PUB

Mundo

Moçambique e o perigo jihadista

Cabo Delgado, norte de Moçambique, está a transformar-se numa zona flagelada pelos jihadistas do Al-Shabab, um grupo radical islâmico oriundo da Somália e muito parecido com o Boka Haram, que actua na Nigéria e nos Camarões. A violência está a provocar uma crise humanitária com cerca de 2 mil mortes e 500 mil deslocados, sem habitação, nem alimentos.

O norte de Moçambique vive um período de violência perpetuada por insurgentes islâmicos do Al-Shabab (A Juventude ou Os Jovens, em árabe), que recentemente realizaram assassinatos, decapitações e sequestros de mulheres e crianças em povoados na província de Cabo Delgado, rica em rubi e gás natural, e que faz fronteira com a Tanzânia. Nalgumas localidades a população foi reunida, em praça pública, para assistir às decapitações. 

Na aldeia de Muatide, os jihadistas decapitaram mais de 50 pessoas ao longo de três dias de violência. Desde 2007, cerca de 2 mil pessoas foram mortas e mais de 430 mil ficaram desabrigadas. A Amnistia Internacional estima que mais de 350 mil pessoas correm o risco de passar fome na esteira de mais esta crise que tem flagelado Moçambique. Mas essa ONG tanto condena a violência do Al-Shabab, ligado ao Estado Islâmico (EI), como critica o governo de Maputo, acusando-o de combater a violência com atrocidades extrajudiciais, entre elas tortura e perseguição. O governo nega as acusações.

Mais de 500 suspeitos detidos na Tanzânia 

Esta semana um total de 516 de indivíduos foram detidos na Tanzânia por alegado envolvimento nos ataques armados em Cabo Delgado. Vão ser extraditados para Moçambique, ao abrigo de um memorando de entendimento assinado entre as polícias dos dois países. Entre os detidos há moçambicanos, tanzanianos, somalis, congoleses, ruandeses, ugandenses e burundeses. 

Apesar do mesmo nome, alegadamente, este Al-Shabab (moçambicano) não tem ligações conhecidas com o Al-Shabab na Somália, este afiliado à facção Al-Qaeda. Contudo, os métodos de actuação, pelo terror, são muito semelhantes. 

Especialistas entrevistados pela BBC dizem que o avanço da insurgência islâmica em Moçambique é bastante semelhante ao surgimento do Boko Haram no norte da Nigéria, como um grupo marginalizado que explora queixas locais, aterroriza comunidades e oferece um caminho alternativo para jovens desempregados frustrados com um Estado controlado por autoridades corruptas e negligentes. A ausência da autoridade do Estado, centralizada em Maputo (sul), a milhares de quilômetros do Norte, é um dos factores que, pouco a pouco, ajudou a criar condições para o surgimento do fenómeno da Al-Shabab nesse PALOP (país africano de língua oficial portuguesa). 

Governo contrata mercenários 

No início, o governo moçambicano tentou minimizar a insurgência, classificando os militantes como criminosos e bloqueando o acesso de jornalistas e activistas à região. Incapaz, Maputo passou a contratar empresas de segurança estrangeiras – supostamente da Rússia, dos Estados Unidos e da África do Sul – para ajudar o Exército a destruir a rebelião. Mas sem muito sucesso, além de serem acusados também de violações dos direitos humanos. Teme-se que o conflito se espalhe para o país vizinho, a Tanzânia, e talvez até mesmo para a África do Sul. 

Diversos pesquisadores e analistas acreditam que a solução para o conflito está na presença mais consistente do Estado na região e em acções transparentes para lidar com queixas económicas e sociais profundamente arraigadas na sociedade, incluindo acesso justo à terra, oferta de empregos e participação nas receitas futuras com a extração de gás e rubi. 

“O governo precisa saber que é extremamente necessário que os recursos naturais de Moçambique sejam usados ​​para o bem do seu povo, e não para gerar corrupção”, afirma o bispo de Pemba, Luís Fernando Lisboa.

Ligação entre insurgência e riqueza mineral

Nas últimas décadas, Cabo Delgado viu um fluxo migratório de fundamentalistas cristãos e muçulmanos e de agências religiosas internacionais de caridade tentando converter a população local.

Independente de Portugal desde 1975, sobretudo depois da morte do seu primeiro presidente da República, Samora Machel, Moçambique tornou-se cada vez mais um país minado e dominado pela corrupção. O seu litoral norte tornou-se um importante centro de contrabando de marfim, madeira, heroína e rubi, com o envolvimento da polícia e de outros funcionários públicos. 

A fronteira próxima com a Tanzânia não tem controle de agentes de segurança, e sempre houve ali um grande movimento de pessoas. Isso se ampliou com tráfico de pessoas, principalmente do Quénia, Somália e dos Grandes Lagos. Já havia jovens tanzanianos na comunidade de vendedores ambulantes de Mocímboa da Praia que passaram a fazer parte desses grupos criminosos.

Cabo Delgado é maioritariamente muçulmana, e os novos pregadores islâmicos, tanto estrangeiros de países da África Oriental quanto moçambicanos formados no exterior, estabeleceram mesquitas e argumentaram que os líderes religiosos locais eram aliados da Frelimo – que desde a independência, em 1975, é o partido da situação e principal força política do país – e da sua apropriação de riquezas.

Algumas dessas novas mesquitas passaram a fornecer dinheiro para ajudar a população local a iniciar negócios e gerar empregos, enquanto os islâmicos argumentam que a sociedade seria mais justa sob a sharia (lei islâmica). Em 2015, houve confrontos violentos na região quando a polícia e os líderes tradicionais islâmicos tentaram barrar o avanço dos fundamentalistas, que passaram então a treinar milícias. Estas estariam depois envolvidas no ataque inicial que abriu o actual confronto, em Mocímboa da Praia, em 2017.

Consequências da guerra civil

Moçambique ainda sofre os efeitos de uma guerra civil de 16 anos que terminou em 1992. As tensões permanecem entre o partido no poder, Frelimo, e o antigo movimento rebelde, Renamo. A corrupção tornou-se uma grande preocupação no país, ao ponto de os doadores terem sido obrigados a intervir. Várias ajudas foram bloqueadas dada a dimensão que os desvios dos recursos do Estado passaram a ser alvo por parte da elite dirigente do país. Filipe Nyusi, da Frelimo, tomou posse como presidente em Janeiro de 2015 e assumiu mais um mandato de cinco anos em 2020. Ele sucedeu Armando Guebuza, prometendo combater a corrupção. 

O retrato de um país virado para o Índico

Moçambique tornou-se independente de Portugal em 1975, ao fim de uma luta armada conduzida pela Frelimo, liderada por Samora Machel (1933-86). Em pouco tempo estourou uma guerra civil de vários anos, protagonizada pela Renamo, de Afonso Dhlakama (1953-2018). 

A descoberta recente de campos de gás na costa de Moçambique em 2011 deve levar a grandes transformações na economia de uma das nações mais pobres da África. Mas, apesar do recente crescimento económico, mais da metade dos 24 milhões de moçambicanos continuam a viver abaixo da linha da pobreza.

Actualmente, 37% da população vive em área urbana, grande parte na capital Maputo; a ausência da autoridade do Estado nas zonas mais distantes do país é um dos factores que explica a concentração da riqueza na capital; a expectativa de vida de homens e mulheres não passa de 60 anos e a taxa de fertilidade gira em torno de cinco crianças nascidas para cada mulher em idade reprodutiva.

O sector de serviços representa mais da metade do PIB (soma de todas as riquezas produzidas) do país, com 57% do total, seguido da agricultura (24%) e da indústria (19%). E os principais produtos de exportação são: briquete de carvão, coque, alumínio e gás, principalmente para Índia, Holanda e África do Sul.

Segundo dados do governo, a língua oficial do país é o português, falado por 17% da população, mas a mais falada é a makhuwa, por 26% dos moçambicanos. Juntas, as religiões cristãs são dominantes na população (católicos, 27%, cristãos sionistas, 16%, e evangélicos, 15%). O islamismo é praticado por 19% dos habitantes.

C/BBC e DW

 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 691, de 26 de Novembro de 2020

PUB

PUB

PUB

To Top