Por: Carlos Artur F. de Moura*
Não enveredarei por proclamações de filiação. Não me pronunciarei sobre a postura dos partidos políticos, nem sobre a liberdade de voto que permitiram aos seus deputados. Pronunciar-me-ei apenas sobre o facto que: foi levado à primeira sessão parlamentar do mês de Julho, o Estatuto Especial Administrativo para a Cidade da Praia, na quarta tentativa de sua aprovação.
Não deixa de ser interessante ler, com os devidos cuidados, a opinião dada à estampa por Alexandre Gomes nas páginas da Nação, a propósito do tema em epígrafe. Penso inclusive que deveria ser um texto que nos deveria levar a uma profunda reflexão sobre as questões de forma e conteúdo.
Considero que tem o autor muita razão quando aponta como direito constitucional – ainda que eu lhe chamaria de imperativo constitucional – as directivas aí plasmadas, neste caso sobre a Capital, e mais ainda quando refere em tomar a Constituição como bússola.
Porém isso por si não chega para reflectir os desejos do país. Não pode ser nunca por um título que qualquer lei deve ser aprovada no Parlamento na generalidade, para depois descer à respectiva comissão a fim de ser burilada na especialidade.
A apreciação na especialidade serve para melhorar um texto, torná-lo mais adequado à realidade, mas não para o refazer de início. Donde um texto legislativo que não serve os propósitos essenciais, não pode obviamente passar os trâmites legislativos da generalidade sob o risco de se tornar uma má lei, sem especialidade que lhe valha.
É fácil entender daqui que, contrariamente ao que o autor afirma, o conteúdo do Estatuto Especial proposto importa e muito para a sua avaliação e os seus méritos ou deméritos são a base primordial para a sua aprovação e reprovação.
Debate indevido
Não cabe trazer à colação situações de outras latitudes. Até porque não me consta que na maioria das Capitais Europeias, especialmente as de dimensões populacionais comparáveis, quer por território, quer por população total, ou mesmo por percentagem da população nacional a viver no território, sejam necessários poderes autárquicos diferenciados do resto do país para que seja possível a satisfação das necessidades de habitação, saneamento, transportes ou ambiente. Na realidade aquelas que não foram realizadas não o foram não por culpa do quadro legal e divisão de poderes vigente, mas por incapacidades próprias de gestão.
É fácil verificar que a não satisfação das necessidades não se deve a inexistência de leis especiais de capitalidade, aliás porque além dos custos de capitalidade – bem referidos – existem os benefícios de capitalidade, totalmente escamoteados no texto.
O consenso é um acontecimento
A existência de consensos não é nem sinal de Estado de direito, nem um sinal da maturação democrática. Ele aparece quando existem pontos de contacto entre os diferentes pontos de vista e estes não são antagónicos.
Não é por ter dignidade de princípio constitucional que o Estatuto Especial da Praia tenha de ser aprovado a todo o custo, não importa que Estatuto, nem como se vai articular com a restante organização administrativa do Estado.
O Estatuto será seguramente aprovado quando a proposta feita servir os interesses da Cidade, mas no caso principalmente os interesses nacionais e essa questão está muito longe de demonstrar, até pela análise dos dados estatísticos.
Será aprovado seguramente quando for um texto que permita que a capital, em lugar de se alcandorar em monopolizador dos recursos do Estado, sirva de facto como motor de desenvolvimento nacional.
Quando o texto desse estatuto se apresentar como factor de redistribuição de riqueza e possibilite o desenvolvimento harmonioso do todo nacional terá seguramente apoio para a sua aprovação, porque fora isso não é desígnio dos cabo-verdianos mas tão só factor de dissensão no todo nacional.
Reconhecer o Estatuto Especial à Praia é, nestas circunstâncias e no texto em apreço, sim discriminar ou estigmatizar todos os outros municípios do país, criando a extravagante ideia de um município de primeira e de municípios de segunda no país, e tal só não se verificaria se esse estatuto viesse integrado na criação de uma Região especial que abrangesse a Capital e, em pé de igualdade com as outras Regiões a criar no país.
Aliás, se nos debruçarmos sobre outras situações de capitalidade com estatutos especiais – normalmente em grandes federações territoriais, estas, ou são de jaez idêntico ao restante território – equiparadas a estados federados (casos da Bélgica, Brasil ou da República Federal da Alemanha) – ou até inferior, como é o caso dos E.U.A. em que os representantes do Distrito de Columbia não têm assento no Senado, nem direito de voto na Câmara de Representantes.
Estou em crer que ninguém desejaria tal destino para a Cidade da Praia. Donde não se aplica no caso de Cabo Verde nem o factor território, nem o factor equilíbrio de poderes federais.
Não resiste muito também o argumento da densidade populacional ou da população em termos absolutos. Quando se tem um território que tende a concentrar cada vez mais população, com mais de 56% dos habitantes do país, com tendência de aumento (50% em 2005), em detrimento das outras ilhas, que absorve a vastíssima parte dos investimentos orçamentais e, cuja única coisa estranha é que o retorno seja apenas 39% do PIB a valores de 2012, o que nem sequer cobre o investimento uma vez que o investimento tem sido conseguido à custa do aumento dos défices, não se pode entender que seja desejável introduzir políticas de acentuação de macrocefalia do território em lugar de medidas de desenvolvimento integrado, para mais num país tão pequeno.
Bastaria a análise de um dado tão corriqueiro como os novos Km de estrada construída, nos últimos cinco anos, para se perceber as disparidades de que se fala, com Santiago, com um investimento de 45,37 novos quilómetros de estradas e a segunda ilha em população somada à segunda ilha em território, a não ultrapassarem os 7,83 Km de novos quilómetros de estrada, no mesmo período temporal.
A comparação é feita em relação ao conjunto S. Antão/S. Vicente de forma a mitigar qualquer distorção entre zona rural e urbana que introduzisse perturbações na análise, e note-se, estamos numa comparação em duas ilhas cuja densidade populacional varia entre 304,6 habitantes/Km2 em Santiago e 364,2 Habitantes/Km2 em São Vicente, mesmo que as zonas rurais de Santiago introduzam também aqui perturbação na análise.
Em todo o caso, tampouco colhe o argumento de que a cidade capital pela densidade populacional, com cerca de 1/3 da população do país, pela dimensão geográfica e territorial, pelo êxodo que regista, pelo contexto geopolítico e geoestratégico nacional e, acima de tudo, pela sua contribuição na riqueza nacional, a torne numa polis diferenciada, cosmopolita e, acima de tudo, peculiar com nível de assimetria entre o centro e a periferia.
Bem pelo contrário, pelo volume de investimento provoca o êxodo em virtude de gerar mais emprego, sem ter contudo o mesmo nível de cobertura e satisfação das necessidades da população que outros municípios cabo-verdianos de menores recursos, o que se atenta facilmente ao observar os valores de população coberta por água potável e rede de saneamento, presentes nas estatísticas oficiais disponíveis até 2017.
Não é portanto a inexistência do Estatuto Especial que tem significado constrangimento ao desenvolvimento do município da Praia ou ao seu desenvolvimento enquanto capital. Não possui mais solicitações, não possuí maiores desequilíbrios e não possui maiores dificuldades, até porque as actividades protocolares do Estado estão definidas na Lei e, as receitas próprias recolhidas na capital facilmente fariam face.
Sanando desequilíbrios?
Da mesma forma que o Estatuto Especial da Praia não tem, nas formulações reprovadas, e não sem uma boa dose de bom senso, pela Assembleia Nacional, a regionalização. A regionalização do território nacional, de que se vislumbra a defesa do presente texto, não é contudo nenhuma panaceia para as assimetrias de desenvolvimento do território.
Da mesma forma que se entende inconcebível que existam autoridades municipais de níveis diferentes na hierarquia da administração territorial cabo-verdiana, não pode ser entendível que existam diferentes níveis hierárquicos, de competências distintas sobrepondo-se sobre o mesmo território.
Tal princípio apenas conduz à sobreposição de orientações e à inevitável inoperância ou das autoridades regionais ou das municipais, independentemente das suas orientações políticas – num caso leva ao ocaso de um dos níveis autárquico e no outro ao aberto confronto entre autoridades regionais e municipais. Serve ao objectivo do desenvolvimento e descentralização do Estado? Como é óbvio não. Serve como correia de transmissão do Estado Central numa das situações ou de paralisia das decisões tomadas a nível regional.
Os Cabo-verdianos merecem um Estado eficiente e níveis de desenvolvimento equilibrado para o país, especialmente sendo um país de pequena dimensão e que necessita para o seu desenvolvimento da mobilização de todos os seus recursos disponíveis de forma sustentável, acompanhada por uma dispersão de população pelo território que diminua a pressão localizada sobre os mesmos.
O que não merecem nem necessitam é de um qualquer remendo atabalhoado, apenas porque apresenta um nome pomposo, satisfaz egos e consola os complexos de algumas franjas.
* Engenheiro do Ambiente especializado em Ordenamento de Território, ex-Vereador da Câmara Municipal de Lisboa
Publicado na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 675, de 06 de Agosto de 2020