Por: Adilson Dias
A 27 de Agosto de 1941, nascia na Ilha de São Vicente, Cabo Verde, uma criança a quem foi dada o nome de Cesária Joana Évora, sem que se imaginasse que viria a ser renomada como a Diva das Mornas e das Coladeiras de Cabo Verde, a Diva dos pés descalços ou simplesmente de Cize, como era carinhosamente chamada pelos amigos. Oriunda de uma família modesta, o pai tocava cavaquinho, violão e violino e sua mãe trabalhava como cozinheira em casas particulares.
Enquanto criança e adolescente, Cize era presença assídua nos arredores do bairro de Lombo, sendo que aos 10 anos ela entrou para o orfanato, lugar onde esteve durante três anos. Na sua juventude, sempre cantava uma infinidade de canções e fazia apresentações aos domingos na praça principal do Mindelo; aos 16 anos de idade, ela conhece um marinheiro chamado Eduardo que a ensinou os tradicionais estilos de música cabo-verdiana como a morna e a coladeira.
Com o aprendizado adquirido, Cize começa a cantar em bares e hotéis da Cidade, foi proclamada a “Rainha da Morna” por seus fãs e começa seu percurso, sem nunca imaginar pisar os melhores e maiores palcos do mundo. Aliás como dizia sempre, ela não tinha sonhos e não fazia planos para o futuro porque preferia viver um dia de cada vez, sem se preocupar com grandes planos para o amanhã. Mas o amanhã foi sempre próspero para Cesária e o mundo se rendeu a simplicidade da diva, a singularidade na forma como interpretava as mornas e a melodia que a sua voz entoava, tornando-se no nome mais conhecido de Cabo Verde além-fronteiras.
Dona do seu destino, e sem desmerecer as pessoas que estiveram ao seu lado, tudo o que Cesária conquistou foi graças à sua determinação, coragem, talento e a sua voz, como muitas vezes refere o musicólogo Moacyr Rodrigues. Nas palavras do musicólogo, Cize sempre foi uma mulher decidida e disposta a enfrentar e driblar os obstáculos que a vida lhe impunha.
Ela sempre falou do seu amor a terra natal e em particular a cidade que a viu nascer, mas Cabo Verde foi sempre um palco pequeno para a diva e ela conquistou o mundo para que o mundo a desse a conhecer a Cabo Verde. Aliás, a projeção e valorização que a cantora foi conseguindo com as suas atuações nos maiores palcos do mundo não foi acompanhada em Cabo Verde, onde a sua presença nos palcos era residual.
A sua intensa carreira teria um fim, no dia em que comunicou oficialmente ao mundo de que apesar de querer continuar tinha que parar. Cesária estava doente e precisava de repouso, no melhor lugar para ela, a sua residência na ilha de São Vicente, para onde sempre voltava para descansar depois das grandes tournées.
A sua morte a 17 de Dezembro de 2011, veio confirmar o fim da sua contribuição em vida para Cabo Verde e o mundo, tendo contribuído também para despertar a consciência nacional sobre o impato ou a projeção que a figura da cantora deu e continua dando ao país. Igualmente, era preciso que a sociedade conhecesse a mulher que nunca se deslumbrou com o sucesso, isso nas palavras do musicólogo Moacyr Rodrigues.
Assim, para perpetuar todo esse legado e divulgar junto da sociedade cabo-verdiana os valores defendidos pela Cize e as mensagens subjacentes as suas práticas, foi criando em 2015, numa antiga residência que lhe foi ofertada pelo Estado de Cabo Verde, o Núcleo Museológico Cesária Évora, com sua sede na Cidade do Mindelo, Cidade natal da cantora.
Ora, a criação do núcleo marca indelevelmente a forma de lembrar a figura de Cesária Évora, corporizando num modesto edifício que guarda no seu interior o seu legado material e imaterial de dimensão incomensurável.
Com um conceito museológico bastante apelativo, suportado por um circuito expositivo capaz de fazer as pessoas perceber a vida pessoal e profissional da Cesária Évora, e um circuito externo de visitas, identificando e valorizando os espaços emblemáticos da cidade que eram apreciados pela artista, o espaço transmite as memórias de uma estrela, de talento inesgotável que soube, como ninguém, brilhar na humildade e simplicidade, brindando o mundo com a sua voz poderosa e sua presença imponente nos palcos.
Tendo como espólio os pertences da cantora (vestuários, fotografias, a sua discografia, etc.), o núcleo museológico, tem desempenhado o duplo papel de expor para o consumo dos visitantes todo o espólio que alberga, mas também de trabalhar junto da sociedade, numa lógica de emancipação feminina e empoderamento familiar.
Ao longo destes 5 anos de funcionamento, o núcleo museológico definiu como política o trabalho social junto das camadas desfavorecidas da cidade, não no sentido do assistencialismo, mas numa perspetiva de fornecer as bases para a sua consciencialização nos exemplos de bondade e de partilha que eram sempre praticados pela Diva. É neste sentido que foi criado e implementado, desde 2017, o programa de sensibilização dos jovens sobre a violência baseada no género e a necessidade de elevar a autoestima dessa classe para se emanciparem e afirmarem na sociedade como pessoas capazes de tomar as rédeas do seu destino. Aliás, esta mensagem de amor às mulheres e do seu contributo para o desenvolvimento de Cabo Verde e do Mindelo em particular, está presente em muitas canções interpretadas pela Cize.
A solidariedade e ajuda mutua, ações muito praticadas pela artista, são igualmente pontos âncoras do núcleo museológico, especialmente no seu programa de trabalho junto da sociedade. Mais do que atividades pontuais, o que se quer do espaço é que este, para além de guardar o espólio material da cantora, sirva também como espaço de inspiração para a geração atual, no sentido de trilharem o seu próprio caminho, independentemente do contexto e da situação em que vivem.
Hoje, o Núcleo Museológico Cesária Évora é, sem dúvida, um espaço de visita obrigatório dentro do circuito cultural da Cidade do Mindelo, sendo que a cada ano, o número de visitantes tem aumentado, ainda que com predominância de visitantes estrangeiros. Contudo, a aposta que se quer fazer, é no sentido do núcleo se posicionar, efetivamente como um espaço de lazer, conhecimento e pesquisa para a sociedade mindelense, em primeiro lugar e, para o país e demais interessados na história e exemplo da Cesária enquanto mulher humilde e artista de renome mundial.
Nota Bibliográfica
Estes apontamentos foram produzidos a partir da conversa havida entre investigadores e personalidades durante as atividades alusivas 8º ano de falecimento da Cesária de “8 one sodad”, Mindelo, 2019.
Fonte fotográfica: Arquivo do IPC.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 678, de 27 de Agosto de 2020
