de várias associações sócio-culturais nas comunidade cabo-verdiana e francesa.
Isabel Borges Voltine é deputada-suplente para o Círculo da Europa e Resto do Mundo, eleita nas listas do PAICV.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 672, de 16 de Julho de 2020