Por: Alexandre Gomes
A Comissão Nacional de Eleições (CNE) por meio da deliberação nº 69/Eleições Municipais/2020, de 6 de outubro, e com base num amplo consenso dos representantes das candidaturas, adaptou um leque de mediadas a vigorar para as Eleições Gerais dos Titulares dos Órgáos Municipais de 25 de outubro, no contexto da pandemia da Covid-19. Em conformidade, as medidas acordadas pelas candidaturas presentes na reunião alargada, foram traduzidas pela CNE, por via de um Código de Concuta (CC), aprovado, por unanimidade dos seus membros em que consensualizaram medidas que rege as atividades de proximidade que integram a propaganda eleitoral com os eleitores, durante a campanha eleitoral. Código esse que mereceu um amplo reparo por nós na Edição Nº 685, de 15 de outubro já publicado por esse semanário.
Assim, e nos termos da cláusula 4ª do CC, recomendou-se: a interdição de reuniões públicas em espaços abertos e manifestações que abrange, nomeadamente, a realização de comícios, desfiles, cortejos e arruadas; ficou condicionada a realização de reuniões em espaços fechados a redução de 1/3 de lotação máxima de pessoas, obedecendo a regras de distanciamento físico de 1,5 metros; uso de máscaras e etiqueta respiratória, distanciamento físico e social, desinfeção das mãos com regularidade durante as reuniões; colocação de cartazes ou outro tipo de informação referente às medidas preventivas contra a COVID-19, nos locais onde se realizam reuniões; proibição de vendas de bebidas alcoólicas nos lugares onde as reuniões são realizadas; suspensão das atividades sempre que constar aglomeração de pessoas, inter alios.
Medidas essas suscetíveis de, grosso modo, restringir o Direito de Liberdade de Propaganda Eleitoral como Direito Fundamental que assiste às candidaturas, previsto pela Constituição da República de Cabo Verde(CRCV) e pelo Código Eleitoral (CE).
A Teoria Geral de Direitos Fundamentais nos ensina que, os Direitos Fundamentais, só podem ser restringidos mediante expressa autorização constitucional por lei de Assembleia Nacional de caráter geral e abstrato, que não produza efeitos retroativos, não atinja a extensão do núcleo essencial do direito em si e que obedeça ao postulado do princípio de proporcionalidade. Assim, defendemos e sem reservas que, não é pela via de uma deliberação da CNE que se vai restringir o Direito de Liberdade de Propaganda Eleitoral enquanto Direito Fundamental com guarnição constitucional. Por outro lado, está-se perante um CC desfasado de qualquer disposição que lhe atribui caráter coercivo, pelo que, obsta, prima facie, a hipótese de imperatividade de suas normas, traduzindo-se, apenas, em meras recomendações sem força de lei.
In casu, questiona-se a atuação que cabe aos fiscalizadores em caso de incumprimento das disposições previstas pelo CC com base nesse qui pro quo.
Nesse quadro parece evidente que as competências da CNE, estão bem definidas ao abrigo do CE. Porém, concernente às matérias que restringem Direitos Fundamentais nos pareça que o papel dos fiscalizadores ficou, em certa medida, beliscada em que tais órgãos ficaram de mãos atadas e olhos vendados a ver a caravana passar… aliás, é isso que se tem assistido durante esses dias de campanha eleitoral por todos os municípios do país em que as candidaturas e os partidos políticos têm agido em contramão indo de encontro às medidas impostas pelo CC que, na altura, honraram cumprir. E nesse quesito defendemos que qualquer restrição a ser imposta pelo contexto da pandemia, mesmo que a título excecional, teria de ser por via legislativa e não por uma deliberação, in casu, da Administração Eleitoral.
Por outro lado, as normas constitucionais além da supremacia que ocupam no topo de hierarquia das leis, suas disposições constituem traves mestras que garantem unidade e consistência ao ordenamento jurídico que, de per si, vincula entidades públicas e privadas, salvo casos de restrição de direitos.
Posto isso, diria que a conferência de imprensa da CNE passada pela TCV no jornal de domingo, veio na vanguarda de uma administração que se viu inoperante e fracassada em fazer cumprir os meandros do CC, muito por culpa das candidaturas concorrentes ao pleito eleitoral de 25 de outubro. Dessa conferência, a destacar: Primeiro, os clausulados do CC são meras recomendações e não gozam de força de lei, pelo que, não possui força vinculativa legal a ponto de restringir o direito à propaganda eleitoral enquanto direito fundamental e constitucional que assiste às candidaturas e proponentes em sede de campanha eleitoral. Segundo, os órgãos de fiscalização não podem e nem devem emitir voz de detenção aos candidatos incumpridores das diretrizes impostas pelo CC, em nome do princípio da legalidade, uma vez que, estes, estão revistos de imunidade constitucional (cfr. art.º. 107º nº 1, da CRCV). Por último, os candidatos só podem ser detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão, cujo limite máximo seja superior a 3 (três) anos (e não 2 anos como se tentou passar a Presidente da CNE na sua comunicação ao país), in casu, materializa-se a ideia constitucional face ao CE que é uma lei ordinária e, consequentemente, de grau inferior, sanando assim a incongruência entre os dois diplomas.
Outra questão digno de registo tem a ver com o levantamento de auto de notícia por parte dos fiscalizadores ao tomarem conhecimento de infrações cometidas ao abrigo do CC e demais normas vigentes, até aqui esteve “acertadinha” a Presidente da CNE, entretanto convém relembrar que tal ideia não passa de “conversa para inglês ouvir” sem efeito prático, inoportuno e esvaziada de conteúdo material, pelo facto de os principais mentores de propagando eleitoral serem, na maioria das vezes, candidatos (as) que ocupam lugares elegíveis nas presentes listas e, como é sabido, o CE prevê a prescrição do procedimento criminal por crimes eleitorais no prazo de 2 (dois) anos a contar da data da prática do facto punível, se assim é, ao serem eleitos para o mandato de vigência de 4 anos, vê-se o efeito prático da materialização da recomendação emitida pela Presidente da CNE.
Ciente disso, entendemos que o verdadeiro papel dos órgãos de fiscalização deve passar por um reforço de diálogo mútuo e constante persuadindo no estrito cumprimento das medidas impostas pelo CC e demais outras, garantido a ordem e tranquilidade pública, bem como a segurança de pessoas e de seus bens e o decurso normal das atividades de campanha eleitoral, contanto que o exercício dos direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente consagrados sejam salvaguardados para efetivação plena do Estado de Direito Democrático, pelo que, a recomendação de vir a deter candidatos por desobediência de preceitos impostos por uma deliberação, manifesta, amiúde, uma medida ilegal (pela moldura penal e natureza dos candidatos), com pouquíssimo grau de aplicabilidade, conforme tem-se testemunhado a decorrência da campanha eleitoral.
Portanto, nosso forte apelo vai no sentido de as candidaturas e os partidos políticos observarem escrupulosamente as medidas sanitárias decretadas no combate à disseminação do vírus que se está in crescendo e, por outro, como forma de garantir a coerência das medidas de políticas legeslativas adaptadas em que a não observância – como tem-se assistido nesses dias de campanha eleitoral – reforça, indubitavelmente, o descrédito da e pela política.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 686, de 22 de Setembro de 2020